Fábrica de Leis

O "Mágico de Oz" e dois mitos antigos do processo legislativo

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24 de janeiro de 2023, 8h00

"Os sonhos são como os deuses. Se não se acredita neles, deixam de existir." (Cícero)

 

Para uma jovem amiga que acaba de ser avó

 

Em O Mágico de Oz — é um spoiler, mas, vamos lá, o livro tem quase 123 anos — o personagem-título, quando é desmascarado, descoberto como impostor que é, explica o porquê de fingir ser um feiticeiro terrível e poderoso: "se não pensassem que eu era mais poderoso, teriam com certeza me destruído". Na política e no Direito, de resto, as coisas não vão muito longe disso: não raro algum poder cria teses que o fazem ser mais temido do que amado, e talvez mais respeitado do que deveria realmente ser. É, porém, chegada a época da derrubada de todos os mitos, com M ou m: por isso, vamos usar o espaço de hoje para tentar desmistificar duas ervas daninhas que grassam em qualquer campo fértil no qual se estuda ou pratica o processo legislativo. Dois mitos tão antigos quanto úteis — especialmente para as pretensões de agigantamento do Executivo e apequenamento do Legislativo, especialmente nos níveis estadual e municipal.

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O primeiro desses mitos — você provavelmente já o ouviu sendo recitado em algum parecer ou discurso ou reunião ou aula — é o de que não se pode por iniciativa do Legislativo criar despesas para o Poder Executivo. Falso, irritantemente falso.

Se esquadrinharmos o texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência, verificaremos que essa suposição não encontra apoio em nenhuma norma constitucional expressa ou implícita. Comodamente repetida por Executivos que querem amordaçar o Legislativo e por legisladores masoquistas, essa tese deriva, talvez, da extrapolação de algumas regras constitucionais bastante distintas. A primeira delas é de que o projeto de lei orçamentária anual é de iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo (CF, artigo 165, I a III). Disso decorre, logicamente, que a apresentação do PLOA e dos projetos de abertura de crédito adicional só pode ser realizada pelo presidente, governador ou prefeito. Disso não decorre, contudo, que qualquer tipo de lei que acarrete alguma despesa em algum momento só possa ser iniciada pelo Executivo. Difundiu-se um falso paralelismo, segundo o qual, se não se pode alterar o Orçamento por iniciativa parlamentar, também não se poderia nem sequer iniciar o processo legislativo sobre algum tema que resultasse em despesas para o Executivo.

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Outra possível origem desse mito talvez seja o artigo 63, I, da CF, o qual veda o aumento da despesa por meio de emenda parlamentar nos projetos de lei de iniciativa exclusiva do Executivo. Ora, aqui o que se tem é algo de outra natureza: não se pode, via emenda parlamentar, gerar aumento da despesa prevista num PL que só o Executivo pode desencadear (é dizer, não pode o Legislativo "fazer cortesia com o chapéu alheio") — o que é totalmente diverso de se afirmar que um PL de autoria de parlamentar não pode criar despesa para o Executivo. Trata-se de um falso silogismo: uma coisa é não permitir que o Legislativo aprove um PL do Executivo com um aumento de gastos em relação à proposta original; outra, bastante diversa, é dizer que somente o Executivo poderia propor leis que acarretassem aumento de despesa.

Na realidade, a CF não proíbe que parlamentares proponham leis que gerem aumento de despesas para o Executivo. Se assim fosse, aliás, o Legislativo estaria condenado a se transformar num grande grêmio recreativo, a propor projetos sobre criação de datas comemorativas e nomes de ruas — e olhe lá. Não há dispositivo algum da Constituição que impeça a instituição de despesas para o Executivo por iniciativa parlamentar, até porque, ao fim e ao cabo, toda legislação traz em si um custo de implementação implícito ou expresso — e cabe, afinal, ao Poder Executivo, por vocação lógica, executar os mandamentos gerais e abstratos emanados do Legislativo, ao menos segundo o esquema tradicional de organização do Poderes.

A tese em questão chegou a ser positivada em algumas constituições estaduais — o que traz à baila a interessante discussão sobre os limites da autoconformação do processo legislativo estadual. É o caso, por exemplo, da Constituição do Estado de Pernambuco, cujo artigo 19, § 1º, II, insere na iniciativa privativa do Executivo as leis que acarretem "aumento de despesa pública, no âmbito do Poder Executivo". Na esfera federal, porém, assim como pelo menos nos estados cujas Constituições não contenham disposições semelhantes, os parlamentares podem, sim, propor leis que criem despesas para o Executivo, por absoluta falta de vedação constitucional [1]. O que não se pode, registre-se, é alterar diretamente a Lei Orçamentária anual. Trocando em miúdos: uma lei de iniciativa parlamentar pode prever que o Executivo instale câmeras de segurança em escolas públicas estaduais (caso concreto já apreciado pelo STF); logicamente, a implementação dessa lei terá um custo, que precisará ser previsto no orçamento: se isso vai ser feito no PLOA do exercício seguinte, ou mediante a abertura de um crédito adicional, aí, sim, trata-se de uma decisão do Executivo, e de sua iniciativa exclusiva.

No caso da legitimidade constitucional de leis de iniciativa parlamentar que criem despesas ao Executivo, foi preciso que o STF julgasse em recurso extraordinário em regime de repercussão geral, para enfim, em 2016, fixar a tese de que "Não usurpa competência privativa do Chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos (art. 61, § 1º, II, "a", "c" e "e", da Constituição Federal)" [2].

Nunca é demais lembrar, sobre o tema, a lição de Celso de Mello, para quem as hipóteses de iniciativa privativa do Executivo são a exceção, merecendo, por conseguinte, interpretação sempre restritiva [3].

Aliás, a advertência do ministro aposentado do STF vem bem a calhar quando se trata de desmascarar um outro despropósito correntemente invocado no processo legislativo: o de que o Legislativo não pode por iniciativa própria criar políticas públicas. Nesse caso, o Mágico de Oz do processo legislativo parece ter feito um trabalho tão exemplar de prestidigitação, que até mesmo em consultorias legislativas Brasil afora circulam esse mantra abjeto.

Voltemos ao início: os parlamentares deste Brasil parecem ter feito realmente tábula rasa da iniciativa exclusiva do Executivo, ou criando diretamente órgãos e entidades do Executivo — o que viola o artigo 61, § 1º, II, e, da CF — ou, talvez pior, usando o deplorável artifício das "leis meramente autorizativas" (proibidas até pela Súmula nº 1, da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados) para "autorizar" o Executivo a criar entidades. Desse abuso do poder de legislar derivou outro abuso, não menos censurável: o exagero de afirmar ser apenas o Executivo que pode propor projetos de lei que instituam políticas públicas.

Do ponto de vista político, tal leitura é uma excrescência, porque se baseia na ideia de que apenas o Executivo teria expertise para planejar e formular uma política pública (sendo que, tradicionalmente e em vários países ocidentais, os programas de políticas públicas são gestados no Legislativo), esvaziando o Legislativo de um papel relevante no ciclo de tais políticas. E, do ponto de vista jurídico-dogmático, a tese não se sustenta, por absoluta (mais uma vez) falta de previsão constitucional. O que a norma constitucional fixa como iniciativa privativa do Executivo são as leis que criem ou extingam órgãos ou Ministérios (artigo 61, § 1º, II, e, c/c artigo 88). Isso até legitima uma leitura — não ampliativa, mas teleológica —, que veda também ao Legislativo criar sponte sua entidades do Executivo, ou redesenhar completamente atribuições de um ministério (por exemplo, atribuir a gestão do trânsito ao Ministério da Saúde, etc.). Disso não decorre, porém, nem de longe, a conclusão anos-luz distante de que só o Executivo poderia propor PL sobre instituição de política pública.

Na esfera federal, estadual e municipal, inúmeros são os exemplos de leis de iniciativa parlamentar que instituíram programas (ou, pelo menos, ações) de políticas públicas e cuja legitimidade foi, ao final, confirmada pelo STF — também na esteira do Tema nº 917, confirmado por julgados posteriores. É incrivelmente frequente, no entanto, ouvir nos corredores do Congresso, ou das Assembleias Legislativas, ou mesmo ler acórdãos de Tribunais de Justiça "naturalizando" que "somente ao Executivo cabe propor projetos de lei sobre políticas públicas"… Mitologia, e de má qualidade – ou mitomania?

Em suma: é preciso interpretar a Constituição não à luz de mantras ou mitos ou crenças repetidas, mas sim de seu texto, como ponto de partida inevitável, e da doutrina e jurisprudência, vozes relevantes para a sua compreensão. E, com base na intepretação constitucional predominante, são consideradas constitucionais as leis de iniciática parlamentar que instituem políticas públicas, desde que não alterem diretamente o Orçamento, não criem ou extingam órgãos e entidades do Executivo nem alterar de forma radical ("redesenho") suas atribuições. Não passam de mitos, portanto, as afirmações de que "o Legislativo não pode criar políticas públicas", ou de que "o Legislativo não pode criar despesas para o Executivo". Serem muito repetidas não torna essas máximas verdadeiras, e se não acreditarmos nelas, deixarão de existir.

Aos que repetem culposamente esses mitos, cabe a lembrança dos versos de Augusto dos Anjos: é preciso erguer os gládios e brandir as hastas para quebrar a imagem desses sonhos (intranquilos), destruir os mitos criados para apequenar a atuação do Legislativo. Aos que os empregam dolosamente, a questão é lembrar mesmo o inevitável destino do Mágico de Oz: se a força do mito é que todos acreditam neles, agora, desmascarados e desmentidos inclusive pelo STF, o que será deles?

 


[1] Questão distante é a exigência de avaliação de impacto, quando a lei instituir despesa de caráter continuado ou permanente, nos termos do art. 113 do ADCT.

[2] ARE-RG 878.911, relator ministro Gilmar Mendes, DJe de 11/10/2016 (Tema 917).

[3] STF, Pleno, ADI-MC nº 724/RS, relator ministro Celso de Mello, DJ de 27.4.2001. No mesmo sentido, aliás, a lição clássica de Carlos Maximiliano: MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 162 e seguintes.

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