Contas à Vista

Limites da ação discricionária do BC diante de omissões regulamentares

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

28 de março de 2023, 8h00

Omissões normativas sobre conceitos sensíveis têm propiciado que seja alargada de forma indevida a discricionariedade do Banco Central (BC). Agir para além das estritas balizas do ordenamento tende a se revelar uma conduta temerária, na medida em que os atos dos dirigentes da autarquia podem vir a ser impugnados por eventual desvio de finalidade [1], inconsistência dos motivos que determinaram seu agir [2] e atuação fora dos limites da sua competência legal [3]. Segundo a Lei de Ação Popular, essas hipóteses tendem a ensejar nulidade dos atos administrativos, sobretudo quando impuserem, entre outras dimensões, lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público.

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Na ausência de regulamentação legitimamente fixada pelas autoridades competentes, o vazio conceitual tem sido suprido pela autoridade monetária, por vezes, de modo a ampliar espaços de disputa hermenêutica para fins de "ancoragem de expectativas". Direta ou indiretamente, o BC promove uma arbitragem dinâmica e complexa sobre percepção de riscos que traz consideráveis impactos para o erário.

Em comunicado publicado na última quarta-feira, dia 22 de março, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central arrolou como "risco de alta para o cenário inflacionário e as expectativas de inflação", entre outras hipóteses, "a incerteza sobre o arcabouço fiscal e seus impactos sobre as expectativas para a trajetória da dívida pública".

Aludida percepção de risco integrou o conjunto de motivos declarados tanto para manter a taxa básica de juros em 13,75% ao ano, quanto para sinalizar a tendência de persistência desse patamar da taxa Selic por horizonte de tempo alargado, de modo a potencialmente alcançar o exercício financeiro de 2024. Segundo o Copom, "sem prejuízo de seu objetivo fundamental de assegurar a estabilidade de preços, essa decisão também implica suavização das flutuações do nível de atividade econômica e fomento do pleno emprego".

Do ponto de vista estritamente jurídico, a avaliação empreendida pelo Banco Central mobilizou dois grandes blocos conceituais que padecem de regulamentação adequada e, por isso, foram manejados discricionariamente pela autoridade monetária na fronteira da tensão hermenêutica que poderia vir a implicar usurpação de competência, desvio de finalidade e insubsistência dos motivos alegados.

O primeiro dos impasses interpretativos decorre da falta de regulamentação do que venha a ser "trajetória sustentável da dívida" e da inexistência dos limites de dívida mobiliária e consolidada da União. Uma vez ausentes tais balizas normativas, não é permitido a uma instância incompetente para o controle das contas públicas pretender apontar — ainda que implicitamente — suposto risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública brasileira, ainda mais para demandar superação de "incerteza" em torno de "arcabouço fiscal", cuja construção democrática compete aos poderes políticos da República.

Na ausência da lei complementar exigida pelo artigo 163, VIII [4], da lei ordinária demandada pelo artigo 48, XIV [5] e da resolução do Senado Federal prevista no artigo 52, VI [6], todos da Constituição Federal, não cabe ao Banco Central colmatar a lacuna normativa para — direta ou indiretamente — afirmar risco a partir de conceito tecnicamente inexistente e, o mais preocupante, para inferir consequências gravosas da "trajetória da dívida".

Ora, causa grande insegurança jurídica a invocação imprecisa e um tanto arbitrária dessa hipótese pela autoridade monetária, sobretudo porque traz consequências nada discretas para o próprio custo de carregamento da dívida.

Aliás, nesse contexto, é importante consignar que há divergência considerável em relação à pertinência de serem computados haveres financeiros efetivamente como dívida. Tampouco se pode confundir a noção normativa de sustentabilidade de trajetória da dívida com os parâmetros usualmente considerados para acompanhar a dívida pública brasileira, a saber, Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e Dívida Líquida do Setor Público (DLSP). Como o comportamento de tais indicadores não possui lastro normativo hábil, eles não podem ser manejados como referência válida e suficiente acerca da aludida trajetória, para os devidos fins constitucionais e legais.

Há diversas alternativas metodológicas e, obviamente, a depender do parâmetro que se observa, os cenários podem se revelar mais ou menos confortáveis para quem monitora a trajetória da dívida pública do país. A título de exemplo, vale destacar que, em sua nota de "Estatísticas Fiscais" para a imprensa divulgada em 28 de fevereiro deste ano, o Banco Central reportou que a DBGG havia alcançado o patamar de 73,1% em relação ao PIB (R$ 7,3 trilhões) em janeiro de 2023, enquanto a DLSP chegara a 56,6% em relação ao PIB (R$ 5,6 trilhões). São conceitos estruturalmente distintos e, a depender do manejo de um ou outro, condicionam o foco de análise para direções igualmente diversas. Vale destacar, em especial, o fato de que as operações compromissadas são instrumento de gestão de liquidez à disposição da autoridade monetária, estão computadas na DBGG e, por si só, correspondem a R$ 1,144 trilhão, ou seja, 11,5% do PIB (também conforme dados de janeiro deste ano).

Diante dos números acima, não deixa de ser controverso que o Banco Central aponte para a "incerteza sobre o arcabouço fiscal e seus impactos sobre as expectativas para a trajetória da dívida pública", como se a DBGG estivesse relacionada tão somente com as opções da política fiscal; quando, a bem da verdade, há severos impactos na dívida do manejo das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia.

Para fins de maior clareza sobre os impactos da política monetária sobre a dívida pública, ideal seria promover a substituição das operações compromissadas por mecanismos congêneres, a exemplo do instituto já em vigor desde a promulgação da Lei 14.185, de 14 de julho de 2021, a saber, os depósitos voluntários. Quase dois anos após a edição dessa lei, há apenas 0,8% do PIB em depósitos voluntários remunerados (R$ 78,097 bilhões).

Ainda há muito a avançar nesse cenário, até porque, com tal medida, a percepção no senso comum acerca do risco sobre a trajetória da dívida pública brasileira poderia ser mitigada em até 11,5% do PIB, já que os depósitos voluntários não são computados na DBGG.

De todo modo, ao invocar como um dos motivos determinantes para a manutenção da taxa básica de juros a percepção de risco sobre revisão das regras fiscais brasileiras e, ato contínuo, sobre a trajetória da dívida pública, o Banco Central extrapola sua competência legal e maneja uma razão frágil e insubsistente, porquanto, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, alínea "d" da Lei 4.717/1965, "tal matéria de fato em que se fundamenta o ato é juridicamente inadequada ao resultado obtido".

A esse respeito, Bráulio Borges, em artigo disponível aqui, bem evidencia as tensões conceituais e os potenciais conflitos de interesses:

"os indicadores de dívida pública em nosso país misturam os efeitos de operações de natureza puramente monetária (regulação da liquidez) com os efeitos decorrentes de decisões de política fiscal per se (acima e abaixo da linha), tornando imprecisa a comparação internacional de indicadores de dívida pública tradicionais.

[…] essa postura excessivamente conservadora da política monetária – que em certos momentos parecia atuar propositadamente dessa maneira para tentar induzir o andamento da agenda de reformas fiscais/econômicas (algo que não faz parte do mandato formal da autoridade monetária) – explica ao menos parte da retomada atipicamente lenta de nossa economia após a recessão de 2014-16 (em um contexto no qual a economia brasileira vem operando, desde 2015/16, com um grande excesso de ociosidade, segundo praticamente todas as estimativas disponíveis de hiato do produto).

[…] Isso me leva a um outro ponto que precisa ser atacado: o problema das 'portas giratórias' (revolving doors). A inclusão do objetivo de 'atividade' no mandato formal do BCB atenua (embora não resolva) um problema sério: o presidente e os diretores do BCB têm um claro incentivo para não permanecerem muito tempo nos cargos, bem como para serem 'falcões' (e não 'pombos'), pois muitos deles acabam utilizando o tempo de experiência no BCB como um trampolim para a carreira no setor privado, sobretudo no mercado financeiro — segmento que claramente valoriza mais os inflation hawks. Com efeito, esse é um tema que precisa ser endereçado por meio de nova legislação, possivelmente ampliando o tempo de quarentena (atualmente em 6 meses no Brasil, bem abaixo do observado em outros países/regiões), dentre outras medidas."

Enquanto a omissão regulamentar não é suprida pelo Congresso Nacional, em diálogo democrático com o Executivo, a lacuna conceitual deve interpretada, com parcimônia, pelas instâncias constitucionais competentes de controle, na forma do artigo 71 da CF/1988. Ora, somente o Poder Legislativo e o Tribunal de Contas da União (TCU) podem validamente avaliar a trajetória da dívida pública do país e diagnosticar formalmente potenciais riscos, no contexto dado pelo artigo 165, §2º [7] da CF, em interface com o anexo de riscos fiscais, a que se refere o artigo 4º, §3º da Lei de Responsabilidade Fiscal.

É oportuno lembrar que o TCU, no Acórdão 1084/2018-Pleno, ocupou-se de investigar a trajetória da dívida pública brasileira no período de 2000 a 2017, oportunidade em que assinalou:

"[…] enquanto os países ricos aumentaram sua dívida fundada em taxas de remuneração do capital racionais, bem como aproveitaram o fluxo de recursos em investimentos para elevar o produto interno bruno e o bem-estar social, no Brasil, a dívida caminha para os mesmos patamares dos países que compõem o G7, contudo, sem os mesmos benefícios e condições.

Dessa forma, a evolução da dívida sem esse aproveitamento econômico e social resultará em perda de oportunidade do país se financiar para alavancar o seu desenvolvimento.

[…] apenas com a obtenção de um ciclo de longo prazo de crescimento econômico será possível obter uma trajetória da dívida pública que seja sustentável. Caso mantenham-se as condições observadas nas últimas décadas, em que períodos de crescimento econômico moderado foram sucedidos por períodos de estagnação ou mesmo recessão, há o risco considerável de que a sustentabilidade da dívida não seja alcançada."

A todo tempo, a tese de uma suposta insustentabilidade da dívida pública brasileira tem sido manejada como mecanismo de constrangimento pretensamente neutro e técnico em prol de determinado fluxo de agendas reformistas, cujas oportunidade e conveniência, todavia, apenas competem às instâncias político-democráticas do Estado deliberar.

Nesse contexto, a opção pelo parâmetro mais alto de monitoramento da dívida bruta (73,1% do PIB na DBGG de jan/2023), em detrimento da dívida líquida (56,6% do PIB na DLSP também de jan/2023), pragmaticamente pode se prestar, entre outras finalidades, ao convencimento político (chantagem?) da necessidade de agendas restritivas da política fiscal, ao mesmo tempo em que acaba por validar a percepção de risco fiscal a ser precificada na busca pela manutenção ou pela alta da taxa Selic. Nisso, por sinal, reside um considerável potencial de desvio de finalidade.

Tal equação tende a se revelar falaciosa e até mesmo potencialmente danosa ao erário, em termos de precificação de juros pelos analistas do mercado financeiro consultados na forma do Boletim Focus, como uma das estratégias de captação da percepção de expectativas inflacionárias. Esse, por sinal, é o núcleo do severo risco de captura da autoridade monetária pelo mercado que ela deveria regular, sendo sua contenção imperativa até para que se resguarde autonomia equidistante não só em face dos governos de ocasião, como também em face dos operadores de mercado financeiro.

A sociedade não tem clareza acerca dos consideráveis impactos fiscais das políticas monetária, cambial e creditícia a cargo do Banco Central, quando é chamada, por exemplo, a suportar ajustes incidentes tão somente sobre despesas primárias (reduzindo o tamanho do Estado brasileiro, como propôs a Emenda 95/2016). O cidadão médio tampouco tem condições de resistir à narrativa de que haveria uma trajetória potencialmente insustentável para a dívida pública do país, mesmo quando contrastado com o precário estágio de oferta de direitos fundamentais e de investimentos governamentais.

Por fim, mas não menos importante, o segundo grande bloco de conflitos hermenêuticos reside na falta de definição do conjunto das metas da política monetária, para além do foco estrito nas metas de inflação, omissão essa que frustra o alcance da pluralidade de objetivos inscrita no parágrafo único do artigo 1º da Lei Complementar 179, de 24 de fevereiro de 2021.

O Banco Central deve se orientar primordialmente em torno do objetivo da estabilidade de preços, mas também deve tentar conciliá-lo — qualitativa e temporalmente — com a persecução dos objetivos complementares de (1) zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, (3) suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e (3) fomentar o pleno emprego.

Afinal, como bem diagnosticou o Acórdão TCU 1084/2018-Pleno, o baixo crescimento do PIB é o principal fator determinante para o risco de uma trajetória insustentável da dívida pública no Brasil. Paradoxalmente, a velocidade e a intensidade do manejo das taxas de juros podem agravar tal cenário de estagnação econômica e potencialmente comprometer a própria busca por sustentabilidade intertemporal da dívida.

Nesse contexto, seria oportuna uma ampla e profunda revisão do Decreto 3.088, de 21 de junho de 1999, para atualizá-lo, com fulcro no art. 84, IV da Constituição, em face da LC 179/2021, da Lei 14.185/2021 e outras normas de equivalente envergadura (como, por exemplo, Lei 13.820, de 2 de maio de 2019). Em 1999, o Decreto 3.088 foi paradigmático ao "estabelecer a sistemática de metas para a inflação como diretriz para fixação do regime de política monetária" e agora, em 2023, merece ser trazido novamente ao palco central das discussões, para fomentar o alcance equitativo de todas as finalidades que se atribuiu legalmente ao BC. Sua autonomia dada pela LC 179/2021 pressupõe um mandato necessariamente plural, sob pena de ilícita omissão punível na forma do artigo 5º, IV dessa Lei, quando restar "comprovado e recorrente desempenho insuficiente para o alcance [do conjunto] dos objetivos do Banco Central do Brasil".

Eis um momento deveras profícuo para rever o próprio regime de metas da política monetária, em busca da consecução — tanto quanto possível — harmoniosa dos quatro objetivos que o BC deve perseguir, para além do estrito foco nas metas de inflação.

Para delimitar e ressituar o espaço da discricionariedade do Banco Central, nada melhor que a normatividade democrática ocupar seu devido espaço em bases juridicamente sólidas e seguras.

Mais do que tensões políticas vocalizadas em arenas que dispersam energia dos envolvidos, é preciso conter quaisquer riscos de usurpação de competência, desvio de finalidade e inconsistência de motivos alegados por meio da normatividade que resguarda primazia à Constituição de 1988, em prol da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

 


[1] Segundo o art. 2º, parágrafo único, alínea "e" da Lei 4.717, de 29 de junho de 1965, "o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência".

[2] O art. 2º parágrafo único, alínea "d" da Lei 4.717/1965, dispõe que "a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido"

[3] De acordo com o art. 2º, parágrafo único, alínea "a" da Lei 4.717/1965, "a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou".

[4] Que assim dispõe: "Art. 163. Lei complementar disporá sobre:

[…] VIII – sustentabilidade da dívida, especificando;

a) indicadores de sua apuração;

b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;

c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;

d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;

e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida."

[5] A seguir transcrito: "Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:

[…] XIV – moeda, seus limites de emissão, e montante da dívida mobiliária federal."

[6] Cujo inteiro teor é o seguinte: "Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

[…] VI – fixar, por proposta do Presidente da República, limites globais para o montante da dívida consolidada da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;"

[7] Tal como se pode ler: "Art. 165. […] § 2º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, estabelecerá as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com trajetória sustentável da dívida pública, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento".

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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