Senso Incomum

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

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6 de julho de 2023, 8h00

1. Prolegômenos necessários
O texto a seguir deve ser lido despacito. E peço, uma vez mais e de antemão, que cumpramos a norma prevista no "princípio da caridade epistêmica", já trabalhado principalmente no texto intitulado "O STF, a prisão no júri e a decisão equivocada do ministro Barroso".

Spacca
Hoje desejo falar sobre

(i) o porquê (paradoxalmente) de o juiz das garantias ser necessário,
(ii) ou sobre porque não deveria ser necessário,
(iii) ou sobre como é necessário exatamente porque não deveria ser necessário,
(iv) ou sobre como o sintoma vem para tratar a doença.

Repito aqui o que falei em vários veículos e textos: o juiz das garantias é uma medida urgente e necessária, ainda que pareça estranho que ele seja necessário. Isto porque a imparcialidade deveria ser a regra, como já apregoava a Juíza-Deusa Palas Athena (da peça de Ésquilo). Um juiz das garantias soa como se outros fossem das não-garantias. Claro que não é assim. Mas vamos discutir isso.

2. Parcialidades invencíveis? Como lidamos até hoje com o processo penal?
O assunto é complexo. Diz-se que o juiz já fica(ria) comprometido desde a fase anterior. Seria uma "parcialidade invencível"? Se for isso, é porque nos acostumamos com determinadas coisas. Tornamo-las normais. De todo modo, a resposta está no interior da discussão do JG: por tudo o que se vê e se sente todos os dias neste complexo sistema de justiça em que Ministério Público faz agir estratégico e juiz ainda participa da construção da prova (veja-se a dificuldade no cumprimento do artigo 212 do CPP), parece que é quase consenso na comunidade jurídica a necessidade de um novo modelo.

Também virou quase consenso que, se o JG vai trazer (mais) imparcialidade ou menos parcialidade na área criminal, é porque o atual modelo não oferece imparcialidade suficiente. Tertius non datur.

3. O juiz das garantias diante do livre convencimento e da livre apreciação
Não deveria ser assim. Mas no Brasil situações como "livre apreciação da prova" (explícita na lei) e "livre convencimento" tornam essas questões de imparcialidade ou parcialidade mais complexas. Afinal, é fato que o próprio sistema admite que a apreciação do juiz é livre. E a maior parte dos processualistas com isso concorda, com o argumento de que isso é bom porque é melhor (supera) a prova tarifada, que, ao que eu lembre, ocorreu no início do século 19, quando não existiam constituições garantísticas e compromissórias e tampouco "boas tarifações", como é o caso do elenco das garantias do artigo 5º. da nossa CF/88. Ora, se a apreciação da prova é livre, por que nos surpreendemos com a "contaminação"?

Daí a necessidade de um parêntesis: para demonstrar o que estou dizendo, basta ver, por exemplo, o voto de um desembargador do Paraná que concede o habeas corpus ao acusado de homicídio porque esse fez uma limpeza, algo como "matou bem". O desembargador não participou da fase anterior do processo. Portanto, estava "descontaminado", se usarmos a linguagem corrente. Mesmo assim, não parece ter agido com imparcialidade. Na mesma linha, o que dizer de tribunais superiores que não seguem seus próprios precedentes? Agora mesmo o ministro Barroso proferiu voto ignorando o precedente das ADCs 43 e 44, sob o argumento de que a soberania dos veredictos vale mais do que o direito a recorrer em liberdade assegurado já por precedente vinculante (demonstrei que o uso da ponderação feita pelo ministro foi equivocada — o link está no primeiro parágrafo desta coluna). Uma adequada imparcialidade faria com que se obedecesse ao artigo 926 do CPC (coerência e integridade). Nem vou falar da desobediência dos artigos 489 do CPC e 315 do CPP.

4. O JG como alteração da estrutura e seu impacto simbólico
Desse modo, já que nos acostumamos tanto, o remédio para enfrentar essa "contaminação" parece ser a alteração da estrutura para que talvez tenhamos um juiz minimamente desconectado da fase anterior.

Pode vir a funcionar. Por isso sou a favor. Tenho o senso da realidade. E sei ser pragmático. A alteração pode trazer transformações simbólicas. E isso importa em um país que preza menos a lei do que a jurisprudência.

Isso não me impede de indagar: se na segunda fase o juiz continua a fazer a livre apreciação da prova ou que julgue por livre convencimento, o que garante a sua imparcialidade? Aqui começaria uma nova discussão — que necessariamente passa por uma teoria da decisão judicial.

Estruturalmente, com a aprovação do JG, dependendo do próprio comportamento da doutrina e da compreensão dos juízes, poderemos ter mais garantias para os acusados. O JG, nesse contexto, neste mundo da vida, é necessário em um país com um sistema teimosamente inquisitivo (a prova disso é o modo como se estrutura o processo, em que a livre apreciação está no centro) [1]. Temos de admitir isso. Ou vamos todos para um divã.

5. Por que não há qualquer óbice constitucional à implantação do JG
Em termos constitucionais, não há óbice formal ou material para que o STF julgue válido o JG. O legislativo é competente e a Constituição não veda. Simples assim.

Porém, para além da declaração da constitucionalidade, há muita coisa a ser feita. Se não nos dermos conta disso, continuaremos a ter uma coisa com o nome de outra. O meu ponto, permitindo-me um grau de platitude, é que, numa república, todo juiz deveria ser "das garantias".

Acompanhem o raciocínio: todos queremos que juízes sejam imparciais, certo? Imparcialidade não é uma questão de aplicação mecânica ou exegetismo (textualismo). Isso já foi superado há séculos. Mas se o juiz deve ser imparcial, por que precisamos de um juiz das garantias?

Repetindo: sou a favor por razões pragmáticas. Aplaudo. Sou contra o estado de coisas que nos faz precisar do juiz das garantias.

E sou contra esse estado de coisas — e a favor do JG — exatamente por saber que é esse mesmo estado de coisas que não "garante" que o juiz das garantias garanta a solução para o problema da (im)parcialidade.

Quem cuida dos cuidadores? Já é um problema clássico. Hobbes resolvia com o Leviatã. Alguém precisa pôr ordem.

E quando o juiz das garantias age com parcialidade? Criaremos um juiz das garantias do juiz das garantias? E depois outro? E então mais um?

6. Por que a imparcialidade deve ser o modo-de-ser do juiz
A imparcialidade faz parte do juiz-como-juiz. A coisa como-coisa já deveria trazer a própria desnecessidade do juiz das garantias. E o cenário que o torna necessário é o mesmo cenário que pode vir a torná-lo inútil. Essa é a grande questão.

Sou, portanto, um aliado nessa luta. Insuspeito quanto a isso, acho. Estamos na mesma trincheira. Saúdo o juiz das garantias. Mas quero ir além do JG. Há mais coisas a conquistar. Mas reconheço o jogo difícil.

Insisto que o problema está no modo como concebemos a gestão da prova. Não existe (re)estrutura que supere um universo jurídico que aceita que juiz decide com discricionaridade com o argumento de que "é assim e pronto", "não tem o que fazer".

Não há garantias que sejam garantidas quando até garantistas acreditam em ficções como "o livre convencimento veio pra superar a prova tarifada". Falei (d)isso para o próprio Sergio Moro, em debate em 2015, quando poucos enxergavam que o rei estava nu. Moro me respondeu: " Tenho livre convencimento". E ainda tentou tirar onda comigo, dizendo "afinal, o livre convencimento veio para superar a prova tarifada"? Respondi: " Ah sim, obrigado. Eu não 'sabia' (ironia)". E acrescentei que, com juízes como ele, eu preferia um textualista ou até mesmo a própria tarifação — mormente porque a "tarifação" nas constituições garantidoras é benfazeja (ou alguém acha que a própria garantia da imparcialidade pode ser superada por livre convencimento ou uma nulidade da prova pode ser superada por convencimento livre)? E assim a vida continua.

Estou escrevendo um livro sobre isso. Sobre as origens. Com dados empíricos. Onde morou o juiz boca da lei? Ele habitou em algum canto do Direito brasileiro? Onde e como a tal "superação" da prova tarifada ocorreu no Brasil? E se ainda se pode falar em "superação" a um tempo em que temos um elenco de neotarifações riquíssimas como o elenco das garantias do artigo 5º da Constituição. E, mais grave: alguma garantia pode ser superada por livre convencimento?

Enfim, tudo isso torna o juiz das garantias paradoxal. Por paradoxal que possa parecer, paradoxalmente o JG é necessário.

Precisamos do juiz das garantias. Que pena. Mas precisamos.

Só que meu papel, aqui, será o de lembrar que não resolveremos os problemas da crise do Direito no Brasil (que, aliás, vai ao ponto de necessitarmos de um JG) se não superarmos o problema de um ensino jurídico que reproduz o senso comum teórico.

Um bom exemplo é que falamos em "precedentes qualificados" e não resolvemos até hoje o problema sobre o que é um precedente. Abundam os estudos sobre inteligência artificial e até hoje não resolvemos a questão da prova no Brasil.

E aí queremos resolver a livre apreciação com um novo juiz. Quase hobbesianamente. Só que Hobbes sacou, homem de seu tempo, que uma hora isso precisa terminar.

Ao contrário de Hobbes, sou um otimista metodológico.

Por enquanto, sou a favor do juiz das garantias. Claro que sim. Mas meu otimismo também é cauteloso: sou favorável, consciente de que só sairemos dessa quando resolvermos o problema da gestão-compreensão do que é isto — o processo, o que é um precedente e sobre o que é isto — o livre convencimento e a livre apreciação da prova.

Sou a favor do juiz das garantias. Mas vou sempre lembrar que todo juiz deveria ser das garantias.

7. O voto do ministro Fux e o conceito de interpretação conforme
Por fim e não menos importante: li o voto do ministro Luiz Fux. Ele legislou. Isso precisa ser dito. Ao fazer interpretação conforme, fez vários novos textos. Reescreveu a lei. E isso é vedado ao Judiciário. Mais grave ainda é fazer interpretação em desconformidade com a lei e com a Constituição.

Interpretação conforme não altera o texto, apenas a norma. Se alterar o texto, o Judiciário legisla. Porque o Judiciário cuida do passado e o Legislativo cuida do futuro. Quem escreve textos é o Legislativo.

Normas — o sentido que é dado ao texto — não podem alterar o próprio texto. Judiciário pode anular textos. Interpretação conforme é dar sentido que conforme a lei (no seu texto) à Constituição, sendo que, para isso, altera-se a norma (que é sempre, conforme nos ensina Müller, o produto da interpretação do texto). Essa é a tradição.

Trago aqui alguns comentários sobre isso. O primeiro, de Canotilho: "o aplicador de uma norma não pode contrariar a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo [que] através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais". O segundo é Luís Roberto Barroso, para quem "não é possível ao intérprete torcer o sentido das palavras nem adulterar a clara intenção do legislador". O terceiro é Gilmar Mendes, para quem, na jurisprudência do STF, os limites à interpretação conforme a constituição resultam tanto da expressão literal da lei quanto da vontade (concepção original) do legislador.

Posso até, no limite dos limites, encontrar guarida em redefinições textuais mínimas — porém, o caso do JG, como posto pelo voto do ministro Fux, refoge a qualquer dessas possibilidades. Vejamos o que dirão os demais ministros.

 


[1] No Dicionário de Hermenêutica, discuto os conceitos de livre convencimento e livre apreciação da prova à luz da filosofia e do direito estrangeiro. São dois verbetes que tratam da matéria.

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