Ambiente Jurídico

Ministério dos Povos Indígenas, uma grande inovação

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

14 de janeiro de 2023, 8h00

Na coluna do dia 7/1/2023, escrevi neste espaço Um novo meio ambiente em 2023, tratando de diversas mudanças normativas introduzidas no início deste ano, inclusive da edição da Medida Provisória nº 1.154/2023, que estabeleceu a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios. A MP criou o Ministério dos Povos Indígenas, que passou a ser comandado pela deputada federal Sônia Guajajara, a primeira ministra indígena do país.

Spacca
A antes denominada Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia federal instituída em 1967 como sendo o maior órgão envolvendo o assunto, agora se chama Fundação Nacional dos Povos (da palavra espanhola "pueblo") Indígenas (igualmente
Funai — artigo 58 da MP nº 1.154/2023), e está integrada ao Ministério dos Povos Indígenas, juntamente com o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 e extinto pelo Decreto nº 9.759/2019.

São competências do ministério (artigo 42) a política indigenista; o reconhecimento, garantia e promoção dos direitos dos povos indígenas; o reconhecimento, demarcação, defesa, usufruto exclusivo e gestão das terras e dos territórios indígenas; o bem viver dos povos indígenas; a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato; e acordos e tratados internacionais, em especial a Convenção nº 169 da OIT, quando relacionados aos povos indígenas.

No dia 1º de janeiro foi publicado também o Decreto nº 11.355/2023, que por sua vez aprovou a estrutura regimental e o quadro de cargos e funções do ministério recém criado, com o objetivo de viabilizar seu funcionamento. Paralelamente a esses atos executivos, não se pode perder de vista que o alicerce maior da temática está delineado por um capítulo próprio na Constituição Federal — art. 231, com seus sete parágrafos.

O "caput" do artigo tem a seguinte redação: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Vemos então dois aspectos centrais que mereceram destaque na Carta Maior: a preservação da cultura dos povos tradicionais e o seu direito a espaço territorial.

No tocante ao aspecto cultural, o que se busca é o "bem viver" de que trata a MP nº 1.154/23. Convivo com os Guaranis das Aldeias Tekoá Pindó Mirim, do Rio Grande do Sul (Viamão), e Mymbá Roka, de Santa Catarina (Biguaçú), e tenho aprendido muito com a cultura desses povos. Inclusive passo períodos com eles, assim como fiz com os Shipibos, na Amazônia Peruana.

Os Guaranis residem sobretudo nas regiões Sul e Sudeste do território brasileiro, na Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. Nas comunidades que frequento, falam entre si em português e em guarani, e com os não-indígenas (juruá) em português. Dizem que é tão difícil para quem não tem costume com a língua que aprender pode ser mais complexo do que falar japonês ou mandarim. A propósito, há inúmeros grupos dentre os Guaranis, os quais têm seus dialetos próprios, além de hábitos e afazeres diversos. Boa parte vive da agricultura e do artesanato. Assim como no Brasil temos diversos "brasis", com os indígenas o mesmo acontece, de tal forma que há semelhanças entre eles, mas também muitas diferenças.

Parte expressiva das comunidades indígenas perdeu suas raízes, sua cultura original, não sendo raro que estejam dominados por hábitos alheios a suas tradições, como fazendo uso de cigarro, bebidas alcoólicas e de outras substâncias entorpecentes, e inclusive sendo absorvidos por credos religiosos alheios a seus ensinamos ancestrais. Isso não acontece nas duas aldeias que mencionei; por isso gosto de estar com eles, de aprender, de ajudar, de participar da rotina, dos rezos. O que aprendi é que há muita sabedoria em seu DNA, e que nos lugares em que a espiritualidade de base é preservada o conhecimento e os ensinamos são riquíssimos.

Algumas coisas parecem estranhas aos juruá, como o uso do tabaco em cachimbos (eles chamam de petyngua). A medicina do tabaco é milenar, a planta é forte, resistente, uma expressão de poder da natureza. Inclusive crianças andam com seus cachimbos, que são utilizados no dia a dia, sem tragar, e em especial nos rituais espirituais, onde há toda uma "medicina" própria, com curas utilizando-se também os cachimbos. Eles também consideram medicina a erva mate do chimarrão, por exemplo. O cacique é o líder administrativo, enquanto o pajé é o mentor espiritual, dividindo-se assim as funções dos ocupantes dos cargos mais importantes nas aldeias.

Alcindo Werá Tupã é um ancião de 112 anos, que vive em Biguaçú, Santa Catarina, sendo conhecido como um grande curador. Pode ser comparado a um médico que conhecemos, embora eu veja que nesses locais não há contraindicação do uso da medicina farmacêutica com a qual estamos habituados. Presenciei ele fazendo curas incríveis, no Fogo e à noite, até mesmo zerando meu grau de miopia dos dois olhos, permanecendo o astigmatismo, que é irregular em razão da córnea não linear. Antes eu usava óculos para perto e longe, e não conseguia enxergar sem a "bengala". Atualmente somente utilizo óculos ou lentes para dirigir ou enxergar à distância. Seu fogo sagrado, sem apagar há décadas, é o elemento vivo de força, e parte dessa história está acessível a todos no documentário Werá Tupã e o Fogo Sagrado (clique aqui para assistir ao trailer).

O filme começa com a seguinte lição do Ancião: "Quando a noite chega, eu olho bem para esse Fogo. Vocês têm televisão; às vezes passa um capítulo bom, às vezes ruim. Acontece também com o Fogo. Eu vejo as imagens passando em cima do Fogo". Seu Alcindo diz que muitos falam com espíritos, mas não alcançam níveis mais elevados. Ele recebeu o dom de comunicação com o Pai (Nhanderu). Talvez por isso tenha a benção de ter alcançado essa idade e com saúde plena, sem tomar um remédio sequer. É um agricultor, vai à roça todos os dias. Pede proteção ao planeta para vivermos em harmonia, alegria e com proteção.

Os anciãos fazem questão de afirmar "eu sei que nada sei", repetindo as palavras de Sócrates. Isso por reconhecerem que todos somos humanos e, portanto, falhos. Nhanderu sempre leciona que não se deve enganar os outros, sendo sua manifestação normalmente canalizada através dos comportamentos e das falas das crianças, que são puras, ingênuas, características que nos faltam muitas vezes. Werá Tupã é um dos líderes espirituais com maiores poderes de cura e, diferentemente da medicina tradicional, elas acontecem rapidamente, evitando não raro cirurgias já recomendadas por médicos. O tratamento é para o corpo-espírito, sabendo-se que temos de estar alinhados física, emocional e espiritualmente. Ao lado do fogo, os ancestrais zelam muito pela água. E têm a missão atual de abrir as aldeias e suas casas de rezo (Opy) aos não-indígenas, para a promoção de uma integração necessária.

Como se vê, a cultura deve ser preservada, sendo incompreendida por quem simplesmente nunca conviveu com indígenas nem fez questão de, com mente "aberta", pesquisar e estudar as peculiaridades daqueles que nos antecederam, e que em verdade são nossos irmãos. Temos uma dívida histórica com os índios e particularmente com os Guaranis. Por isso, tenho buscado ajudá-los materialmente. Por contato que fiz com o Ministério Público do Trabalho gaúcho, conseguimos reverter verbas de acordos em prol da Aldeia Tekoá, em quantitativo superior a R$ 320 mil. Um trator comprado com esse dinheiro, por exemplo, em poucas horas fez o trabalho que dezenas de indígenas faz ao longo de um ano.

No Peru presencie com os Shipibos curas serem feitas com as medicinas da Floresta, isso com uma série de pessoas, tanto indígenas quanto com não-indígenas. Vou relatar duas situações ocorridas comigo. Lá chegando tive dores de cabeça fortíssimas por dois dias. Tomei remédio farmacêutico e não resolveu. Então fui chamado pelo líder da aldeia e, com dois de seus 19 irmãos, colocaram plantas na minha cabeça, enrolando com ataduras. Fizeram um ritual em Shipibo durante uns minutos e, ao me levantar, a dor tinha desaparecido. Também tomamos um chá de "pion", que produz vômitos e diarreia por horas. A prática provoca uma limpeza total do intestino. Fazem periodicamente com os índios esse procedimento. Resultado: perdi peso mais rápido e fiquei com os sentidos da visão, audição e da sensibilidade corporal mais aguçados.

O segundo aspecto resguardado com ênfase pela CF e pela MP nº 1.154/2023 é o direito dos índios de ocupação das terras por eles habitadas em caráter permanente, imprescindíveis à sua subsistência, à preservação ambiental, a seu bem-estar e à sua reprodução física e cultura, segundo seus usos, costumes e tradições. Não se trata de direito de propriedade, mas de posse permanente, competindo-lhes o usufruto das riquezas do solo e de seus mananciais hídricos. A exploração desses recursos em terras indígenas só pode se dar com autorização do Congresso Nacional, ouvidos os povos afetados, com reserva a eles dos resultados da lavra.

Porém, como adverte o promotor de Justiça de Rondônia e doutor pela USP/SP, Pedro Colaneri Abi-Eçab, "Vastas áreas em terras indígenas vêm sendo arrendadas pelas próprias comunidades para agropecuaristas. A prática se dá em diversos pontos do país, alegadamente em razão da falta de alternativas econômicas para os povos indígenas. Tal conduta viola frontalmente o art. 231, § 6º, da Constituição da República, que os declara nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (Planeta Amazônia: Revista Internacional de Direito Ambiental e Políticas Públicas Macapá, nº 3, p. 01-17, 2011). Na forma do artigo 129, V, da CF, compete ao Ministério Público defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas.

Devemos empreender esforços para que as novas estruturas de governo reforcem a fiscalização, incentivos normativos, tributários, trabalhistas e linhas de financiamento para atividades socioambientalmente corretas nas terras indígenas existentes no Brasil, com especial destaque para a Amazônia Legal, com vistas a impedir ou dificultar a exploração ilegal dos territórios tradicionalmente ocupados pelos povos originários, que suas áreas sejam regularmente demarcadas, e que a cultura dos antepassados seja preservada na máxima medida possível. Assim agindo, estaremos dando cumprimento aos mandamentos do artigo 225 da CF, que impõe ao poder público e à coletividade o dever de defesa e preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e as futuras gerações.

Autores

  • é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil, mestre em Direito Ambiental, professor em cursos de pós-graduação e extensão, integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente e autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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