Opinião

Improbidade: retroatividade da lei nova e não ultratividade da lei anterior

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28 de dezembro de 2022, 21h17

O objetivo deste artigo é analisar o entendimento do Supremo Tribunal Federal exarado no acórdão do julgamento do Tema 1.199 sobre os efeitos da Lei nº 14.230/2021 (Nova Lei de Improbidade Administrativa, a LIA) em relação a tipos sancionadores.

Uma conclusão apressada levaria a concluir que o Supremo Tribunal, pelo fato de não ter debatido ou sequer mencionado especificamente a questão dos atos dolosos [1], não teria produzido nada de aproveitável em relação aos efeitos da Lei nº 14.230/2021 sobre essa matéria.

Todavia, embora realmente o STF não tenha tratado de maneira específica dos atos dolosos  e nem poderia fazê-lo, haja vista os limites objetivos da lide que apreciou [2]  poderá ser comprovado pelo relato abaixo que a Corte não limitou a retroatividade da Lei 14.230/2021 aos atos culposos.

Vejamos.

Primeiramente, devo destacar que o acórdão que julgou aquele Tema partiu de uma definição peculiar do que é retroatividade, e o fez com apoio no voto do ministro relator Alexandre de Moraes.

Assim, segundo o decisum em comento, retroatividade seria a capacidade que a lei nova tem de atingir especificamente a coisa julgada, destruindo-a. Para a maioria dos ministros, esse poder extintor é exclusivo de lei nova da área criminal (penal), o que significa dizer que, ainda que não exista mais ato culposo de improbidade no ordenamento jurídico-legal, as sentenças que condenaram réus pela prática de ato culposo de improbidade e já transitaram em julgado são imutáveis, ficando mantidas, portanto, as condenações, uma vez que a ação de improbidade é de natureza civil e não criminal. Foi o entendimento da maioria.

Mas, o que disse o STF sobre condenação por culpa em processos ainda em curso, isto é, os feitos em tramitação, em qualquer instância?

A resposta está na redação do julgado:

"O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (RELATOR)  'O segundo ponto: ato de improbidade culposo praticado antes da lei, mas sem condenação transitada em julgado. Aqui, também se formou maioria acompanhando o Relator com fundamentos diversos  eu entendo que é não ultra-atividade; e a maioria, a retroatividade. Então, aqui, acompanharam o Relator: o ministro André Mendonça; o ministro Nunes Marques; o ministro Dias Toffoli; o ministro Ricardo Lewandowski; o ministro Gilmar Mendes e ministro-presidente Luiz Fux (sete votos aqui pela retroatividade, ou não ultra-atividade). Em outras palavras, o que não transitou em julgado, o ato culposo não transitado em julgado, deve ser extinta a ação".

A leitura do acórdão demonstra que para permitir uma análise racional e lógico-jurídica do Tema, o STF adotou a metodologia de dividir o objeto em dois grupos: (1º) processos com decisão transitada em julgado e (2º) processos em tramitação (em qualquer instância).

Assim, a leitura do trecho acima transcrito deixa claro que, no tocante à lei de improbidade nova, o acórdão, por força do voto do relator, introduziu, ao lado da retroatividade, outro elemento jurídico conceitual, qual seja, a NÃO-ULTRATIVIDADE [3] de uma norma anterior, definida como a impossibilidade de o Judiciário condenar o réu com base em um artigo que, no momento da decisão (sentença ou acórdão), não está mais em vigor.

Assim, seja pela retroatividade da nova lei, seja pela proibição de ultratividade do diploma revogado, o acórdão decidiu, por sete votos contra quatro, que se o processo ainda está em tramitação, o réu não pode ser condenado se o tipo sancionador  no caso, o culposo  não existe mais.

"Ressalte-se, entretanto, que apesar da irretroatividade, em relação a redação anterior da LIA, mais severa por estabelecer a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa em seu artigo 10, vige o princípio da não ultra-atividade, uma vez que não retroagirá para aplicar-se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada em julgado, mas tampouco será permitida sua aplicação a fatos praticados durante sua vigência, mas cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada. Isso ocorre pelo mesmo princípio do tempus regit actum, ou seja, tendo sido revogado o ato de improbidade administrativa culposo antes do trânsito em julgado da decisão condenatória; não é possível a continuidade de uma investigação, de uma ação de improbidade ou mesmo de uma sentença condenatória com base em uma conduta não mais tipificada legalmente, por ter sido revogada.

Não se trata de retroatividade da lei, uma vez que todos os atos processuais praticados serão válidos, inclusive as provas produzidas  que poderão ser compartilhadas no âmbito disciplinar e penal ; bem como a ação poderá ser utilizada para fins de ressarcimento ao erário. Entretanto, em virtude ao princípio do tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base em norma legal revogada expressamente".

Ao entender assim, o tribunal acabou por dar uma interpretação peculiar ao princípio tempus regit actum. Explico.

A concepção mais conhecida dessa diretriz ensina que se aplica ao ato do réu (actum) a lei que vigorava quando ele foi praticado (tempus).

No entanto, ao adotar a doutrina da vedação da ultratividade, o acórdão do STF estabeleceu que o actum não é o agir do réu, mas sim a sentença (ou o acórdão) do juiz; ou seja, a ação que deve ser levada em conta, para fins de aplicação da lei no tempo, é a do Judiciário, o ato de julgar.

Nesta toada, segundo o STF, o intérprete deve averiguar qual regra legal está em vigor no momento em que for decidir e não aquela que vigorava quando o ato do acusado foi praticado.

Neste sentido, verifica-se que o julgado não despreza o princípio tempus regit actum, mas apenas lhe dá uma interpretação que possibilita a aplicação da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso, mantendo hígidas apenas as condenações transitadas em julgado.

Mas, o que dizer em relação aos tipos dolosos que deixaram de existir graças à Lei 14.230/2021? Ora, aplica-se o mesmo fundamento.

Isso porque, embora ao julgar o Tema 1.199 a Corte realmente não tenha tratado especificamente de atos dolosos, uma vez que se debruçou apenas sobre a extinção do tipo culposo, elaborou, ao adotar a tese da proibição de ultratividade de norma sancionadora revogada, um raciocínio (ratio decidendi ou fundamento da tese) que pode ser aplicado de maneira geral, estendendo-se aos tipos dolosos extintos pela nova lei [4].

Com efeito, para preservação da coerência e garantir respeito ao acórdão, o juiz não poderá, por exemplo, condenar hoje um réu pelo antigo tipo genérico do modificado caput do artigo 11 da LIA [5], ainda que o ato tenha sido praticado anteriormente à entrada em vigor da nova norma, que estipulou um rol taxativo no artigo em tela.

Na mesma toda, um gestor público que tenha, antes da Lei nº 14.230/2021, deliberadamente dispensado licitação obrigatória, mas que a contratação da empresa tenha sido pelo preço de mercado, situação que revela, neste exemplo, a ausência de dano ao erário (inexistência de prejuízo patrimonial), não poderá ser hoje condenado por esse ato, uma vez que a redação atual da LIA exige que esse ato ilegal tenha acarretado perda patrimonial efetiva, não se admitindo mais o dano presumido [6].

Isso porque, nos termos da tese vencedora no STF, o actum regido pelo tempus não é o agir do réu, mas sim o ato judicial de decidir, de sorte que é proibida a condenação do acusado se o tipo sancionador não existe no momento da proferimento do acórdão (ou da sentença).

Da mesma forma, se o servidor deixou de comparecer ao serviço vários dias em 2019, abandonando o trabalho por motivo fútil e deixando vários usuários do serviço sem atendimento, mas não recebeu pelos dias não trabalhados (portanto, ausentes o dano ao erário e o enriquecimento ilícito). O ato, portanto, foi praticado antes da entrada em vigor da nova redação do artigo 11 da LIA. Assim, foi proposta em 2020 ação de improbidade contra o faltoso, sob o fundamento da violação ao "princípio da lealdade à Administração Pública".

Ora, hoje, no momento de sentenciar, o juiz deverá rejeitar a ação porque o tipo sancionador não existe mais, dado que a conduta do réu não se encontra listada no rol do artigo 11 (redação atual), que passou a ser taxativo. Assim, se prestigiado o raciocínio e a tese vencedora no STF, não seria possível condenar o faltoso porque o tipo genérico foi extinto com a lei de 2021, ou seja, antes de decisão condenatória definitiva [7].

Como visto acima, a Excelsa Corte no Tema 1.199 se limitou a debater tipos culposos, para fixar o entendimento de que a Lei 14.230/2021 os extinguiu e que essa extinção se aplica aos processos em curso, mas de nenhuma maneira avançou no sentido de que a norma retroage (ou que a norma revogada não produz mais efeitos) apenas em relação a eles.

Vale dizer, o STF não afastou a possibilidade de aplicação da nova LIA aos atos dolosos e às outras modificações trazidas pela Lei 14.230/2021 [8], pois deixou claro no acórdão que o Judiciário não pode condenar um réu com base em norma sancionadora que, no momento da sentença/acórdão, não mais existe [9].

Em conclusão, a leitura do acórdão do Tema 1.199 nos leva a afirmar que o Supremo Tribunal:

1) Para permitir uma análise racional e lógico-jurídica do Tema, adotou a metodologia de dividir o objeto em dois grupos: 1º) processos com decisão transitada em julgado e 2º) processos em tramitação (em qualquer instância).

2) ao primeiro grupo, não se aplica a Lei nº 14.230/2021; ao segundo sim, naquilo que se refere à extinção de tipos sancionadores, uma vez que, seja pela retroatividade da nova lei, seja pela vedação de ultratividade da norma revogada, se não subsistem no momento da decisão judicial, não podem ser aplicados ao réu.

3) o Supremo não debateu  sequer mencionou  a questão dos atos dolosos [10]; entretanto, a partir da tese vitoriosa naquele julgamento (seja baseada na retroatividade, seja amparada na vedação de ultratividade de norma sancionadora extinta) é legítimo concluir que, para o STF, em processos em tramitação, o acusado não pode ser condenado pela prática de um tipo sancionador que, no momento da sentença/acórdão, não existe mais, ainda que o ato por ele praticado tenha sido anterior à Lei nº 14.230/2021.

4) Nos processos em tramitação, segundo o STF, o marco temporal a ser levado em consideração para a aplicação da nova LIA, no que se refere a tipos sancionadores, é a data da sentença ou do acórdão.

 


[1] Tampouco debateu as "abolitio delicti" previstas no artigo 1º, §3º e no artigo 21, §4º ou a extinção da remessa necessária da nova LIA

[2] ARE 843.989 RG.

[3] A ultratividade é o fenômeno do mundo jurídico-legal pelo qual a norma continua a produzir efeitos mesmo após a sua revogação. Assim, para o relator, vigora em matéria de improbidade administrativa a proibição de ultratividade de norma sancionadora revogada.

[4] Repita-se: sete ministros adotaram um fundamento (seja a vedação de ultratividade, seja a retroatividade) que resulta na impossibilidade de aplicação aos processos em curso de um tipo sancionador que não existe mais.

[5] Dispositivo cuja redação sofria da conhecida e criticada vagueza semântica da expressão "violação a princípios", que, segundo o voto do relator, corresponde a 56% das condenações.

[6] Artigo 10, VIII, da redação atual da LIA.

[8] Por exemplo, aplicação imediata do dispositivo legal que extinguiu a remessa necessária.

[9] Ou seja, se o tipo culposo não existe mais, é juridicamente impossível o réu ser condenado por ter incorrido na conduta nele prevista, raciocínio que, por imperativo lógico, deve ser aplicado também aos tipos dolosos.

[10] Ou das "abolitio delicti" previstas no artigo 1º, §3º e no artigo 21, §4º da nova LIA ou da extinção da remessa necessária.

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