Licitações e Contratos

Lei nº 14.133/2021 e normas suntuárias: dos bens de luxo à vantajosidade

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

21 de julho de 2023, 10h17

Em particular período da história, alguns países (notadamente os europeus) valeram-se de determinadas normas, denominadas Leis Suntuárias, que contemplavam os mais variados objetivos, incluindo medidas protetivas ao mercado interno, como também a regulação de hábitos de consumo.

Para além dos motivos morais (cujos fins de regulação e reforço às hierarquias sociais são, incontestavelmente, repugnáveis), as Leis Suntuárias tinham por propósito regular a balança comercial, restringindo o luxo e a extravagância.

  1. Lei nº 14.133/2021 contempla, expressamente, normas que rememoram as Leis Suntuárias, quando, por exemplo, veda à Administração Pública a aquisição de bens de luxo: "Art. 20. Os itens de consumo adquiridos para suprir as demandas das estruturas da Administração Pública deverão ser de qualidade comum, não superior à necessária para cumprir as finalidades às quais se destinam, vedada a aquisição de artigos de luxo".

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Muito embora já exista decreto federal (Decreto nº 10.818/2021) — substancialmente lacônico e inexpressivo — que regulamenta o que são bens comuns e bens de luxo, certo é que o legislador pretendeu evitar que o Poder Público aparentasse estigmatizada aristocracia nem sempre deferida aos grupos menos favorecidos.

A despeito de a regulamentação quanto à matéria não ser suficientemente desambiguada, há um mínimo de diretrizes — porventura principiológicas — que apontam para o dever incumbido à Administração de não ser pródiga quanto à suntuosidade do que usa, adquire ou pretender contratar, em fiel obediência, dentre tantos, ao princípio da economicidade, principal isca para deflagração de processos nos órgãos de controle, sobretudo externo.

Por outro lado, em cataclismo que conturba o atuar administrativo, a ciranda envolta ao termo vantajosidade pode incitar o administrador público a protagonizar, em obediência a tal princípio, uma contratação que, mesmo sendo mais "vantajosa", desaguará em luxuosidade opulente e, por decorrência lógica, tenderá à suntuosidade.

Por rigor, deve-se mencionar que a Lei nº 14.133/2021, em nenhum de seus dispositivos legais, inibe a contratação que não atenda necessariamente o critério do preço (adequação matemática simplória ao princípio da economicidade), tendo em vista que valoriza a tal contratação mais vantajosa, utilizando variados — mas não exaustivos, tampouco explicativos — critérios, como o ciclo de vida do objeto.

Havendo uma aquisição que possa comprometer os fieis objetivos da Administração, notadamente a eficiência e o melhor benefício ao consumidor final do serviço público (administrado), em uma ou outra circunstância, a aludida vantajosidade andará — senão de mãos dadas, mas em incontroversa relação de proximidade — em desarmonia com a moralidade (e os valores normativos que dela decorrem), hierarquizando a Administração em um conceito social afoito e disjuntivo da metódica que norteia a iniciativa privada, cujo preço (economicidade) quase sempre tende a ser o principal vetor relacionado à melhor escolha.

Justificar, em argumentação contundente refratária ao rígido controle externo, que a economicidade pode ser superada pela vantajosidade, ou, com mais ampla e intrépida dificuldade, que determinado bem ou serviço constante no termo de referência não é de luxo, propõe ao gestor público um par de justificativas, que, nem sempre, motivam a contratação, tal como exigido nos infindáveis incisos a que faz referência o artigo 18 da Lei nº 14.133/2021.

Por qualquer viés, é nítido que o legislador, quando menciona conceitos vagos e abstratos, hipoteticamente pertinentes a valores que devem ser, quando possível, de fiel cumprimento, ilude o administrador no sentido de que o atendimento a tais intentos é discricionário, em impiedoso flerte com os órgãos de controle, cuja mensuração valorativa nem sempre está conformada com a linha de controle interno a que faz referência os incisos I e II do artigo 169.

Tanto quanto possam ser elogiáveis os desígnios normativos, seja vedando contratação de bens de luxo, seja priorizando a vantajosidade (nem sempre aderente ao preço), a história dá conta de que as Leis Suntuárias, na maioria das épocas e nos mais diversos lugares, foram ineficazes.

Se se percorrer por uma simples exemplificação brasileira vertida nos últimos tempos, quando, em questionável justificativa de atendimento ao princípio do desenvolvimento nacional sustentável, editaram-se incontáveis decretos contemplando margem de preferência para produtos nacionais, ainda que praticados em contratações por preços exorbitantemente mais elevados, a consequência apenas aplacou um protecionismo plenamente evitável.

Torçamos para que os bens de luxo e a vantajosidade não lancem a Administração em pretensões legislativas desviantes do propósito do constituinte, cuja eficiência e moralidade são encabeçados como matizes reitoras da Administração Pública.

Autores

  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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