Tribuna da Defensoria

Sistema penal como reprodutor da desigualdade: luta contra aporofobia

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11 de julho de 2023, 8h00

A rejeição da aplicação do princípio da insignificância a uma mulher, mãe solo de três crianças, que teria praticado, no ano de 2017, a subtração de quatro pacotes de fraldas avaliados em R$ 120, posteriormente restituídos às Lojas Americanas (decisão recente tomada no bojo do Habeas Corpus  HC nº 225.706/STF), demonstra a necessidade de intensificação dos debates acerca do modelo penal de aporofobia social e da influência da repressão penal seletiva em desfavor dos mais vulnerabilizados no Brasil.

Com efeito, no caso acima ilustrado, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (DP-MG) já havia pugnado anteriormente pela absolvição da mulher, a qual foi condenada, em primeira instância, a um ano e dois meses de reclusão, em regime inicial semiaberto, e ao pagamento de 11 dias-multa. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) negou provimento ao recurso de apelação e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não acatou o HC que pedia a sua absolvição, com o entendimento de que o princípio da insignificância (ou bagatela) não se aplicaria aos casos de reincidência.

A despeito dos resultados negativos alcançados, calcada na expansão da cidadania, comprometida com a consolidação dos direitos dos mais vulnerabilizados e buscando promover a defesa da sua assistida, de forma ampla e abrangente, à luz do princípio da dignidade humana, a Defensoria Pública, insistindo na tese da falta de tipicidade material da conduta em questão, impetrou pedido de HC perante o Supremo Tribunal Federal (STF), pugnando pela aplicação do princípio da insignificância, tendo sido o pedido, ao final, rejeitado pelo ministro relator da ação, André Mendonça, o qual apontou em sua decisão que o fato de a mulher tratar-se de agente reincidente e com histórico no cometimento de outros delitos contra o patrimônio, mesmo que insignificantes, revela maior reprovabilidade do seu comportamento, diante da reiteração criminosa, afastando a incidência do princípio invocado pela Defensoria; acatando o magistrado apenas a tese subsidiária (fixação do regime inicial aberto, dado o fato de a pena imposta ser inferior a quatro anos).

Outrossim, asseverou o ministro que, somada à contumácia delitiva específica, seria incabível a conclusão de que seria ínfimo o valor dos bens subtraídos — três pacotes de fraldas, avaliados em R$ 120,00 —, que à época equivaleria a mais de 10% do salário mínimo vigente, ressaltando que a recuperação integral da res furtiva não teria o condão de desconstituir o dano ao bem jurídico tutelado pelo tipo penal, acrescentando o argumento de que  a conduta da mulher vem "sendo pautada pelo descaso para com os órgãos de segurança".

Pontuou, ainda, o ministro, que no julgamento conjunto dos Habeas Corpus nº 123.108/MG, nº 123.533/SP e nº 123.734/MG (relator ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 03/08/2015, p. 1º/02/2016), o Plenário da referida Corte firmou o entendimento de que "a reincidência não impede, por si só, a possibilidade de atipicidade material", sendo um dos "elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados", dentro de um "juízo amplo ('conglobante'), que vai além da simples aferição do resultado material da conduta". Ou seja, na sua percepção, embora a reincidência não afaste, por si só, o princípio da bagatela, esse elemento deve ser considerado.

Tal compreensão, contudo, com a devida vênia, parece desprezar, por completo, a inexistência, no caso sob exame, de elementos concretos que indiquem a necessidade da intervenção penal e da valorização negativa imposta, mormente quando notório o constrangimento dela decorrente, dado que penaliza o indivíduo "desviante", menos em razão daquilo que praticou, mas sim por aquilo que representa de acordo com a definição de que fora objeto (Bastida, 2006, p. 295).

Deveras, apesar de a conduta realizada pela paciente  em tese  se configurar como um crime, não se pode perder de vista que uma das principais características do sistema jurídico penal é a sua utilização como a ultima ratio. Logo, em tal contexto, a decisão do ministro  afastando a aplicação do princípio da insignificância porque a paciente já tinha duas condenações definitivas, por furto e receptação — se coloca em total desacordo com postulados basilares do Direito Penal, extraídos, sobretudo, da Constituição Federal, quais sejam, conformação do Estado democrático de Direito, Presunção de Inocência e Devido Processo Legal.

Ora! Não resta dúvidas de que o argumento empregado pelo Judiciário ao caso corrobora a perspectiva de recrudescimento da repressão penal, da estigmatização da criminalização da vida pregressa, dos antecedentes e da reincidência dos infratores da lei penal; além de denotar flagrante desprezo à situação de vulnerabilidade econômica vivenciada pela assistida da Defensoria.

Em vista disso, e sobretudo diante da tendência de enrijecimento das decisões dos tribunais superiores em matéria de crimes contra o patrimônio, tem-se a constatação de que o sistema de justiça brasileiro, em grande medida, vem sendo utilizado como um mero reprodutor da desigualdade, denunciando, às escâncaras, um enorme e indisfarçável desprezo aos mais pobres.

Convém anotar, quanto a esse ponto, que levantamento disponibilizado pelo 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, atesta que as políticas de encarceramento e o aumento de pena se voltam, via de regra, contra a população negra e pobre no País. Segundo restou apurado, entre os presos, 66,7% são pretos e 96% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda.

Nessa linha de defesa, não se deve olvidar do fato de que o recrudescimento na interpretação da lei penal por parte do Judiciário escancara o aumento no Brasil da aporofobia, expressão — criada pela filósofa espanhola Adela Cortina, recentemente incorporada ao léxico da língua espanhola e que já ganha foros globais — utilizada para designar, nas palavras da autora (2017, p. 07) verdadeiro "rechazo, aversión, temor y desprecio hacia el pobre, hacia el desampa rado que, al menos en apariencia, no puede devolver nada bueno a cambio".

Diante desse quadro, exsurge o traço aporofóbico da decisão do STF, que implicou negativa da incidência do princípio da insignificância, principalmente se considerada a pequena expressividade do valor monetário dos pacotes de fraldas subtraídas pela paciente, ante a existência de outras anotações na folha de antecedentes, relevando-se uma abordagem estigmatizante, seletiva e discriminatória do sistema de Justiça, o qual, não raras vezes, se ampara em conceitos e significantes desprovidos de cientificidade na seara criminal, contribuindo para a manutenção de pressupostos preconceituosos, discriminatórios e racistas, perspectiva que vaga entre as decisões sob o espectro do "criminoso nato", da periculosidade de classe, gênero e raça, segundo revela BARATTA (2004).

Por oportuno, note-se, seguindo a mesma proposta de Zaffaroni, o qual considera que a discriminação no exercício do poder punitivo é uma constante derivada de sua seletividade estrutural, Alessandro Baratta (2004) também sustenta que o sistema penal brasileiro deve ser interpretado a partir de seu viés seletivo, uma vez que é frequentemente utilizado para punir e demonizar os mais vulneráveis, enquanto as elites econômicas e políticas muitas vezes se evadem da atuação punitiva do estado. Percebe-se, pois, que a partir dessa seletividade, a proteção dos direitos humanos, tida por universal, é direcionada à uma pequena parcela de indivíduos.

Em virtude de tal compreensão, registra-se, a título de mera ilustração, que o tratamento dispensando aos mais desvalidos no país (tal como no caso acima ilustrado, da mulher que teve mantida a sua condenação pelo furto de quatro pacotes de fraldas na cidade de Montes Claros/MG, com base em sua reincidência) destoa, por completo, daquele conferido aos mais abastados que cometem delitos fiscais (Lei nº 8.137/90), os quais, contam com a possibilidade (benefício) da extinção da punibilidade pelo pagamento para livrar-se das sanções penais, por mais avançadas que vierem a estar eventuais investigações penais. Ainda, salta aos olhos a discrepância quando se constata a possibilidade de incidência do princípio da insignificância nos casos de crimes tributários (incluindo descaminho  artigo 334, CPB) nos casos em que o montante do tributo que deixou de ser pago for igual ou inferior a 20 mil reais.

Diante desse quadro, mesmo sem a pretensão de esgotar o tema, contudo, dada as inúmeras complexidades que o circundam e reconhecendo que o ato de construção de uma decisão judicial pode resultar num significativo impacto sobre a identidade constitucional, apresenta-se, como sugestão e como forma de tentar promover a gradual superação do padrão estrutural de desigualdade no país (que aflige enorme contingente de subcidadãos excluídos do projeto da sociedade vigente) o fomento à efetiva e real implementação da "oxigenação" dos tribunais brasileiros, possibilitando que membros da Defensoria Pública também tenham acesso à função julgadora e utilizem suas experiências e vivência profissionais para revitalizar a Justiça e minimizar a rigidez de alguns tribunais.

Por meio da regra do quinto constitucional (artigo 94, CF/88), a composição dos Tribunais é constantemente renovada, na medida em propicia que membros do Ministério Público e da Advocacia ingressem no Judiciário; tendo por objetivo ampliar a pluralidade de visões nas Cortes.

Contudo, a despeito do reconhecimento da própria simetria existente entre a Defensoria Pública e o Ministério Público, impõe-se reconhecer que a norma acaba por obstar que membros da Defensoria sejam contemplados por esta regra, o que implica inegável déficit democrático do processo hermenêutico e impede o necessário incremento da pluralização do debate nos julgamentos dos tribunais, quer seja pelo fato de a Defensoria ser engendrada como instituição com potencial de atuar em todo processo de construção da cidadania (provocando impacto efetivo na tutela de direitos por parte de grupos mais vulnerabilizados), quer seja por conta da constatação de tratar-se de instituição do Sistema de Justiça mais confiável e mais bem avaliada pela sociedade, conforme atestou pesquisa recente da Fundação Getulio Vargas.

Sobre o tema, asseveram Paiva e Fensterseifer (2019, p. 91) que o fato de os membros da Defensoria Pública não integrarem os tribunais estaduais e federais por conta da regra do quinto constitucional implica: "(…), sub-representação dos interesses (e defesa dos direitos) dos indivíduos e grupos sociais necessitados nas nossas Cortes de Justiça, perpetuando posição jurisprudencial (é fácil perceber isso, por exemplo, no âmbito penal) que lhes é desfavorável em muitos casos, haja vista que, por exemplo, o Ministério Público tem seu lugar reservado no âmbito do quinto constitucional. Ou seja, o discurso institucional do MP penetra nos Tribunais de forma muito mais efetiva, desequilibrando a balança da Justiça na relação entre acusação e defesa".

Cabe, ademais, rejeitar o argumento de que o acesso da Defensoria Pública à composição dos tribunais pode ocorrer por meio das seccionais e do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), uma vez que já restou assentado pelo STF (RE nº 1240999/SP) o entendimento de que a Defensoria Pública é uma instituição autônoma e com regime próprio — concluindo que a exigência de inscrição dos defensores públicos na OAB é inconstitucional.

Nessa toada, sobretudo diante da necessidade de garantir uma abordagem mais atenta e humanizada às pessoas e grupos vulnerabilizados, é que restou apresentada Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de número 488/2010, prevendo a modificação do artigo 94 da CF/88, notadamente com o objetivo incluir a carreira dos defensores públicos no quinto constitucional.

Seguindo essa linha de reflexão, prega-se o fomento à reversão dos padrões de desigualdade e o combate aos traços aporofóbicos do sistema penal por meio do incremento da democratização do judiciário brasileiro e consequente alteração da norma referente ao quinto constitucional, além do estimulo à nomeação de membros da Defensoria Pública para ocupar vagas nos tribunais superiores no Brasil, dado o inquestionável potencial papel transformador da instituição (a qual, é traçada constitucionalmente como expressão e instrumento do regime democrático, além de figurar como imprescindível porta-voz da população necessitada) e a indubitável vocação de seus membros de sempre atuarem no sentido de tentar conter a exacerbação do controle penal contra os mais alijados no país.

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Referências
BASTIDA, Xacobe. Los Bárbaros em el Umbral Fundamentos Filosóficos del Derecho Penal de Enemigo, en Derecho Penal de enemigo  El discurso Penal del la Exclusión, Volumen 1, Edisofer-Libros Jurídicos, Editorial Ibef: Montevideo-Buenos Aires, 2006.

BARATTA, Alessandro. Criminología Crítica y Crítica del Derecho Penal. Siglo XXI Editores: Avellaneda-Argentina, 2004.

CORTINA, Adela. Aporofobia, el rechazo al pobre. Un desafío para la democracia. Barcelona: Paidós, 2017.

PAIVA, Caio; FENSTERSEIFER, Tiago. Comentários à Lei Nacional da Defensoria Pública. Belo Horizonte: CEI, 2019.

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