Controvérsias Jurídicas

Sujeito ativo e a consumação do delito do artigo 1º, caput da Lei de Lavagem

Autores

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

  • Fabia Puglisi

    é advogada mestranda em direito penal pela PUC-SP especialista na tutela de direitos difusos e coletivos professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

6 de julho de 2023, 8h00

Em artigo anterior desta coluna [1], foram feitas algumas considerações acerca do elemento subjetivo do caput do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), concluindo-se pela impossibilidade de tipificação do delito em comento a título de dolo eventual e inaplicabilidade da Teoria de Cegueira Deliberada (Willfull Blindness Doctrine) no ordenamento jurídico pátrio. Isso porque quem oculta, quer esconder. Se quer esconder, é porque tem consciência da necessidade de fazê-lo. Esconde porque sabe que precisa esconder, e sabe que precisa esconder porque conhece a origem ilícita do que está escondendo. Assim, tal consciência da necessidade exige conhecimento inequívoco da origem ilícita do bem ocultado. Com efeito, só oculta quem quer esconder algo que sabe ser ilícito.

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Nesta oportunidade, prossegue-se com a análise do tipo penal no tocante ao polo ativo, ou seja, quem poderá responder pela prática delitiva e algumas considerações sobre o momento consumativo.

O delito de ocultar ou dissimular a origem ilícita de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal, por não exigir nenhuma qualidade especial do agente, trata-se de crime comum, no qual qualquer um pode figurar como sujeito ativo do delito em comento.

Segundo a doutrina, pode ser sujeito ativo desse crime o autor, coautor ou partícipe da infração penal antecedente [2], não constituindo a lavagem de dinheiro "post factum impunível". Afasta-se, assim, a incidência do princípio da consunção. Deverá o agente, no caso, responder pelo concurso material de crimes, dado que, além de as condutas serem praticadas em momentos distintos, ofendem bens jurídicos diversos. Nesse sentido, para o STF [3] "A lavagem de dinheiro é crime autônomo, não se constituindo em mero exaurimento do crime antecedente".

Todavia, tal entendimento não é isento de críticas. Parte da doutrina sustenta que o delito posterior, ou seja, a lavagem de dinheiro, constitui fato posterior não punível para o sujeito ativo do crime antecedente e a inexigibilidade de conduta diversa, por não ser exigível do infrator outra conduta que não a de esconder o produto ilícito obtido com a infração antecedente.

Entendemos que a lavagem de dinheiro pode configurar delito autônomo ou mero exaurimento, dependendo das circunstâncias do caso concreto. Se o fato subsequente (a lavagem) estiver na mesma linha de desdobramento causal do crime antecedente, isto é, se for praticada dentro do mesmo contexto fático, não haverá concurso de crimes. Este, portanto, o fator decisivo para a questão: similitude de contextos fáticos, sendo imprescindível a análise das circunstâncias de tempo e lugar.

Isso porque, para a incidência do princípio da consunção, é necessário que o fato seja considerado parte de um todo, ora como meio preparatório ou normal fase de execução do delito mais abrangente, ora como nova agressão ao mesmo bem jurídico sem configurar outro crime. Neste último caso, a continuidade da ação implica em mero exaurimento de uma infração penal já consumada.

Deste modo, caso fosse punida também como delito autônomo, a ação estaria sendo apenada duplamente, configurando bis in idem. Ao punir o todo, puniu-se a parte, sendo inadequado puni-la novamente. Para tanto, é imprescindível a similitude de contextos fáticos. Tratando-se de comportamentos destacados no tempo e no espaço, não há que se falar em consunção, mas, ao contrário, quando ambos os comportamentos estiverem na mesma linha de desdobramento causal, haverá consunção do fato antecedente, considerado meio preparatório, ou do consequente, como mero exaurimento. Como já ressaltado, a razão de ser desse princípio é evitar o bis in idem, ou seja, que o sujeito responda duas vezes pelo mesmo fato, como parte de um todo e como crime autônomo. Assim, por exemplo, se o autor de uma corrupção passiva recebe pagamento em dinheiro vivo ou mediante algum tipo de simulação, como por exemplo venda de imóvel por valor superior ao declarado, ou compra por valor inferior, incide a consunção, pois se trata de uma mesma ação. A forma de recebimento da vantagem ilícita não configura delito autônomo de lavagem, pois está ínsita no próprio delito antecedente de corrupção.

Ao contrário, se o sujeito, após realizar a ação delituosa (crime antecedente), prática outra conduta para simular ou ocultar o produto do crime, dificultando a localização do ativo, neste caso haverá concurso de crimes, não se podendo falar em uma única ação, pois os comportamentos foram distintos e destacados no tempo e no espaço. Após consumada a infração anterior, foram realizados outro conjunto de atos tendentes a efetivar ocultação ou dissimulação dos valores já incorporados ao patrimônio do autor, mas ainda sem aparência de licitude.

No tocante à consumação, trata-se de crime formal, isto é, perfaz-se com a ocultação ou dissimulação dos bens, direitos ou valores, independentemente de serem introduzidos no sistema econômico ou financeiro [4].

A doutrina majoritária entende tratar-se de crime permanente. "Assim, ainda que o agente consiga concluir uma operação, encobrindo a natureza, localização etc. de um bem ou valor, o fato é que nem a ocultação, nem a dissimulação, desaparecem com a concretização da mesma" [5], isso porque a jurisprudência tem interpretado tipos penais com o verbo ocultar como permanentes, como a ocultação de cadáver (CP, artigo 211): "O crime previsto no artigo 211 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, se encontrado o cadáver após atingida a maioridade, o agente deve ser considerado imputável para todos os efeitos penais, ainda, que a ação de ocultar tenha sido cometida quando era menor de 18 anos" [6] e de ocultação de documento (CP, artigo 305): "O delito do art. 305 do Código Penal, na forma ocultar, é permanente. Logo, sua consumação se protrai no tempo, o que impede, na espécie, que se reconheça a extinção da punibilidade em virtude da prescrição da pretensão punitiva" [7].

O STF corrobora com o mesmo entendimento: "Assentado pelo Plenário desta Suprema Corte que o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade ocultação, é de natureza permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos" [8] e "o crime de lavagem de bens, direitos ou valores, quando praticado na modalidade típica de 'ocultar', é permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos, razão pela qual o início da contagem do prazo prescricional tem por termo inicial o dia da cessação da permanência, nos termos do art. 111, III, do Código Penal" [9].

A ocultação, de fato, configura delito permanente, uma vez que, enquanto os valores estiverem escondidos ou camuflados, eles permanecerão ocultos, protraindo-se no tempo a ação. No caso da dissimulação, porém, é possível que ocorra uma ação instantânea com efeitos permanentes, a depender da forma como o ardil for produzido. Por exemplo, compra subfaturada de imóvel, na qual o autor de corrupção passiva adquire o bem com valor bem inferior ao seu valor real. Neste caso, o crime se consumou no exato instante do negócio com valor simulado, mas seus efeitos permanecerão.

A diferença entre o crime permanente e o instantâneo de efeitos permanentes reside em que neste último (como a própria expressão sugere) a consumação se dá no momento exato da produção do resultado, de modo que somente seus efeitos perduram no tempo. No permanente, ao contrário, a ação não se esgota em um só instante, mas se renova a todo momento, assim como a produção do resultado. No caso da lavagem, se a ocultação fosse considerada delito instantâneo, ela estaria consumada no exato momento em que o agente realizasse a conduta. Não é isso o que ocorre, no entanto, pois, enquanto o agente mantiver escondido o produto da infração penal antecedente, a ação de ocultar estará sendo realizada. Não são os efeitos da ocultação que perduram no tempo, mas ela própria, a qual vai se estendendo enquanto não for interrompida. Por essa razão, enquanto os bens de origem ilícita estiverem sendo ocultados, o sujeito estará em situação de flagrância, além do que o lapso prescricional não se inicia até a cessação da permanência, nos termos do artigo 111, III, do CP.

Em entendimento parcialmente diverso, Pierpaolo Cruz Bottini [10] sustenta que ambas as formas configuram delito instantâneo de efeitos permanentes, destacando os efeitos da permanência delitiva na aplicação da lei penal no tempo: "Parece mais adequada do ponto de vista político criminal a caracterização da lavagem de dinheiro como crime instantâneo de efeitos permanentes. O injusto está consumado no ato da ocultação, e sobre ele incidem as normas vigentes à época dos fatos, da conduta e do dolo. As alterações legislativas posteriores não abarcam esse comportamento pretérito (a não ser as favoráveis ao réu) mesmo que os bens permaneçam ocultos".

Destaca-se também que não é necessário que a ocultação seja sofisticada, perfeita e impossível de ser descoberta para que o delito se consume, segundo entendimento do STF [11], replicado em decisão de 2021 pelo STJ [12]: "Conforme a célebre lição do Min. Sepúlveda Pertence, o tipo não reclama nem êxito definitivo da ocultação, visado pelo agente, nem o vulto e a complexidade dos exemplos de requintada 'engenharia financeira' transnacional, com os quais se ocupa a literatura".

 


[2] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 92, e Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 52.

[3] STF – HC: 92.279 RN, relator: JOAQUIM BARBOSA, data de julgamento: 24/6/2008, 2ª Turma, Data de Publicação: DJe 19/9/2008

[4] Rodolfo Tigre Maia, Lavagem de dinheiro, cit., p. 81; Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 43-44; e Marco Antonio de Barros, Lavagem de dinheiro, cit., p. 46-47.

[5] Marcia Monassi Mougenot Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim, Lavagem de dinheiro, cit., p. 44.

[6] STJ – REsp: 900509 PR 2006/0224593-1, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 26/06/2007, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 27/08/2007 p. 287

[7] STJ – HC: 28837 PB 2003/0101067-4, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 16/03/2004, T5 – 5ª TURMA, Data de Publicação: DJ 10/05/2004, p. 312

[8] STF – HC: 160225 RJ 0075634-83.2018.1.00.0000, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 29/05/2020, 2ª Turma, Data de Publicação: 06/08/2020

[9] STF – AP: 863 SP – SÃO PAULO 0000732-48.2007.1.00.0000, Relator: Min. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/05/2017.

[10] Bottini, Pierpaolo Cruz e Badaro, Gustavo Henrique. Lavagem de Dinheiro. 5ª Ed. Editora Thompson Reuters, 2023.

[11] STF, 1ª Turma, RHC 80.816-6/SP, DJ de 18-06-2001

[12] STJ – AREsp: 293896 RS 2013/0038987-7, Relator: Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, Data de Publicação: DJ 04/06/2021

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

  • é advogada, mestranda em direito penal pela PUC-SP, especialista na tutela de direitos difusos e coletivos, professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

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