Limite Penal

Marina Gascón Abellán e sua contribuição à epistemologia jurídica

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

27 de janeiro de 2023, 16h18

O ano era 2006. Uma estudante de direito chegava à Universidad Autónoma de Madrid para cursar um semestre de intercâmbio. Mesmo diante de tantas novidades, não demorou nada para que a disciplina Metodología y Argumentación Jurídica, oferecida por Juan Carlos Bayón, capturasse por completo a minha atenção. Foi aí que, pela primeira vez, vi a prova dos fatos ser encarada como um desafio argumentativo que ia além do passo-a-passo procedimental que a melhor dogmática processual já nos havia ensinado. O professor Bayón nos introduziu leituras instigantes que questionavam o fundamento das regras e práticas probatórias de diversas culturas jurídicas, a partir de uma abordagem pouco conhecida até então: a epistemologia jurídica. Nesta acepção, a epistemologia, enquanto subárea da filosofia, passou a ser aplicada aos fatos que, no direito, precisam ser conhecidos. A determinação dos fatos considerados juridicamente relevantes passa, então, a ser tratada como um problema de conhecimento.

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É justamente neste contexto em que tive o primeiro contato com o pensamento de Gascón Abellán, entre aqueles que desbravaram os caminhos da epistemologia jurídica na cultura jurídica íbero-americana. Junto dos escritos de Michele Taruffo (1992)[1], Jordi Ferrer Beltrán (2002) [2], Luigi Ferrajoli (1989) [3] e Perfecto Andrés Ibáñez (1992) [4], o seu "Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba" (1999)[5] está entre as primeiras obras da disciplina publicadas no idioma de Cervantes. Recordo-me do encantamento instantâneo que essas leituras[6] produziram-me durante o curso do Prof. Bayón e, sem dúvidas, são obrigatórias aos estudiosos da prova.

Mas a importância de Gascón Abellán vai além de sua destacada contribuição a essa fase inicial da epistemologia jurídica. Se é justo dizer que a professora catedrática de filosofia do direito da Universidad de Castilla-La Mancha participou com protagonismo da etapa fundacional, também é oportuno reconhecer que ela segue nos brindando conhecimento aprofundado sobre os desdobramentos probatórios mais atuais. Gascón Abellán tanto participou da construção dos alicerces da chamada concepção racionalista da prova nos idos dos anos 90, quanto deu continuidade a desenvolvimentos, sem dúvida, necessários à revisão do tratamento que concretamente se confere às regras e práticas probatórias nos sistemas jurídico-probatórios de nossa cultura jurídica. Não por outra razão, em páginas escritas por Gascón Abellán sempre é possível encontrar uma análise apurada, questionamentos intelectualmente afiados, sobre temas que merecem nossa redobrada atenção: as provas periciais e a relação que o direito tem com as ciências são um exemplo disso; o tratamento das provas ilícitas e a tensão entre a preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos e o interesse na descoberta da verdade, outro.

Assim, a obra "O problema de provar" que o leitor tem em mãos reúne assuntos probatórios diversos. Ela abarca uma cuidadosa apresentação de conceitos fundamentais ao tratamento epistemológico da prova judicial, bem como uma exposição perspicaz de desafios que ainda carecem de soluções adequadas nos sistemas jurídicos concretos. A filosofia do direito realizada por Gascón Abellán consiste em uma teoria efetivamente comprometida com a prática, com a melhoria do desenho institucional probatório que os sistemas de justiça devem desenvolver. É preciso errar menos na prestação jurisdicional e, para isso, Gascón Abellán reforça que é preciso saber mais de prova.

Com isso em mente, a autora oferece-nos cinco capítulos. Em "Prova e argumentação I. Decidir sobre os fatos" (capítulo 1), Gascón Abellán trabalha a importância da prova para a argumentação jurídica. Se tradicionalmente a argumentação no direito sempre se concentrou nas razões que devem ser sustentadas para a construção da premissa maior do raciocínio judicial, já passou da hora de corrigir a falta de tratamento às razões capazes de prestar respaldo à premissa menor, isto é, às provas que devem ser exigidas para a incorporação de certas hipóteses fáticas à decisão judicial. A autora explora a valoração da prova como  espaço do raciocínio indutivo, o qual por sua vez, muito embora não traga certezas absolutas acerca da ocorrência dos fatos, tem, sim, a capacidade de justificar, probabilisticamente, uma melhor reconstrução dos fatos. O trajeto trilhado por Gascón Abellán perpassa modelos de valoração, argumentos de confirmação, sem se furtar a tecer uma análise crítica da velha distinção entre provas diretas e provas indiretas, revisitando também a diferença entre contexto de descoberta e contexto de justificação.

Com esse amparo, já na sequência, em "Prova e argumentação II. Justificar a decisão" (capítulo 2), a autora aborda os standards probatórios e também o dever de motivação que pesa sobre o magistrado à hora de oferecer as boas razões que encontrou para haver selecionado a hipótese fática que apresenta em seu raciocínio decisório. Neste capítulo, a satisfação do grau de suficiência previamente estabelecido para que enunciados fáticos sejam considerados provados é o centro de atenção de Gascón Abellán. Isso faz com que, para além de dispor ao leitor como o domínio da categoria conceitual do standard probatório funciona como a ferramenta necessária à argumentação, a autora também faz questão de analisar algumas deficiências argumentativas comuns à práxis da motivação: a técnica do relato, a motivação não exaustiva e o entendimento equivocado de que as provas diretas não precisam ser objeto de motivação.

O capítulo terceiro é dedicado à prova do nexo causal, por isso intitula-se "Incerteza causal. Probabilidade, standards probatórios e oportunidades perdidas". Trata, portanto, de um tema espinhoso e desafiante, que tem gerado soluções nem sempre satisfatórias à pretensão de justiça que a melhor prestação jurisdicional busca alcançar. As acuradas reflexões de Gascón Abellán encontram amparo em distinções fundamentais, como a que se põe entre os conceitos de causalidade e imputação, bem como na abordagem crítica da teoria da perda de uma chance como um standard de prova. Gascón Abellán analisa as vantagens da proposta sem se olvidar das debilidades que precisam ser sanadas.

Em "Prevenção e educação: o caminho para uma melhor ciência forense no sistema de justiça" (capítulo 4), Gascón Abellán analisa a relação que direito e ciência devem desenvolver para a implementação de uma agenda de redução de erros à hora de determinar fatos. É preciso aproximar a prova judicial dos avanços conquistados pela ciência, mas isso não significa abraçar ingenuamente todo e qualquer conteúdo produzido originalmente pelo contexto científico. Não é o fato de que algo seja etiquetado como científico, muitas vezes de forma apressada, que faz com que deva ser incorporado automaticamente. A autora trata dos perigos provenientes da mitificação da ciência e explora a importância da combinação de estratégias de prevenção e de educação dos operadores jurídicos acerca dos conhecimentos científicos. Os desafios são robustos, e como ressalta Gascón Abellán, precisamos de uma abordagem crítica e epistemicamente comprometida para a construção de uma melhor ciência forense.

Finalmente, em "Além da verdade: defesa dos direitos quando se buscam provas" (capítulo 5), Gascón Abellán enfrenta corajosamente a tensão entre a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos e o interesse na descoberta da verdade. A autora examina os desenvolvimentos teóricos relativos à exclusão da prova ilícita e aponta para os riscos da sua relativização. Neste capítulo, o leitor poderá constatar a influência de autores como Luigi Ferrajoli, Luis Prieto Sanchís e Perfecto Andrés Ibáñez na forma em que Marina Gascón Abellán edifica o seu modelo epistemológico de determinação dos fatos judiciais. Gascón Abellán apresenta a verdade como um dos objetivos do processo, mas não o único. A epistemologia jurídica de Gascón Abellán caminha junto com o garantismo penal, não servindo de escusa para qualquer esvaziamento dos direitos prometidos por nossas cartas constitucionais.

Assim, considero que as lentes conceituais e as discussões propostas nas páginas que se seguem contribuirão ao aperfeiçoamento de advogados, juízes, promotores de justiça, defensores públicos e policiais e, neste sentido, representam uma ferramenta teórica muito promissora à construção conjunta do sistema processual probatório que merecemos. Ao chamar sua obra de "O problema de provar", Gascón Abellán revela, mais uma vez, a humildade intelectual que acompanha os grandes mestres, que avançam propondo boas questões, boas perguntas, bons problemas, mas a verdade é que o leitor também encontrará aqui um frutífero caminho para o desenvolvimento de soluções aos déficits epistêmicos que estão presentes no interior dos sistemas de justiça em que atuamos. Enfim, por tudo o que Gascón Abellán me ensinou e ensina, estendo a todos o convite para que adentrem o rico horizonte probatório contido neste livro. 

Ps: A Limite Penal desta semana reproduziu o prefácio que fiz ao último livro de Marina Gascón Abellán (traduzido por Lívia Moscatelli e Caio Badaró), publicado no fim de 2022 pela Editora Marcial Pons. Clique aqui para adquirir.


[1]. Taruffo, M. "La prueba de los hechos". Trad. ao castelhano por Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Ed. Trotta, 2002; Taruffo, M. "La prova dei fatti giuridici", Milano: Giuffrè, 1992.

[2]. Ferrer Beltrán, J. "Prueba y verdad en el derecho". Madrid: Marcial Pons, 2002.

[3]. Ferrajoli, L. "Derecho y Razón. Teoría del garantismo penal". Trad. ao castelhano por P. Andrés Ibáñez, J. C. Bayón, R. Cantarero, A. Ruiz Miguel y J. Terradillos, Madrid: Ed. Trotta, 1995; Ferrajoli, L. "Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale". Roma-Bari: Laterza & Figli, 1989.

[4]. Andrés Ibáñez, P. “Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal”. In Doxa, 1992.

[5]. Gascón Abellán, M. “Los hechos en el derecho: bases argumentales de la prueba”, Madrid: Marcial Pons. Essa obra foi recentemente traduzida ao português. Gascón Abellán, M. “Os fatos no direito: bases argumentativas da prova”. Trad. ao português por Ravi Peixoto (Revisão de Vitor de Paula Ramos), Salvador: Ed. Juspodivm, 2022.

[6]. As publicações mencionadas são as que, à época, foram trabalhadas conosco no curso.

Autores

  • é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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