Observatório Constitucional

Intimidade e vida privada: passado, presente e futuro

Autor

  • Ilton Norberto Robl Filho

    é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP líder do grupo de pesquisa "Democracia Constitucional Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital" no IDP membro do CCons-UFPR e da Fundação Peter Häberle e sócio do escritório de advocacia Marrafon Robl e Grandinetti.

7 de janeiro de 2023, 8h00

01. Estimadas leitoras e caros leitores, feliz 2023! É uma alegria, porém também uma responsabilidade, escrever a primeira coluna deste ano do Observatório Constitucional, que completa dez anos de publicação semanal. Trata-se de projeto editorial de fôlego, devendo parabenizar os professores André Rufino do Vale e Fábio Quintas pela coordenação do expediente. Para alguns, as datas e a marcação do tempo não se revestem de grandes significados, sendo, por exemplo, apenas a contagem daquilo que já transcorreu ou a indicação de um período que virá. De outro lado, os momentos de transição, como os que vivemos hoje, com o advento de um novo ano civil e com as modificações nas práticas estatais brasileiras para a observância da democracia constitucional, são situações que impõem reflexão sobre o passado, análise acerca do presente e planejamento para o futuro. Nesse cenário, retomarei um tema que tratei originalmente há cerca de 15 anos [1], mas que contém desafios para o presente e o futuro: a intimidade e a vida privada.

02. A intimidade e a vida privada são fenômenos importantes e complexos nas sociedades moderna e contemporânea, tendo examinado Hannah Arendt as principais características, nos seguintes termos: "O que hoje chamamos de privado é um círculo de intimidade cujos primórdios podemos encontrar nos últimos períodos da civilização romana, (…) mas cujas peculiaridades, multiformidade e variedade eram certamente desconhecidas de qualquer período anterior à era moderna" [2]. Nesse contexto, as relações entre o público e privado foram modificadas, pois, de um lado, a "presença de outros que vêem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos", porém, de outra banda, "a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida (…) sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo" [3].

Em síntese, existe uma gradativa valorização do espaço privado, em virtude do seu papel no desenvolvimento da personalidade humana, permitindo assim a vivência de experiências individuais, próprias e íntimas. Por sua vez, a exposição da intimidade e da vida privada é questão bastante complexa, visto que a "intimidade não pode ser trazida à tona da mesma forma que as questões públicas", no entanto não "se quer dizer que todas as questões íntimas devam, necessariamente, ser escondidas de todos e somente vividas pelo indivíduo" [4].

03. No plano do direito constitucional positivo contemporâneo, o constituinte originário brasileiro positivou com precisão o direito fundamental à intimidade e à vida privada, no artigo 5º, X, Constituição Federal, além de o poder reformador incorporar expressamente o direito fundamental à proteção de dados pessoais, por meio da Emenda Constitucional nº 115/2022. Ainda, as instituições da sociedade civil e a jurisdição constitucional desempenham papéis de destaque nessa seara. Na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.649, sendo relator o ministro Gilmar Mendes e legitimado ativo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, foi impugnado o Decreto 10.046/2019, o qual extrapolou o poder regulamentar da Presidência da República, violando a proteção de dados pessoais, a intimidade e a vida privada das pessoas naturais, pois promovia o compartilhamento e a integração de informações pessoais sem as devidas cautelas. À época, em conjunto com relevantes advogadas como Estela Aranha e Lucia Maria Teixeira Costa e com o saudoso amigo e brilhante jurista Danilo Doneda, redigimos a petição inicial, demonstrando a "violação direta aos artigos 1º, inciso III e 5º, caput, e incisos X, XII e LXXII da Constituição Federal, os quais asseguram, respectivamente a dignidade da pessoa humana; a inviolabilidade da intimidade, da privacidade e da vida privada" [5].

O voto do ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 6649, enfrentou e resolveu a controvérsia constitucional com proficiência, apontando a) os dilemas da intimidade e da vida privada na era digital, b) que a jurisdição constitucional brasileira encontra-se atenta aos ataques contemporâneos à intimidade e à vida privada e c) "que a disciplina jurídica do processamento e da utilização de dados pessoais acaba por afetar o sistema de proteção de garantias individuais como um todo", devendo ocorrer "uma releitura de mecanismos clássicos de defesa das liberdades públicas" [6]. Na rica solução da questão, por meio de interpretação conforme à Constituição, determinou-se que o compartilhamento de dados pessoais entre órgãos e a administração pública pressupõe propósitos legítimos, específicos e explícitos, restando limitado ao mínimo necessário.

04. Apesar de importantes avanços no tratamento da temática pelo legislador, pelo poder reformador constitucional e pela jurisdição constitucional brasileira, são diversas as questões que precisam ser revistas ou enfrentadas sobre a intimidade e a vida privada na era digital. Vejamos algumas.

O direito ao esquecimento surge originariamente no mundo pré-digital [7], levando em consideração especialmente a exposição de pessoas naturais pela televisão. Infelizmente, a jurisdição constitucional brasileira recentemente analisou o direito ao esquecimento, a partir de um caso analógico (programa de televisão que expôs novamente, em 2004, o homicídio ocorrido na década de cinquenta do século passado), no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ [8]. O contexto analógico é bastante diverso da vida atual mediada pela tecnologia digital, em virtude de inúmeras razões. Em primeiro lugar, as pessoas naturais interagem com frequência, nos âmbitos pessoal e profissional, por meio de aplicativos, redes sociais e demais instrumentos digitais, inexistindo essa intensidade de comunicação e de compartilhamento anteriormente. Em segundo lugar, a quantidade de informações e de dados pessoais armazenados, em arquivos e bancos de dados públicos e privados, é enorme, podendo impactar em quase todas as dimensões da existência humana e social. Em terceiro lugar, o desenvolvimento da personalidade dos seres humanos acontece com a utilização dos instrumentos digitais.

Nesse novo tempo, o que era válido, no mundo quase que exclusivamente analógico, não pode permanecer sem alterações, impondo-se o exercício de uma hermenêutica constitucional renovada com a ampliação do âmbito de proteção de direitos fundamentais já fixados, como o direito à intimidade e à vida privada [9]. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal fixou o Tema 876 sobre o direito ao esquecimento, no Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, contudo a primeira parte da tese é preocupante, tendo a seguinte redação: "É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social — analógicos ou digitais" [10] [11]. O rótulo do direito ao esquecimento, por boa parte da literatura especializada, é utilizado de maneira ampla para uma série de dimensões do desenvolvimento da personalidade, na sociedade digital. Desse modo, não é jurídica, constitucional e socialmente possível compreender e aceitar a incompatibilidade desse direito com a Constituição Federal brasileira de forma tão ampla, já que diversas dimensões do direito ao esquecimento são adotadas no direito estrangeiro e brasileiro [12].

Assim, uma interpretação restritiva da incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, para fins do Tema 876, é necessária, possuindo também guarida esse entendimento na segunda parte da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal: "Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

05. A questão da publicidade de informações pessoais e públicas continua muito atual, na tutela do direito fundamental à intimidade e à vida privada, nos marcos do Estado Democrático de Direito. O governo federal brasileiro anterior determinou o sigilo de até cem anos, para uma série de informações que são públicas, logo não se amoldam ao disposto no artigo 31, Lei Federal nº 12.527/2011. Dessa forma, corretamente o atual governo federal determinou à Controladoria Geral da União a reavaliação da concessão desse acesso restrito, buscando verificar a adequada aplicação da Lei de Acesso à Informação e a prevalência de questões públicas e de Estado em diversos assuntos cobertos por esses sigilos [13]. Situação diametralmente oposta sobre o resguardo versa sobre o direito à extimidade, o qual pode ser definido como o poder ou a faculdade "de usufruir, propositivamente, de informações da própria intimidade em ambientes de sociabilidade, por meio da sua exposição voluntária, sem a intenção consciente de tornar a informação veiculada pública, visando à emancipação e/ou ao empoderamento" [14].

Conforme defendi outrora, a intimidade é elemento central e paradoxal da vida privada e da vida em geral das pessoas naturais, ocorrendo muitas vezes a divulgação voluntária de informações pessoais pelo próprio titular. Isso não significa que a intimidade perdeu sua força, e sim que aspectos centrais da vida privada representam os principais elementos da personalidade humana [15]. Pelo exposto, faz todo o sentido proteger o direito à extimidade, nos moldos descritos acima, concretizando na era digital a autodeterminação das pessoas humanas. Mesmo reconhecendo a existência da extimidade, o alerta de Francisco Balaguer Callejón sobre a banalização da exposição da intimidade é essencial: "La escasa preocupación de los nativos digitales por su derecho a la intimidad se explica en gran medida porque han sido 'dopados' muy tempranamente por las compañías tecnológicas, con aplicaciones que están destinadas justamente a la exhibición pública" [16].

06. A intimidade e a vida privada residem no coração do constitucionalismo, possuindo novos e velhos dilemas e necessitando de aprofundamento o debate na esfera pública e na comunidade jurídica.

 


[1] Dentre os trabalhos acadêmicos, cf. ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida Privada: Paradoxos Jurídicos e Sociais na Sociedade Pós-Moralista e Hipermoderna. Curitiba: Juruá, 2010.

[2] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Tradução: Roberto Raposo, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 48.

[3] ARENDT, Hannah. A Condição Humana, p. 60.

[4] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida privada, p. 62.

[5] CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, Petição Inicial da ADI nº. 6649/DF, assinada em 18/12/2020.

[6] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADI nº. 6649/DF, voto do relator min. Gilmar Mendes, 15/09/2022.

[7] Acerca das realidades física e virtual, cf. CALLEJÓN, Francisco Balaguer Callejón. La Constitución del Algoritmo. Zaragoza: Fundación Manuel Giménez Abad, 2022, p. 60-65.

[8] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Recurso Extraordinário nº. 1.010.606/RJ, relator ministro Dias Toffoli, julgamento em 11/2/2021.

[9] Nesse sentido, cf. CELESTE, Edoardo. Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights. New York, 2023, pp. 189-191.

[10] Sobre o julgamento, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. STF e direito ao esquecimento: julgamento a ser esquecido ou comemorado? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-05/direitos-fundamentais-stf-direito-esquecimento-julgamento-esquecido-ou-comemorado. Acesso em: 6/1/2023.

[11] Agradeço e registro os profícuos debates sobre o tema, na disciplina de constitucionalismo digital com meus alunos e alunas do mestrado e doutorado do IDP, e especialmente as considerações sobre o julgado feitas pelo agora mestre em direito constitucional Alisson Possa.

[12] Sobre o reconhecimento no direito nacional, cf. SARLET, Ingo Wolfgang; FERREIRA NETO, Arthur M. O Direito ao "Esquecimento" na Sociedade da Informação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 130-155.

[13] "Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. § 1º. As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem: I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II – poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem".

[14] BOLESINA, I.; GERVASONI, T. A. A Proteção do Direito Fundamental à Privacidade na Era Digital e a Responsabilidade Civil por Violação do Direito à Extimidade. Novos Estudos Jurí­dicos, Itajaí­ (SC), v. 27, n. 1, p. 99, 2022.

[15] ROBL FILHO, Ilton Norberto. Direito, Intimidade e Vida privada, p. 124-174.

[16] CALLEJÓN, Francisco Balaguer Callejón. La Constitución del Algoritmo, p. 46.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da UFPR e do IDP, líder do grupo de pesquisa Democracia Constitucional, Novos Autoritarismos e Constitucionalismo Digital no IDP, membro do CCons-UFPR e sócio do escritório de advocacia Marrafon, Robl e Grandinetti.

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