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Avaliação de desempenho no alcance dos objetivos da política monetária

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

11 de julho de 2023, 8h00

No âmbito do Direito Público, qualquer regime jurídico que confira autonomia pressupõe necessariamente correlata aferição de responsabilidade em torno do adequado alcance dos fins que justificaram aludida liberdade majorada. Essa é uma decorrência lógica da relação de instrumentalidade entre poderes e deveres de quem atua em nome dos interesses da sociedade.

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Muito embora tal concepção seja trivial para os operadores do Direito, pretender sua implementação cotidiana no âmbito da política monetária ainda soa como se fosse uma agenda quase revolucionária. Todavia é preciso pautar a necessidade de um devido processo administrativo para que se possa verificar, em especial, a ocorrência da hipótese prevista no artigo 5º, inciso IV da Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021. Interessa-nos, aqui, refletir sobre a ainda frágil densidade normativa da sanção disciplinar de perda de mandato aplicável ao presidente e aos diretores do Banco Central do Brasil (BCB) "quando apresentarem comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos" legais atribuídos à autarquia.

Há cerca de 30 meses foi conferida formalmente autonomia funcional aos agentes públicos responsáveis pela condução da política monetária no Brasil, mediante mandato quadrienal instrumentalmente vinculado ao alcance dos objetivos previstos no artigo 1º da LC 179. Não obstante isso, ainda persiste sem qualquer regulamentação o fluxo procedimental sobre como serão equacionados os objetivos, por vezes, conflitantes da estabilidade de preços, de um lado, e do fomento ao pleno emprego e da suavização dos ciclos econômicos, de outro; enquanto o objetivo de estabilização do sistema financeiro segue pragmaticamente consensual e, por isso, pouco exposto a divergências ou tensões.

Fato é que, na ausência de balizas normativas objetivas, impera razoável controvérsia sobre o nível de transparência e de motivação no processo administrativo conduzido pelo Banco Central para perseguir concomitantemente os quatro objetivos que lhe franquearam regime especial de autonomia. O nó górdio do ainda opaco e potencialmente arbitrário regime jurídico do BCB reside na redação dúbia do parágrafo único do artigo 1º da LC 179/2021, porque ali foi fixada uma espécie de subordinação dos objetivos complementares de "zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego" ao objetivo fundamental de "assegurar a estabilidade de preços".

Mesmo após o advento da LC 179, o Banco Central mantém seu modo de operação direcionado quase exclusivamente ao controle da inflação, na medida em que apenas residualmente foi alterada a motivação das suas decisões para sustentar a tese implícita de que o alcance dos outros três outros objetivos seria uma decorrência natural da defesa da estabilidade de preços.

É como se a autoridade monetária, a pretexto de controlar a inflação, simplesmente negasse a necessidade de qualquer medida especificamente direcionada ao alcance das demais finalidades que lhe justificaram o regime legal de autonomia. Ora, uma coisa é subordinar os objetivos complementares ao objetivo fundamental, mas buscar alcançá-los em diferentes níveis e velocidades de consecução intertemporal; outra coisa muito diversa é simplesmente ignorar parte dos objetivos, pressupondo que eles serão obtidos por obra espontânea do mercado, após a estabilização dos preços.

Não é demasiado lembrar, pois, que a diferença entre o veneno e o remédio reside na sua dosagem. Eis a razão pela qual saber a proporcionalidade adequada para equalizar a pluralidade de objetivos a cargo do BCB é uma escolha de alta relevância não só para a economia, mas para toda a sociedade, dada a considerável repercussão dos juros para o custo de carregamento da dívida pública brasileira.

Problema se sucede quando o nível de emprego e o próprio impacto fiscal da política monetária para a dívida pública são desproporcional e abruptamente afetados pela velocidade e pela intensidade da elevação da taxa básica de juros, bem como por sua manutenção em patamar alto por um intervalo de tempo significativamente dilatado. Vale lembrar que o BCB empreendeu de março de 2021 a agosto de 2022 uma significativa majoração da taxa Selic, subindo-a de 2% para 13,75% e, desde então, tem mantido os juros básicos em tal patamar, a despeito do arrefecimento da inflação, o que, em termos práticos, implica — direta ou indiretamente — a escolha pela expansão da taxa real de juros ao longo do último ano.

Daí se explica a razão pela qual a imprensa noticia que o Brasil ostenta a maior taxa de juros real do mundo:

"Com a manutenção da taxa básica de juros (a Selic) em 13,75%, o Brasil continua ocupando o primeiro lugar no ranking de nações com a maior taxa de juros reais. A taxa, descontada a inflação prevista para os próximos 12 meses, é de 7,54%. O México, que aparece em segundo lugar no levantamento, tem taxa de juro real de 5,94%. A compilação foi feita pelo site Moneyou.

'Trata-se da sexta reunião consecutiva do Copom em que o Brasil mantém a primeira posição nesse ranking de 40 países', diz o economista Jason Vieira, responsável pelo levantamento."

A equação é deveras complexa e foi bem resumida pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, após o anúncio da manutenção da taxa Selic em 13,75% na mais recente reunião do Comitê de Política Monetária do BCB (concluída em 21/6/2023):

"Quase metade da dívida pública brasileira é selicada [indexada à Selic]. Então, cada 1% da taxa Selic custa R$ 38 bilhões [de pagamento do serviço da dívida pública]. Não há nada pior para a questão fiscal do que uma Selic desnecessariamente elevada. Então, R$ 38 bilhões a cada 1%, se você tem uma taxa 5% acima do que deveria estar, isso custa praticamente 190 bilhões […] Você fica fazendo economia de um bilhão, meio bilhão, e acaba gastando aí quase R$ 200 bilhões em razão de ter uma taxa Selic nessa altura"

O cálculo aventado pelo vice-presidente de um custo de cerca de R$ 190 bilhões anuais pela manutenção da taxa Selic em patamar de 5% acima do que seria supostamente razoável para a realidade econômica do país expressa precisamente o desafio de equalizar a proporcionalidade no alcance de todos os objetivos que o Banco Central foi legalmente incumbido de perseguir.

Tamanha é a repercussão fiscal dos juros que se revela, no mínimo, irônico o fato de o Banco Central manejar, como argumento para manter a taxa Selic alta, um controverso risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública. Conforme defendemos em artigo especificamente destinado ao exame dos limites da atuação discricionária do BCB, é nula a decisão da autoridade monetária que se lastrear no motivo insubsistente da trajetória da dívida pública, usurpando competência do Congresso Nacional e do Tribunal de Contas da União, dada a lacuna normativa relativa aos limites de dívida mobiliária e consolidada da União e considerada a própria falta de lei complementar que esclarecesse a noção de sustentabilidade da dívida pública (respectivamente artigos 48, XIV, 52, VI e 163, VIII da CF/1988).

Mas não apenas isso se coloca como desafio, porque a forma como o Banco Central capta as expectativas de inflação junto a cerca de apenas 140 instituições financeiras e as internaliza como insumo informacional relevante para seu ciclo decisório dá ensejo a risco potencial de conflito de interesses, como esta articulista e Simone Deos expusemos aqui.

As controvérsias se avolumam, sem que lhes seja contraposta uma robusta processualidade administrativa que resguarde transparência, motivação e impessoalidade para o ciclo decisório da autoridade monetária e, sobretudo, que avalie o alcance de todos os objetivos legalmente impostos ao Banco Central como seus deveres inalienáveis.

Como não há palavras inúteis na lei e como há a expressa previsão de perda de mandato por "comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance dos objetivos do Banco Central do Brasil", impõe-se a devida regulamentação da LC 179/2021 para que se possa — consistentemente — monitorar a pluralidade de tais objetivos, bem como para haja uma efetivamente adequada correlação entre autonomia e responsabilidade dos seus diretores e presidente.

Sem um devido processo administrativo de avaliação de desempenho da política monetária (accountability), a autonomia conferida aos dirigentes do Banco Central corre o risco de se corromper em arbitrariedade avessa aos limites do ordenamento constitucional brasileiro, capaz de impor impactos extremamente danosos ao erário e à sociedade. Após 30 meses de lacuna normativa, não podemos mais tardar em regulamentar a Lei Complementar 179/2021.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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