Opinião

Devido processo penal e flexibilização das formas

Autores

18 de janeiro de 2023, 9h17

Um dos pontos em que o processo penal evidencia a razão que o sustenta é quando aponta que, em um Estado de Direito, qualquer solução penal somente haverá de ser implementada quando se demonstre que esta apresenta absoluto acatamento às regras previstas em lei quanto ao procedimento tipificado para tal solução.

A imagem de uma ação penal ou de uma investigação criminal desprovida de limites, de guias e regramentos que a definem ou, ainda, uma persecução penal pronta para passar por cima destes, tudo em nome de um motivo "nobre", do "combate" à criminalidade, em nome do "bem" contra o "mal", é algo que vai diretamente contra a matriz da legalidade. Perfura ditames constitucionais, convencionais, além, claro, do próprio Código de Processo Penal enquanto instrumento previsto como limitador do poder punitivo e do arbítrio. Conforme Ada Grinover:

"Se a finalidade do processo não é a de aplicar a pena ao réu de qualquer modo, a verdade deve ser obtida de acordo com uma forma moral inatacável. O método através do qual se indaga deve constituir, por si só, um valor, restringindo o campo em que se exerce a operatividade do juiz […] A falta de exigências legais quanto às formas procedimentais leva à desordem, à incerteza, ao arbítrio" [1].

Não se desconhece que a reinvindicação por segurança, vinda de uma sociedade hiperacerelada, ansiosa para combater a criminalidade com rapidez, há de merecer a devida atenção. Contudo, está fadado ao erro o jurista afobado, apaixonado, que tem pressas e ânsias emotivas como a sociedade.

O profissional técnico não é formado para isso. Não será negando direitos previstos e formas legais normatizadas que a segurança virá a ser alcançada. Pelo contrário, antes que Estado convencional ou constitucional, a grande luta é que estejamos a viver, por princípio, em um Estado de Direito, no qual a legalidade, suas leis, seus comandos, tenham primazia e sejam devidamente observados, acatados e respeitados.

Não se combate crime atropelando as leis previstas no ordenamento. O empenho por segurança deverá ser sempre com a garantia de que está sujeitando-se à legalidade. Do contrário, não estamos falando de uma ação penal em um Estado de Direito e, portanto, criamos nós mesmos a falta de segurança, pois a história ensina (repetidamente) os males profundos de um Estado arbitrário.

Nessa lógica, o ordenamento penal não poderia ser visto como uma garantia se o processo penal, que o realiza, pudesse vir a ser conduzido pelo Magistrado da forma como este bem entendesse.

Ao negar-se densidade jurídica à forma, flexibilizando-a, esticando-a, menosprezando-a, com o fito de se atingir determinado fim, o que se faz é violar a garantia encerrada dentro desta forma como valor e como freio de limitação ao poder punitivo. A nosso ver, o que se deveria é tutelar o valor previsto na formalidade pois não temos dúvidas em afirmar que a "elastização", o "ajeitamento" da forma, gera direta ofensa a garantia ou direito fundamental que ela protege, nulificando o ato.

Isso nem é recente e muito menos inovador. Duarte Nazareth, em 1861 já dizia que:

"O processo é o complexo de regras e formalidades, segundo as quaes se administra justiça em qualquer Estado. […] É uma regra fundamental, e que deriva da mesma natureza das cousas, que o processo deve traçar d’antemão e com firmeza a estrada que a justiça deve percorrer, e que está encadeada e captiva em suas formas, não possa jamais desviar-se d’ellas" [2].

Hodiernamente, Aury Lopes Jr. insiste que "forma é garantia" e que "os procedimentos previstos são indisponíveis" [3].

Não há letra morta na lei. Não há letra morta na Constituição. Se foi desatendido o regramento posto, o ato deve ser declarado como nulo. Até porque, se as regras estão postas na Constituição e no Código de Processo Penal é para serem consideradas, pois, do contrário, qual seria o sentido democrático em produzir as mesmas? As regras estão postas.

No ramo constitucional, o "constitucionalismo abusivo" ocorre quando se força até o limite as bordas normativas para subverter limites e garantias da Carta Magna. Assim, ataca-se o núcleo principiológico constitucional mantendo-se, ao mesmo tempo, uma aparência de legalidade que dificulta o controle de constitucionalidade.

Seria como a bola que quica em cima da linha, um pouco para fora, dependendo de um excelente juiz a anulação do ponto. Assim é o trabalho do exegeta nesses casos, que deve entender muito bem o valor da forma e do valor defendidos, bem como sua interrelação. Deve-se sempre lembrar, nesse esforço, que um ponto, muitas vezes, pode custar todo o jogo. Conforme Steven Levitsky e Daniel Ziblatt:

"A erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos. Tomados individualmente, cada passo parece insignificante  nenhum deles aparenta de fato ameaçar a democracia. Com efeito, as iniciativas governamentais para subverter a democracia costumam ter um verniz de legalidade. Elas são aprovadas pelo Parlamento ou julgadas constitucionais por supremas cortes. Muitas são adotadas sob o pretexto de diligenciar algum objetivo público legítimo – e mesmo elogiável , como combater a corrupção, limpar as eleições, aperfeiçoar a qualidade da democracia ou aumentar a segurança nacional" [4].

Da mesma maneira, observamos reiteradamente na jurisprudência verdadeiro "processualismo penal abusivo". Estica-se ao máximo as formas processuais, flexibilizando-as e torcendo-as, de maneira a erodir direitos e garantias com aspecto de legalidade. Por fora, argumentos jurídicos com "cara" de validade, já no conteúdo, o intuito de diminuir direitos humanos tão arduamente conquistados.

Esse processualismo vesgo em que os tribunais insistem, ao validar torrencialmente as nulidades como relativas e nenhuma como absoluta, esse utilitarismo em nome do resultado, é postura constitucionalmente pobre.

A democracia é um caminho árduo. O Estado de Direito é frágil. Ela e ele começam a ruir quando aqueles que juraram cumprir a Constituição reescrevem-na a cada situação, a cada necessidade, a cada capa de processo. Ao se dar maleabilidade às regras do jogo em cada partida, subverte-se, em última análise, a própria democracia.

Encerramos com Andrés Rosler:

"Um juízo genuíno não é um espetáculo, nem uma ocasião para se enviar uma mensagem, senão um ritual que somente terá sentido se cumprirmos rigorosamente com todas as suas formas. De outro modo, como muito bem disse Robespierre, não ofereceríamos ao Universo senão uma comédia ridícula" [5].

 


[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdade Públicas e Processo Penal. São Paulo: RT, 1982, p. 58-59.

[2] DUARTE NAZARETH, Francisco J. Elementos do Processo Criminal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1861, p. 26-27.

[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 794.

[4] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 94.

[5] ROSLER, Andrés. Si quiere una garantia compre una tostadora. Buenos Aires: Editores Del Sur, 2022, p. 235.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!