Observatório Constitucional

Para que nunca mais aconteça

Autor

14 de janeiro de 2023, 8h00

O dia 8 de janeiro de 2023 marca a história brasileira pelo mais deplorável e lamentável ataque à democracia constitucional fundada em 1988. Deplorável pelas cenas de destruição e de irracional catarse coletiva afrontosas às instituições democráticas. Lamentável, porque tudo poderia ter sido evitado. Estupefatos ao acompanhar o horror dos acontecimentos, fomos todos levados a questionar: como chegamos a esse ponto? E o que poderemos fazer para que não se repita?

A primeira atitude foi a do necessário repúdio, externado por centenas de instituições, públicas e privadas, nacionais e internacionais, dos mais diversos segmentos sociais, em uma clara demonstração cívica da defesa intransigente do regime democrático no Brasil. A essas pertinentes manifestações aderiram os professores e pesquisadores deste Observatório Constitucional, com uma contundente Nota em Defesa da Democracia, que está publicada em suas redes sociais.

Mas manifestações de repúdio, apesar de necessárias, são insuficientes. Devem vir acompanhadas de uma obstinada procura pelas razões que levaram aos tristes episódios do último domingo em Brasília. Como todo processo histórico complexo, a atual crise da democracia brasileira é resultado de múltiplos fatores (políticos, sociais, culturais) e o espaço desta coluna é evidentemente curto para uma explanação adequada. Em obra recentemente lançada (Constitucionalismo e Democracia pós-2020, ed. Saraiva, 2022) [1], tento explicar, ao lado de outros autores, as semelhanças históricas e as razões das crises democráticas das décadas de 1920 e 2020, em diversos países. E, para um estudo específico da recente crise política brasileira, tenho indicado, entre outros, a obra Limites da Democracia (ed. Todavia, 2022), do professor Marcos Nobre (Unicamp, Cebrap), a qual retrata os momentos conturbados e as transformações das práticas políticas nacionais, desde as manifestações de junho de 2013 [2].

Para além das notas de repúdio e da busca incessante pelas razões de tudo que aconteceu, precisamos ser vigilantes na proteção da democracia e adotar prospectivamente atitudes cívicas que visem evitar novos ataques. Mais do que um dever das autoridades públicas, já incumbidas da persecução e responsabilização de todos os envolvidos (idealizadores, incentivadores, executores e financiadores), a defesa dos valores democráticos depende do engajamento de toda a sociedade. Atitudes individuais cotidianas, nas relações pessoais e profissionais, nos microssistemas sociais, podem fazer a diferença, nos momentos de crise, entre democracias resilientes e democracias decadentes.

O mais importante neste momento é questionarmos o que cada um pode fazer em seu campo de ação pessoal para diuturnamente defender a democracia. Como guia, temos a história, repleta de lições importantes sobre o que os cidadãos de uma democracia devem fazer para protegê-la. E aqui é importante ressaltar que os fatos políticos e sociais da crise democrática brasileira não são completamente inéditos; ao contrário, reproduzem em boa parte padrões conhecidos na história e são bastante típicos de outras crises democráticas já vivenciadas e devidamente explicadas por historiadores, politólogos, sociólogos, antropólogos. Já possuímos, portanto, bastante conhecimento sobre comportamentos públicos e privados que tendem a proteger ou a enfraquecer uma democracia.

Entre tantos outros, são relevantes os conselhos da obra Sobre a Tirania (ed. Companhia das Letras, 2019), um livro que precisa ser lido nos dias atuais. Nele, o historiador Timothy Snyder (Yale University) resume as vinte mais importantes lições do século XX para o presente, e ressalta: a história "nos mostra que as sociedades podem ruir, que as democracias podem entrar em colapso, que a ética pode ser aniquilada e que os homens comuns podem se ver diante de valas comuns com armas na mão. É importante hoje entendermos a razão disso".

Faço aqui uma adaptação dos conselhos dessa obra para sugerir algumas atitudes individuais que podem contribuir para a defesa coletiva da nossa democracia:

Defenda as instituições. Tenha sempre o propósito de cultivar a legitimidade e respeitar a autoridade institucional. Se for contrário a alguma decisão tomada pelas instituições democráticas de seu país, procure realizar críticas construtivas, que visem ao aperfeiçoamento e nunca à destruição institucional. Faça isso em foros públicos de debates, permitindo que suas propostas sejam conhecidas, discutidas e possivelmente incorporadas. Usar as redes sociais como trincheira privada para emitir meras opiniões desrespeitosas apenas terá o efeito negativo de alimentar e incentivar discursos de ódio que contribuem para deslegitimar, desautorizar e, a longo prazo, destruir a instituição. Se for especialista no assunto, escreva e publique artigos com as razões técnicas de sua divergência. Se for leigo, tenha plena confiança na capacidade técnica dos servidores públicos que participam dos procedimentos que resultam nas decisões.

Exerça sua liberdade com responsabilidade. O direito à livre manifestação de convicções políticas não lhe concede poderes para proferir discursos de ódio e agredir pessoas ou instituições. Como fundamento do regime democrático, a liberdade de expressão não pode ser exercida com o fim de destruir a própria democracia. Seja tolerante e cultive o respeito, a consideração e a convivência pacífica com pessoas e ideias diferentes das suas. Mas esteja atento às ideias radicais antidemocráticas, pois em alguns casos não deve haver tolerância em relação aos intolerantes.

Seja ético profissionalmente. Exerça suas funções profissionais com base nos princípios fundamentais e visando às missões precípuas de sua instituição ou empresa. Procure conhecer a fundo e cultivar os valores éticos de sua profissão. Não cumpra ou apoie ordens superiores que sabidamente sejam fundadas em ideologias políticas. Compreenda que seu comportamento ético tem o poder de incentivar outras pessoas e a assim criar uma corrente positiva na sociedade.

Se for convidado a portar armas, reflita. Não há nenhuma comprovação histórica de que a quantidade de armas em circulação seja proporcional ao grau de liberdade dos cidadãos. Ao contrário, a história está repleta de exemplos, especialmente em regimes autoritários, de que políticas armamentistas tem o resultado de incentivar conflitos internos e guerras civis. Armas são fabricadas com apenas um propósito: matar pessoas. Por isso, elas devem estar apenas em mãos apropriadas para funções típicas e necessárias das forças de segurança do Estado. Esta é uma das lições mais claras e evidentes da história.

Busque os fatos e acredite na verdade. Seja um curioso sobre a realidade. Procure a descrição dos fatos em fontes confiáveis. Investigue o mesmo fato em mais de um meio de comunicação, se possível em muitos. Se não tem certeza sobre a veracidade de uma notícia, não divulgue e não repasse em redes sociais. Saiba distinguir as notícias das opiniões sobre os fatos. Estude a história de seu país, em obras de historiadores reconhecidos e qualificados por universidades nacionais e estrangeiras.

Preste atenção a palavras perigosas. Palavras carregam energias que nos fazem vibrar positiva ou negativamente. Palavras perigosas se transformam em ações destrutivas, como a história comprova exaustivamente. Conhecidos líderes autoritários iniciaram sua vida política com palavras de ódio. Desconfie de discursos destrutivos contra as instituições democráticas, pois eles têm o potencial de se transformar em ações concretas contra a democracia.

Essas são apenas algumas das sábias lições retiradas da história das democracias. Creio que procurando compreendê-las e segui-las, na medida das possibilidades individuais, poderemos de alguma maneira ser mais responsáveis em relação à nossa atualmente pressionada democracia e com isso contribuir para que o dia 8 de janeiro nunca mais aconteça. Termino assim com a reflexão de Timothy Snyder: "A história nos permite ver padrões e fazer julgamentos. Ela esboça para nós as estruturas dentro das quais podemos procurar a liberdade. Revela momentos, cada um deles diferente, nenhum inteiramente regular. Compreender um momento é ver a possibilidade de participar da criação de outro momento. A história nos permite sermos responsáveis: não por tudo, mas por alguma coisa".

 


[1] VALE, André Rufino do (org.). Constitucionalismo e Democracia Pós-2020: reflexões na ocasião do centenário do constitucionalismo de Weimar (1919-1933). São Paulo: Saraiva: 2022.

[2] Entre outros, indico também a leitura do livro Linguagem da Destruição (ed. Companhia das Letras, 2022), da professora Heloísa Starling (UFMG), do prof. Miguel Lago (Sciences Po) e do prof. Newton Bignotto (UFMG), que analisam o atual momento político, especialmente os fenômenos do populismo e do crescimento de movimentos ultra-conservadores e de extrema direita, ressaltando os atuais riscos para a democracia no Brasil.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!