Opinião

Autolavagem e delito de corrupção passiva

Autores

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

  • Raul Marques Linhares

    é advogado criminalista doutorando e mestre em Direito Público sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

31 de janeiro de 2023, 21h42

Segue sendo polêmica na jurisprudência a questão da punição, em concurso material, do sujeito que comete o delito de corrupção passiva e o posterior delito de lavagem de dinheiro; isto é, após o recebimento da vantagem indevida, o sujeito acaba ocultando os valores ilicitamente recebidos. Essa questão pode oferecer diversas matizes e interpretações, pois, como já escrevemos anteriormente, o simples fato de receber os valores e, posteriormente, ocultá-los, não necessariamente tipifica o delito de lavagem de dinheiro. Aliás, como já referimos, na maioria dos casos, haverá o mero exaurimento do crime de corrupção passiva, pois o recebimento da vantagem indevida, mesmo que de forma dissimulada (por exemplo, por meio de conta bancária de laranja), é ínsito ao tipo penal de corrupção: aquele que solicita a vantagem indevida, em um segundo momento, irá recebê-la.

Spacca
Criminalista André Callegari

Isso não significa que não possa ocorrer a lavagem de dinheiro oriunda de um delito prévio de corrupção passiva. Mas, para que ocorra tal delito de lavagem posterior, o sujeito que recebe os valores indevidos não os receberá com a mera finalidade de aproveitamento do fruto do delito de corrupção antecedente, mas sim com uma finalidade diversa, que será a de dar aparência de licitude aos valores já recebidos. Além disso, as condutas posteriores ao delito de corrupção deverão representar uma lesão ou um risco à ordem socioeconômica (bem jurídico tutelado pela criminalização da lavagem de dinheiro) [1].

De outro lado, também se pode utilizar o argumento, em prol da impunidade da autolavagem nos atos decorrentes da corrupção passiva, da absorção dos atos posteriores pelo delito de corrupção anterior, quando o aproveitamento dos valores recebidos já estaria absorvido pela própria tipicidade prévia. Neste caso, estamos tratando da autolavagem de dinheiro impunível, na qual os atos posteriores restariam impunes.

Na Espanha, estes atos são denominados "copenados", e são atos que por si só realizariam um tipo de delito, mas que acabam consumidos por outro delito ao qual seguem. A razão para essa conclusão é que tais atos constituem a forma de asseguram ou de realizar um benefício obtido ou perseguido por meio do fato anterior, e não lesionam nenhum bem jurídico distinto àquele vulnerado por este fato anterior, nem aumentam o dano produzido por ele [2].

Bermejo aponta que a solução ao redor da controvérsia sobre a punibilidade da autolavagem deve partir da consideração dos atos de lavagem como atos "copenados", ou seja, atos que são consumidos pelo delito antecedente (consunção). Assim, a razão pela qual não é punível a autolavagem se encontra na teoria do concurso aparente de delitos: a lavagem pode consistir em um ato posterior "copenado". Mas deve se recordar que um dos requisitos para que um delito possa ser considerado como um ato posterior "copenado" é que tal ato não lesione um novo bem jurídico. Entretanto, essa regra possui uma exceção: quando o segundo delito, ainda que lesione outro bem jurídico, não agregue um plus de reprovabilidade, que não possa se considerar "saldado" com a pena do delito anterior [1].

Nos casos do delito de corrupção passiva, não nos parece que ocorra nova afetação de um bem jurídico quando o sujeito simplesmente possui a finalidade de receber os valores solicitados, e, ainda que os oculte, essa ocultação por si só não tem a capacidade de tipificar os atos em lavagem de dinheiro. Numa coerência lógica de argumentação, a lavagem exige a colocação em risco de um novo bem jurídico. No caso da corrupção, o mero aproveitamento dos valores recebidos ainda não possui capacidade de tipificar um ato de lavagem. Como já mencionamos, ou tal contexto se insere dentro do próprio exaurimento do tipo penal de corrupção, ou, ainda, de um ato posterior impune por não ferir novo bem jurídico tutelado de maneira relevante. A lavagem poderia existir, nesse caso, quando o sujeito se utiliza de novos mecanismos para inserir os valores obtidos no sistema financeiro, dando-lhes aparência de licitude, com novas condutas dotadas da ofensividade que é própria à lavagem.

Como já havíamos mencionado ao princípio, as dúvidas persistem sobre a possibilidade da punição da autolavagem. Nesse sentido, Corcoy Bidasolo adverte, sobre sua legitimidade e eventual inconstitucionalidade, que tal situação: a) ilude a proibição do ne bis in idem; b) converte um concurso de leis em concurso de delitos, por ser a lavagem um ato posterior "copenado" (impune) para o responsável do delito originário; c) castiga o exaurimento delitivo (não teria legitimidade o castigo em meros casos de desfrute ou transformação dos bens de um delito em bens de consumo); d) é caso de "autoencumbrimento" em que não se pode exigir outro comportamento do agente [2].

Em nosso entendimento, é possível a punição da autolavagem (ou seja, a responsabilização de um mesmo agente pela prática tanto da infração penal antecedente, quanto da lavagem posterior), desde que respeitados critérios restritivos (que sejam realizados atos autônomos, em momento posterior à consumação do delito prévio etc.). No caso da corrupção passiva, entretanto, quando houver o recebimento de vantagem indevida de forma dissimulada, defendemos a impossibilidade de configuração dessa autolavagem, por se estar ainda dentro dos limites típicos do crime de corrupção (seja consumação, seja exaurimento).

 


[1] BERMEJO, Mateo G. Prevención y castigo del blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2015. p. p. 323-324.

[2] CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Expansión del derecho penal y garantías constitucionales. Revista de Derechos Fundamentales, Espanha, nº 8, p. 45-76, 2012.

Autores

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal no IDP-Brasília, sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

  • é advogado criminalista, doutorando e mestre em Direito Público, sócio do Ritter Linhares Advocacia Criminal e Consultoria e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!