Observatório Constitucional

Os atos do dia 8/1: um 6 (sic) de janeiro para chamar de nosso

Autor

  • Ana Beatriz Robalinho

    é doutoranda (J.S.D.) e mestre (LL.M.) em Direito pela Yale Law School mestre em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP) graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) professora do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) advogada e consultora em Direito Público.

21 de janeiro de 2023, 8h00

Há pouco mais de dois anos, em 6 de janeiro de 2021, o mundo assistiu estarrecido à invasão ao Capitólio dos Estados Unidos, centro do Poder Legislativo norte-americano. O ataque de apoiadores do ex-presidente Donald Trump, derrotado nas eleições presidenciais de 2020, ocorreu enquanto os membros do Congresso americano se reuniam para confirmar a vitória de Joe Biden e Kamala Harris. Os manifestantes conseguiram invadir o prédio — de onde os congressistas tiveram que ser retirados às pressas — e depredaram severamente o patrimônio público, inclusive peças de valor histórico. Cinco pessoas morreram [1].

Os paralelos entre os atos do último dia 8 de janeiro, ocorridos em Brasília, e o 6 de janeiro de 2021 são inevitáveis. Em ambos os casos, apoiadores de um presidente derrotado na eleição anterior, inconformados com o resultado, invadiram sedes do poder público, com o objetivo de impedir a transferência pacífica de poder que caracteriza uma democracia. Em ambos os casos, não tiveram sucesso, mas causaram graves danos à integridade física de pessoas e ao patrimônio público. Em ambos os casos, danos imensuráveis foram infligidos à própria ideia da democracia. Nos Estados Unidos, os ataques foram mais graves porque o Capitólio estava cheio de congressistas e autoridades públicas, e porque cinco pessoas morreram. No Brasil, os ataques foram mais graves porque foram atingidas as sedes dos três Poderes, numa simbologia nefasta.

Mas a comparação entre o 6 de janeiro americano e o 8 de janeiro brasileiro não é útil para definirmos qual ato foi mais ou menos grave. O fundamental nessa comparação é entender não apenas que os Estados Unidos, como o Brasil, vinham enfrentando uma grave crise democrática nos anos que antecederam os ataques [2] — crise essa que ajuda a explicar por que cenas de manifestantes enfurecidos destruindo os símbolos da democracia se tornaram parte da história dos dois países — mas também que os dois anos que separam o 6 de janeiro do 8 de janeiro são uma janela para enxergamos o futuro, se soubermos aprender as lições certas.

Uma primeira pergunta é do que estaremos falando em 8 de janeiro de 2024, quando os ataques completarem um ano. Muitos de nós gostaríamos de pensar que estaremos celebrando os efeitos a longo prazo da imediata e robusta resposta, em defesa da democracia, das instituições e da esfera pública aos ataques. Mas uma breve visita aos debates travados em torno de 6 de janeiro de 2022 nos Estados Unidos revela a alta complexidade de uma crise política que não começa e nem termina com os atos violentos de um único dia.

Assim como temos lido e ouvido nos últimos dias no Brasil, no imediato pós do 6 de janeiro, os americanos esperavam que os ataques significassem o fim do trumpismo. A violência e o golpismo sem precedentes dos atos chocaram a sociedade americana, e levaram, num primeiro momento, a uma rejeição generalizada de Trump e seu projeto político. Mas no primeiro aniversário dos ataques, os observadores políticos já contavam uma história bem diferente [3][4][5].

O Partido Republicano, que todos esperavam que retornasse aos tempos moderados na era pós-Trump, se radicalizou. Essa é, certamente, uma leitura complexa, mas o fato é que uma minoria dentro do partido repudiou direta e absolutamente Trump e seu projeto político após o 6 de janeiro. Uma maioria seguiu apegada à noção de que o fenômeno político de Trump é a única alternativa viável para retomar o poder no curto prazo [6][7]. A possibilidade de Trump ser o candidato do partido republicano à presidência em 2024 — exceto se for legalmente impedido de concorrer [8] — é real.

Os números mostram que os políticos republicanos estão certos em concluir que o trumpismo está vivo. Ele segue sustentado pela fantasiosa narrativa da fraude que teria roubado a vitória de Trump nas eleições de 2020. Por mais incrível que essa narrativa pareça, por mais que Trump tenha fracassado em sua tentativa de fazer a máquina pública embarcar em seu delírio, por mais que nenhum resquício de prova tenha sido apresentado, aproximadamente dois terços dos republicanos declararam, em 2022, que acreditavam que as eleições foram roubadas [9][10].

Talvez ainda mais incrível seja o fato de que a força da narrativa de Trump cresceu, ao invés de arrefecer, no ano que procedeu os ataques. As pesquisas mostram que o número de americanos que acreditam que Trump não teve nenhuma responsabilidade pelos atos ocorridos em 6 de janeiro de 2021 cresceu consideravelmente nos 12 meses seguintes, saindo de 24% para 32%; ao mesmo tempo, o número de pessoas que acreditam que Trump foi responsável pelos ataques caiu de 52% para 43%. Nem mesmo a ampla exposição dos trabalhos da comissão instalada no Congresso americano para investigar os ataques foi capaz de alterar esse quadro. Quase 80% dos republicanos declaram que não tem confiança de que as investigações da comissão são conduzidas de forma justa [11].

Não se trata de uma minoria isolada. São dezenas de milhões de pessoas sustentando uma narrativa completamente afastada da realidade. Entender como essa narrativa continua a crescer e florescer é parte fundamental da lição que podemos extrair dessa comparação com o 6 de janeiro americano. O professor da Harvard Kennedy School Alexander Keyssar, ao reconhecer a existência concomitante de duas narrativas completamente opostas sobre os ataques nos Estados Unidos, afirma que o problema está, em parte nas fontes. Keyssar descreve uma realidade que deve soar familiar a qualquer brasileiro em 2023; uma realidade na qual parte da população se informa através da grande mídia — da CNN ao New York Times — enquanto outra parte consome única e exclusivamente informações veiculadas através das redes sociais ou pelo canal de extrema direita Fox News, dentro de sua própria bolha ideológica [12].

Essas fontes desconectadas e diametralmente opostas de informação ajudam a construir sensos de realidade paralelos e opostos entre si. Não à toa o debate nos Estados Unidos tem se voltado cada vez mais à regulação de conteúdo nas redes, em como bloquear a desinformação e tentar verter os dois polos do país de volta a uma única realidade [13].

Esse debate também ecoa entre nós com cada vez mais força, e embora por razões bem diferentes das americanas, gera níveis igualmente altos de controvérsia. Os Estados Unidos estão presos a uma realidade jurídica construída ao longo de décadas, em que a liberdade de expressão foi tratada como um super princípio e as restrições a ela reduzidas ao extremo. O cenário deixado pela jurisprudência da primeira emenda relega a atores privados — primordialmente as próprias redes sociais — a tarefa de regulação de conteúdo [14]. Uma das grandes queixas dos progressistas americanos hoje está relacionada à recusa dos empresários das empresas de tecnologia em cumprir essa tarefa satisfatoriamente [15][16].

No Brasil, gravitamos para um cenário quase diametralmente oposto. Longe de deixar a regulação de conteúdo a cargo de atores privados, o estado judicial avançou sobre essa tarefa, que hoje está a cargo primordialmente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral [17]. Essa escolha vem com seus próprios problemas, e é fundamental discuti-los a fundo. Mas é igualmente fundamental entender, a partir da experiência comparada daquele que foi, até o final do século XX, o grande modelo da democracia ocidental, que agir para mudar a realidade que as redes criaram na política é fundamental para o futuro da democracia.

Keyssar afirmou que um dos únicos caminhos possíveis para reverter o cenário de polarização política que culminou na rejeição da própria democracia é uma rejeição generalizada dessa alternativa, que passa necessariamente pelo jurídico [18]. Punição e, sim, controle do discurso, são ferramentas de que o estado dispõe para preservar a democracia diante de graves ameaças a sua sobrevivência.

A principal lição que podemos retirar do 6 de janeiro americano é que atos atentatórios à democracia não vão por um fim ao processo de erosão do qual não são mais que um sintoma. Por mais chocantes que sejam as cenas que se produzem nesses atos, o choque por si só não é suficiente para salvar o sistema democrático. A luta está apenas começando, e essa percepção deve guiar inclusive as (necessárias) críticas aos excessos eventualmente cometidos por qualquer dos braços do estado na reação aos ataques.

O que não podemos fazer é nos esconder atrás de uma aparência de normalidade, e criticar qualquer atuação estatal como se fosse tomada em tempos comuns. Tal foi a estratégia adotada pelos republicanos nos Estados Unidos, que insistem em dizer que o país segue dando atenção demais aos acontecimentos de 6 de janeiro [19]. E tal tem sido o tom usado para criticar as ações energéticas e imediatas tomadas pelo Supremo Tribunal Federal após os ataques de 8 de janeiro.

O Supremo, que foi a principal vítima dos atos de violência, está sujeito à accountability social, tal qual qualquer outro ramo do estado; mas nenhum estudioso de constitucionalismo e democracia pode duvidar que foi o Supremo que, acima de qualquer outra instituição, e muito antes de ver seu plenário completamente destruído por vândalos, agiu como um guardião da democracia frente aos sistemáticos abusos dos últimos quatro anos [20].

O Brasil após o 8 de janeiro de 2023 possui vantagens sobre os Estados Unidos após o 6 de janeiro de 2021. Vantagens que incluem não apenas uma autoridade eleitoral fortalecida e centralizada e uma Corte Constitucional que não foi capturada pelo governo derrotado, mas também o benefício do tempo, que nos permite aprender com os erros que foram cometidos lá fora e seguir o caminho dos acertos. Lutemos pela democracia, com as armas que temos.

 


[1] FEUER, Alan; Broadwater, Luke; HABERMAN, Maggie; BENNER, Katie; SCHMIDT, Michael S. Jan. 6: the story so far. The New York Times, edição especial interativa, 2023. Disponível em: https://www.nytimes.com/interactive/2022/us/politics/jan-6-timeline.html?smid=url-share.

[2] Sobre a crise constitucional americana, ver c.f. BALKIN, Jack M. How to do constitutional theory while your house burns down. Boston University Law Review, vol. 101, 2021. No Brasil, ver c.f. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Democracia em Crise no Brasil: Valores Constitucionais, Antagonismo Político e Dinâmica Institucional. São Paulo: Contracorrente, 2020.

[3] ALMOND, Steve. Jan. 6 was supposed to be the end of Trumpism. But what if it was just the beginning? Wbur Cognoscenti, 5/1/2022, disponível em: https://www.wbur.org/cognoscenti/2022/01/05/jan-6-insurrection-donald-trump-democrats-steve-almond.

[4] JONG-FAST, Molly. Instead of Disavowing Trump in the Year After January 6, Republicans Gave Up on Democracy. Vogue, 6/1/2022, disponível em: https://www.vogue.com/article/january-6-one-year-later.

[5] BEAUCHAMP, Zack. How does this end? Where the crisis in American democracy might be headed. Vox, 03/01/2022, disponível em: https://www.vox.com/policy-and-politics/22814025/democracy-trump-january-6-capitol-riot-election-violence.

[6] ZIMMER, Thomas. Republicans always choose radicalization to energize their electoral base. The Guardian, 22/10/2022, disponível em: https://www.theguardian.com/us-news/2022/oct/22/republicans-january-6-trumpism-radicalization-voters.

[7] COLVIN, Jill. One year ago, Republicans condemned Jan. 6 insurrection. Yesterday, their response was far more muted. PBS News Hour, 07/01/2022, disponível em: https://www.pbs.org/newshour/politics/one-year-ago-republicans-condemned-jan-6-insurrection-yesterday-their-response-was-far-more-muted.

[8] Ver, acerca das possibilidades jurídicas de impedir a candidatura de Trump, ACKERMAN, Bruce. MAGLIOCCA, Gerald. Criminal prosecution is the wrong idea. Use the 14th Amendment on Trump. The Washington Post, 27/12/2022, disponível em: https://www.washingtonpost.com/opinions/2022/12/27/trump-jan6-constitution-fourteenth-amendment/.

[9] ALMOND, Jan. 6 was supposed to be the end of Trumpism.

[10] BEAUCHAMP, How does this end? Where the crisis in American democracy might be headed.

[11] Para esses e outros dados sobre a percepção dos americanos sobre os ataques de 6 de janeiro de 2021, ver JONES, Bradley. Fewer Americans now say Trump bears a lot of responsibility for the Jan. 6 riot. Pew Research Center, 8/2/2022, disponível em: https://www.pewresearch.org/fact-tank/2022/02/08/fewer-americans-now-say-trump-bears-a-lot-of-responsibility-for-the-jan-6-riot/.

[12] PAZZANESE, Christina. Dark lessons of Jan. 6 Capitol assault. The Harvard Gazette, 1/1/2022, disponível em: https://news.harvard.edu/gazette/story/2022/01/dark-lessons-of-jan-6-capitol-assault/.

[13] SCHEWE, Eric. After the Capitol Riot, Who Will Govern Speech Online? JStor Daily, 04/02/2022, disponível em: https://daily.jstor.org/after-the-capitol-riot-who-will-govern-speech-online/.

[14] Ver, sobre o tema, BALKIN, Jack M. Free Speech is a Triangle. Columbia Law Review, vol. 118, n. 7, 2018.

[15] ZAKRZEWSKI, Cat; LIMA, Cristiano; HARWELL, Drew. What the Jan. 6 probe found out about social media, but didn’t report. The Washington Post, 17/1/2023, disponível em: https://www.washingtonpost.com/technology/2023/01/17/jan6-committee-report-social-media/.

[16] JONG-FAST, Instead of Disavowing Trump in the Year After January 6, Republicans Gave Up on Democracy.

[17] Ver, sobre o tema, detalhes sobre o Plano de Combate à Desinformação lançado pelo STF (disponível em: https://portal.stf.jus.br/desinformacao/) e a Resolução aprovada pelo TSE resolução que dispõe sobre o enfrentamento da desinformação que compromete a integridade do processo eleitoral (disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/tse-aprova-resolucao-para-dar-mais-efetividade-ao-combate-a-desinformacao-no-processo-eleitoral).

[18] PAZZANESE, Dark lessons of Jan. 6 Capitol assault.

[19] Segundo Jones, 65% dos Republicanos defendem que o país deve superar os debates sobre o 6 de janeiro. JONES, Fewer Americans now say Trump bears a lot of responsibility for the Jan. 6 riot.

[20] Por todos, VIEIRA, Oscar Vilhena; GLEZER, Rubens; BARBOSA, Ana Laura Pereira. Supremocracia e Infralegalismo Autoritário: O Comportamento do Supremo Tribunal Federal Durante o Governo Bolsonaro. Novos Estudos, Cebrap – São Paulo, vol. 4, set-dez de 2022, p. 591-605.

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