Prática Trabalhista

Apontamentos sobre o IDPJ invertido na execução trabalhista

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

12 de janeiro de 2023, 8h00

No final do ano de 2022, havia sido aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 3.401/2008, que disciplinava novo procedimento para a declaração judicial da desconsideração da personalidade jurídica [1]. Contudo, o PL não foi sancionado pelo presidente da República, sendo a proposição vetada totalmente. De acordo com a mensagem nº 657, de 13 de dezembro de 2022 [2], enviada ao presidente do Senado Federal, as razões para o veto foram em virtude de sua "inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público".

Com efeito, conforme já abordado em texto anterior, publicado nesta coluna [3], o incidente de desconsideração da personalidade jurídica tem por objetivo coibir fraudes e abusos da personalidade jurídica. Mas o que seria o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) na modalidade inversa ou invertida? E, mais, tal procedimento seria compatível com os princípios que norteiam a execução trabalhista?

De início, para uma melhor compreensão deste instituto, oportunas são as palavras de Bem-Hur Silveira Claus [4]:

"Enquanto a clássica desconsideração da personalidade jurídica opera como técnica para inibir a utilização indevida da autonomia patrimonial da sociedade personificada e visa responsabilizar o sócio pelas obrigações da sociedade, a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica opera para coibir a confusão patrimonial entre sócio e sociedade, responsabilizando a sociedade personificada por obrigações do sócio que oculta seu patrimônio pessoal no patrimônio da sociedade.

Em ambas as situações, a ordem jurídica resgata o latente caráter prospectivo do princípio da primazia da realidade, para superar a formal distinção com a qual distinguira o patrimônio da sociedade do patrimônio pessoal dos sócios, apagando as linhas imaginárias com que o direito autonomiza esses dois patrimônios com o objetivo de estimular o desenvolvimento da atividade econômica regular (CLAUS, 2010, p. 66).

Noutras palavras, a ficção teórica com a qual a formulação jurídica lograra superar o fato objetivo de que a atividade econômica tem por atores determinadas pessoas naturais retrocede pela saneadora potência com que o princípio da primazia da realidade restaura o primado da ordem jurídica, impedindo que eficácia jurídica da autonomia patrimonial reconhecida à sociedade personificada seja utilizada para prejudicar terceiros".

Spacca
Nesse diapasão, verifica-se que, a partir do aperfeiçoamento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica clássica, houve o avanço da desconsideração invertida, como uma ferramenta fundamental contra a "blindagem patrimonial".

Do ponto de vista normativo, o §2º do artigo 133 do Código de Processo Civil [5] admite, de forma expressa, a desconsideração invertida da personalidade jurídica. Nesse desiderato, se constatado que os sócios atuaram com abuso de poder, ou, ainda, de forma ilícita, é plenamente possível a responsabilização do patrimônio da pessoa jurídica em razão das dívidas contraídas por aqueles.

Entrementes, é sabido que por diversas vezes, e não obstante os sócios sejam devidamente incluídos na fase executiva, a execução trabalhista resta infrutífera, de sorte que o credor não consegue ter satisfeito os seus créditos. Essa infeliz constatação frusta, em última análise, o objetivo maior do processo executivo, qual seja, fazer cumprir o que foi determinado no comando decisório, e, acima de tudo, satisfazer os direitos já garantidos e assegurados na fase de conhecimento.

Além do mais, o crédito trabalhista, em razão da sua natureza alimentar, está ligado diretamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, cujo vetor deve ser respeitado e valorizado. E por falar em princípios, relembre-se que, na concepção jurídica, pode-se dizer que são eles bases e pilastras de todo um sistema normativo, afinal, através deles o julgador poderá se basear tanto na criação quanto na aplicação do Direito propriamente dito ao caso concreto.

Frise-se, porém, que a pretexto de se impor o cumprimento do crédito trabalhista, não se está aqui a negar a importância e, sobretudo, a observância do princípio da natureza real da obrigação. Na prática, a partir da adoção da técnica de ponderação, já que não é possível simplesmente aniquilar princípios colocados em rota de colisão, implica dizer que o devedor irá responder com os seus bens pelos débitos existentes, conforme preceituam os artigos 789 [6] e 824 [7] do Código de Processo Civil.

Acontece que a responsabilidade patrimonial que recai sobre o devedor não anula, como já explicado acima, a incidência do princípio da utilidade em favor do credor, o qual busca a satisfação do crédito trabalhista mediante a constrição de bens necessários para cumprimento da obrigação com base no artigo 831 [8] e 836 [9] Código de Processo Civil.

A propósito, vale lembrar que, em nosso ordenamento jurídico, existem duas teorias consagradas para a aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica: (1) de um lado, com fundamento no artigo 50 do Código Civil [10], tem-se a "Teoria Maior"; e (2) de outro, a "Teoria Menor", com base no artigo 28, §5º do Código de Defesa de Consumidor [11], sendo esta última admitida corriqueiramente na esfera trabalhista.

Aliás, com base no artigo 889 da Consolidação das Leis do Trabalho [12], a aplicação da "Teoria Menor" também encontra guarida judicial na observância da Lei de Execução Fiscal [13] (Lei nº 6.830/80).

Dito isso, certo é que os Tribunais Regionais do Trabalho já foram provocados a emitirem um juízo de valor sobre a temática do incidente de desconsideração da personalidade jurídica inversa ou invertida. Nesse sentido, os magistrados integrantes da Seção Especializada em Execução do TRT-RS da 4ª Região já se debruçaram sobre o assunto [14]. E, ao analisarem um caso envolvendo o tema, a desembargadora Relatora ponderou:

"Tanto a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, quanto a teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica são amplamente aplicadas nesta Justiça Especializada e autorizam que os bens particulares do sócio ou do ex-sócio respondam pela execução de débitos trabalhistas da empresa. Na modalidade inversa, permite a desconsideração da autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizá-la por obrigação do sócio que esvazia seu patrimônio pessoal (art. 790, inc. II, e art. 795, ambos do CPC; art. 28 do CDC; e art. 50 do CC). (…). Destaca-se, ainda, que no processo do trabalho, não se admite que os créditos do trabalhador fiquem a descoberto enquanto os sócios da empresa empregadora livram seus bens pessoais da execução, quando é indiscutível que se beneficiaram da força de trabalho despendida pelo empregado".

De igual modo, para os desembargadores da 1ª Turma do TRT-MG da 3ª Região, o instituto do IDPJ invertido é absolutamente aplicável ao Processo do Trabalho, consagrando, na ocasião, a aplicação da "Teoria Menor" [15]. Em seu voto, a desembargadora relatora, asseverou:

"Nessa linha, importante registrar que o Direito Trabalhista consagra a Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica, segundo a qual o simples inadimplemento do débito trabalhista, ou ausentes bens, da empresa devedora, suficientes para garantir a execução, autoriza que os bens patrimoniais dos sócios respondam pelas dívidas contraídas pela empresa executada, conforme arts. 50 do CC/02 e 28 do CDC.

Por sua vez, o instituto da desconsideração inversa faz o caminho contrário, para buscar a efetividade da execução por meio de penhora de bens e valores de empresa que integra o patrimônio do executado, pessoa física, ou seja, empresa da qual o executado figure como sócio. Afasta-se, assim, a autonomia patrimonial da sociedade para responsabilizá-la por obrigação de seu sócio".

Em arremate, em prestígio aos princípios da boa-fé objetiva e da função social da empresa, é irrefutável a aplicação da teoria da desconsideração inversa ou invertida da personalidade jurídica na execução trabalhista. Portanto, seja com o intuito de evitar fraudes, seja como forma de garantir o pagamento dos débitos trabalhistas, caso seja julgado procedente o IDPJ, na modalidade invertida, poderá a pessoa jurídica responder com o seu patrimônio pelas dívidas contraídas por seus sócios.

 


[1] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/394313. Acesso em 6/12/2022.

[4] Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/77697/2013_claus_ben_hur_desconsideracao_inversa.pdf?sequence=1&isAllowed=y. A desconsideração inversa da personalidade jurídica na execução trabalhista e a pesquisa eletrônica de bens de executados Acesso em 27/12/2022.

[5] Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. (…). § 2º. Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

[6] Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.

[7] Art. 824. A execução por quantia certa realiza-se pela expropriação de bens do executado, ressalvadas as execuções especiais.

[8] Art. 831. A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios

[9] Art. 836. Não se levará a efeito a penhora quando ficar evidente que o produto da execução dos bens encontrados será totalmente absorvido pelo pagamento das custas da execução. § 1º. Quando não encontrar bens penhoráveis, independentemente de determinação judicial expressa, o oficial de justiça descreverá na certidão os bens que guarnecem a residência ou o estabelecimento do executado, quando este for pessoa jurídica. § 2º. Elaborada a lista, o executado ou seu representante legal será nomeado depositário provisório de tais bens até ulterior determinação do juiz.

[10] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

[11] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (…). § 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[12] Art. 889 – Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente Título, os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal.

[13] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6830.htm. Acesso em 27/12/2022.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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