Território Aduaneiro

Vamos falar sobre classificação de mercadorias?

Autores

  • Liziane Angelotti Meira

    é presidente da 3ª Seção do Carf auditora fiscal da Receita Federal professora pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro doutora em Direito Tributário pela PUC-SP mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • Daniela Floriano

    é mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora em direito tributário e aduaneiro em diversos cursos de extensão e pós-graduação pesquisadora do NEF-FVG e UFMG advogada e sócia do DFloriano Advogados.

23 de agosto de 2022, 8h00

Não existem classificações certas ou erradas, mas classificações mais úteis e menos úteis [1]. A célebre frase proclamada por Augustín Gordillo merece parcimoniosa interpretação quando se refere às classes artificialmente construídas pelo Direito.

Spacca
As classificações no direito positivo possuem natureza distinta daquelas operadas pelas ciências naturais. Ao passo que estas ciências se debruçam sobre os objetos reais, no Direito, as classificações são arbitrariamente construídas e dotadas de função eminentemente prescritiva, voltando-se para outorgar um regime jurídico específico ao objeto classificado [2]. Assim, no Direito, as classificações são válidas ou inválidas [3].

A tarefa de classificar juridicamente uma mercadoria [4] tem por objetivo a uniformização [5], a harmonização [6] e, por consequência, a facilitação ou viabilização do comércio de bens tangíveis. Os incontáveis idiomas e dialetos desde sempre representaram custoso e demorado desafio a ser transposto pelos Estados, especialmente para fins de controle tributário, aduaneiro e estatístico das mercadorias comercializadas no exterior [7]. Nesse cenário, a elaboração de proposições prescritivas, coerentes e lógicas, que se prestassem a orientar uma classificação uniforme das mercadorias era providência necessária. Tentativas nesse sentido foram registradas [8] sem que conseguisse, por muito tempo, alcançar um nível satisfatório de adesões dos países.

Foi necessário o término da 2ª Guerra Mundial e a urgência em se restabelecer o comércio internacional, para que fossem retomados os trabalhos de padronização dos diferentes sistemas de classificação e de designação de mercadorias [9].

Por um período aproximado de vinte e quatro anos, entre 1950 e 1974, dois importantes projetos de ordenação e nomeação de mercadorias coexistiram [10], servindo como uma significante experiência para o que estava por vir. Posteriormente unificados sob o nome de Nomenclatura Comum de Cooperação Aduaneira, o alcance desses projetos ainda era restrito a apenas 13 países europeus [11].

É somente em 1983, quando da promulgação da Convenção Internacional do Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias, que uma nomenclatura única e de abrangência global é subscrita, trata-se de um marco para o comércio internacional [12]. As normas veiculadas por referida convenção passaram a nortear a nomenclatura comercial das mercadorias em um alcance atual e aproximado de 98% [13] de todo o volume de negócios internacionais, incluído, entre os signatários o Brasil [14].

No meio jurídico brasileiro, entretanto, é verificável certo descaso científico pelo tema. Muitas vezes, relegado a uma tarefa automática ou menos importante desempenhada por atores diversos dos intelectuais operadores do direito, apoiados na incipiente literatura, que se prestava em boa medida a reproduzir, ipsis litteris, a legislação. No mesmo caminho, a produção jurisprudencial, não obstante notável evolução, ainda reflete alguma desconsideração intelectual.

Certamente, a dificuldade em transitar entre diversos planos de linguagem [15], formados cada qual por seus sistemas de normas de natureza distintas [16], contribui para que o trabalho de classificação das mercadorias ainda não tenha sido alçado à merecida posição de destaque no estudo do Direito no Brasil.

O fato é que a tarefa de classificar juridicamente uma mercadoria conjuga habilidades distintas e que ultrapassam o domínio isolado de uma determinada ciência. É completamente possível que exímios conhecedores da história e da legislação aduaneira não possuam condições de classificar. Para classificar uma mercadoria, é necessário, antes de tudo, neutralidade [17]. É preciso aproximar-se do objeto desarmado de qualquer experiência prévia. Não é, por exemplo, apenas porque se utiliza um desodorante com função bactericida no rosto que esse passa a ser um produto de toucador. De outra forma: a experiência subjetiva daquele que está classificando não pode interferir na tarefa jurídica de classificar uma mercadoria [18].

Há que se aproximar do objeto de forma a conhecê-lo integralmente. Em inúmeras oportunidades, a ausência de uma linguagem técnica por parte do classificador demanda a colaboração de outros profissionais para que se possa construir uma linguagem de aproximação ao objeto. É por isso que muitas vezes são necessários pareceres ou laudos exclusivamente técnicos, não classificatórios [19].

Questionamentos tais como "o que é?", "como é obtida?", "o quê contém?", "como se apresenta?", "para que é utilizada?" são essenciais para o início de qualquer estudo que pretenda classificar uma mercadoria. Para responder a estes questionamentos, pressupõe-se o acesso a catálogos informativos, fichas técnicas, documentação gráfica, planos e instruções de montagem, análises químicas, informações sobre o produto. Somente após bem conhecida a mercadoria, é que se passa à análise da estrutura da nomenclatura, para que seja possível classificá-la corretamente [20].

Neste contexto, e na qualidade de norma geral e abstrata decorrente de compromisso firmado entre Estados soberanos, o tratado materializado pela Convenção Internacional do Sistema Harmonizado, sob a ótica da teoria dualista, insere-se no sistema jurídico brasileiro após sua promulgação, através do Decreto nº 97.409/1988. Recepcionado como lei ordinária de caráter nacional [21], a norma é editada pela União e reclama observância obrigatória por todos os entes da Federação.

A Nomenclatura Comum do Mercosul, por sua vez, decorre da assinatura do Tratado para a Constituição do Mercado Comum do Sul [22], originalmente integrado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, a partir do qual se buscou, dentre outros, o estabelecimento de uma tarifa externa comum, que somente poderia ser alcançada através de uma nomenclatura uniforme de mercadorias.

Outros veículos normativos, igualmente relacionados ao tema das classificações, merecem destaque. Criados com o objetivo de elucidar o conteúdo das normas jurídicas de classificação acima mencionadas, tais dispositivos possuem alcance distinto daquelas. Não se encontram aptos para inovar no ordenamento jurídico nacional e, por essa razão, foram inseridos por instrumentos legais de inferior hierarquia [23]. É o que se observa com as Notas Explicativas do Sistema Harmonizado, atualmente veiculadas pela Instrução Normativa RFB nº 1.788, de 8 de fevereiro de 2018 [24], dos Pareceres de Classificação emitidos pela Organização Mundial das Aduanas, internalizados e atualizados pela Instrução Normativa RFB nº 1.926, de 16 de março de 2020, das Soluções de Consulta de Classificação, emitidas pelo Centro de Classificação de Mercadorias da Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) da Receita Federal e autorizadas pela Instrução Normativa RFB nº 1.464, de 8 de maio de 2014, além dos Ditames de Classificação do Mercosul, veiculados pelo Ato Declaratório Executivo RFB nº 3, de 10 de novembro de 2020.

Introduzidos nesse contexto normativo, o complexo sistema das normas que enunciam os comandos e orientam a tarefa de classificação merece que seja operado como um conjunto de enunciados prescritivos que veiculam comandos obrigacionais orientados à correta identificação jurídica das mercadorias. A produção — coerente e lógica — de proposições prescritivas voltadas ao objeto da classificação, deve se pautar por uma linha de pesquisa sistemática e respeitosa a todos os citados preceitos legais. É a partir desse plexo normativo que os operadores do direitoEstado, particulares e julgadores — extraem os elementos necessários para construírem referida norma que noticia, juridicamente, a classificação da mercadoria analisada.

Entretanto, apesar de relegados a certa hierarquia inferior no estudo do Direito, debates acerca da classificação de mercadorias ganham corpo e relevância no que se refere à arrecadação fiscal e ao controle aduaneiro. De fato, a partir da pesquisa do tema classificação fiscal na base de decisões divulgadas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o que se observa é um aumento contínuo e significativo do contencioso administrativo envolvendo as normas jurídicas aqui tratadas: de 273 decisões proferidas em 2011, para 659 em 2019 e 530 em 2020, considerando este último ano o período pandêmico de adaptações [25].

Parte significativa deste contencioso é enfrentado por operadores — advogados, autoridades fiscais e julgadores — que soem não conhecer profundamente a legislação aduaneira e suas peculiaridades. Como consequência, há autuações questionadas, algumas vezes desprovidas de (correta) fundamentação legal, patronos buscando emplacar teses jurídicas genéricas, sem adentrarem às particularidades de que cada uma das mercadorias analisadas demanda, e julgadores administrativos que, com a cautela e, algumas vezes, não se sentindo confortáveis com tema, fundamentam suas decisões em opiniões e perícias técnicas, as quais, como observado, são subsídios mas não se prestam para juridicamente classificar as mercadorias.

Em síntese, essa espécie de esperanto global para o favorecimento do comércio internacional chamado classificação de mercadorias demanda informações técnicas do objeto a ser classificado e conhecimento jurídico, uma vez que se apoia em um arcabouço normativo consistente, não admitindo posições parciais, arbitrárias, apriorísticas ou opinativas.

 


[1] GORDILLO, Augustín. Princípios Gerais de Direito Público. Trad. Greco, Marco Aurélio. São Paulo: RT, 1997, p. 56.

[2] Nesse sentido: "Toda classificação é útil para sistematização e, consequentemente, melhor entendimento do objeto sob análise. Importante estar atento, contudo, que uma classificação jurídica não é tão-somente uma ferramenta para inteligência do objeto, pois, com frequência, implica a determinação dos respectivos regimes jurídicos de suas classes" MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 132.

[3] CARVALHO. Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 93.

[4] FLORIANO, Daniela. A classificação jurídica das mercadorias. In CREPALDI, Robson; PINTO, Rodrigo Alexandre Lazaro; LOSTADO, Sidney. Direito Aduaneiro contemporâneo: Temas de impacto no Direito Aduaneiro e Comércio Exterior. São Paulo: Editora Dialética. 2022.

[5] "Any promulgated text of Law is just words until is applied as Law. An any drafted text purporting to be a uniform law is nothing until it is applied uniformly as law. It is in the sphere of application that uniformity is created, not in that of drafting." ANDERSEN. Camila Baasch. Defining uniformity in law. Uniform Law Review. v. 1. 2007. p. 41.

[6] "Em sentido estrito, a harmonização configura-se pelo emprego de mecanismos específicos que visam apenas alinhar determinados ordenamentos: não há a necessidade de direito idêntico, apenas coerente." OLIVEIRA. Renata Fialho de. Harmonização Jurídica no Direito Internacional. São Paulo: Quartier Latin. 2008, p. 24.

[7] Em muitos casos, a exemplo de países com grande dimensão territorial, como o Brasil, há diferenças também internas. Os regionalismos influenciam diretamente na atribuição de nomes distintos o uma mesma mercadoria. Cite-se como exemplo: a abóbora ou jerimum; a macaxeira ou mandioca; a mexerica, tangerina ou bergamota; o biscoito ou bolacha; o farol, semáforo, sinal ou sinaleira; o pão francês ou pão de sal e inúmeros outros exemplos.

[8] A título exemplificativo, e restrito aos países ocidentais, cita-se a Nomenclatura Estatística Internacional, de 1913, a Nomenclatura Aduaneira da Liga das Nações, também conhecida por Nomenclatura de Genebra, de 1935, e a Lista Mínima de Mercadorias para Estatística de Comércio, de 1938.

[9] MACEDO. Leonardo Correia Lima. Direito Tributário no Comércio Internacional. (Acordos e Convenções Internacionais – OMC, CCA/OMA, Aladi e Mercosul). São Paulo: Lex Editora. 2005. p. 52.

[10] Referimos-nos à Classificação Uniforme para o Comércio Internacional (CUCI), proposta pela ONU em 1950, e a Nomenclatura para a Classificação nas Tarifas Aduaneiras, cujo nome foi posteriormente alterado para Nomenclatura de Bruxelas (NAB), administrada pelo Conselho de Cooperação Aduaneira, atualmente conhecido por Organização Mundial das Aduanas, também em 1950.

[11] "A história da OMA começou em 1947, quando 13 países europeus representados no Comitê de Cooperação Econômica Europeia concordaram em criar um grupo de estudos. Este grupo examinou a possibilidade de uma ou mais uniões aduaneiras baseadas nos princípios do GATT/47." Cf. ROCHOLL. Nataly Evelin Konno. OMC e matéria tributária: análise da valoração aduaneira, jurisprudência e controvérsias. Revista da SJRJ, Rio de Janeiro, n. 26. p. 315-333, 2009. p. 324.

[12] "Esta Nomenclatura unificou a Cuci e a NCAA, como também outras Nomenclaturas existentes no mundo, tais como a Tarifa Aduaneira do Japão, a Tarifa Aduaneira dos Estados Unidos, a Tarifa Aduaneira do Canadá, dentre outras." CAMPOI. Felipe. Classificação fiscal de mercadorias na prática. 3ª ed. São Paulo: 2019. p. 12.

[13] Informação disponível em https://bit.ly/2XeeUK9. Consulta em 31 julho de 2022.

[14] "Assim, o SH é de basilar importância para a correta identificação das mercadorias, pois somente desse modo os acordos internacionais, especialmente os concernentes à alíquota do imposto sobre a importação e às medidas de defesa comercial, serão corretamente aplicados e surtirão os efeitos desejados. Diante desse contexto, é possível afirmar que o SH é o mais importante acordo celebrado no âmbito da OMA." MEIRA, Liziane Angelotti. Tributos sobre o Comércio Exterior, São Paulo: Editora Saraiva, 2012, p. 237.

[15] Conceitos técnicos advindo de outras ciências, a exemplo da Engenharia, Mecânica, Química além de tratados internacionais, leis, instruções normativas, soluções de consultas.

[16] DOMINGO. Luiz Roberto. A classificação fiscal de mercadoria a partir das bases teóricas de José Lence Carlucci. In. LEÃO, G.J.C. e ARAUJO. R.A.F.V. Direito Aduaneiro e Tributação Aduaneira em Homenagem a José Lence Carlucci. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 554.

[17] Some-se à neutralidade uma postura modesta, em que o classificador se coloca completamente aberto a conhecer a mercadoria, independente do que ela possa representar em seu julgamento subjetivo e viciado.

[18] Cumpre mencionar que esse entendimento foi acolhido pelo CARF. "A classificação de mercadorias é atividade jurídica, a partir de informações técnicas. O perito, técnico em determinada área (mecânica, elétrica etc.) informa, se necessário, quais são as características e a composição da mercadoria, especificando-a, e o especialista em classificação (conhecedor das regras do SH e de outras normas complementares), então, classifica a mercadoria, seguindo tais disposições normativas." (Acórdão nº 3401­005.797, de relatoria do Conselheiro Rosaldo Trevisan).

[19] Neste sentido é expressa a vedação enunciada pelo § 1º, art. 37, da Instrução Normativa RFB nº 2.086, de 08 de junho de 2022.

[20] FLORIANO, Daniela. Instrumentos para a classificação de mercadorias: estudo e aplicação das regras gerais de interpretação do SH. [no prelo]

[21] Sobre a estatura de paridade dos tratados internacionais regularmente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro com as leis, veja-se a Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 1.480/DF.

[22] Em 1º de janeiro de 1995, tendo em vista o Tratado de Assunção, os entendimentos havidos no âmbito do Mercosul, e a publicação do Decreto nº 1.343, de 23 de dezembro de 1994, a antiga Tarifa Aduaneira do Brasil (TAB), que utilizava dez dígitos (os seis do SH mais dois para itens e dois para subitens), deu lugar à Tarifa Externa Comum (TEC), uniformemente adotada por todos os membros do bloco.

[23] FLORIANO, Daniela. Classificação de mercadorias: estudo de caso. In. Revista Direito Aduaneiro, Marítimo e Portuário. v. 12, nº 68 (maio/jun. 2022). p. 121-139.

[24] Recentemente atualizado pela Instrução Normativa RFB nº 2.052, de 6 de dezembro de 2021.

[25] Disponível em https://bit.ly/3zairGF. Acesso em 31 de julho de 2022.

Autores

  • é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

  • é sócia do escritório DFloriano Advogados, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, professora de Direito Aduaneiro e Tributário nos cursos de extensão e pós-graduação do Ibet, IBDT, PUC-Cogeae, EPD, Ebradi, Apet e ABDConst e pesquisadora do NEF FGV-SP e UFMG.

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