Prática Trabalhista

Os novos regramentos para o IDPJ e a (in)segurança jurídica

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

8 de dezembro de 2022, 8h00

Recentemente, foi aprovado pelo Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 3.401/2008, que disciplina o novo procedimento para a declaração judicial da desconsideração da personalidade jurídica [1]. Essa iniciativa legislativa teve por objetivo maior trazer um regramento mais específico e detalhado para fins de se reconhecer a responsabilização dos sócios ou responsáveis legais na hipótese de a empresa não cumprir voluntariamente com a sua obrigação junto aos seus credores.

É importante frisar que o PL 3.401/2008 já está aguardando a sanção pelo presidente da República, ato esse que deverá acontecer até o dia 13/12/2022, expirando-se o prazo após esse período. Assim, caso seja sancionado, sem vetos, a nova legislação entrará em vigor imediatamente, aplicando-se a todos os processos em curso no Poder Judiciário.

De início, é extremamente relevante fazer algumas breves e fundamentais considerações sobre o próprio instituto da desconsideração da personalidade jurídica que, como é cediço, surgiu justamente com o intuito de evitar atos de fraude e os abusos cometidos pelas pessoas jurídicas.

Com efeito, não há dúvidas de que o instituto da desconsideração da personalidade, também conhecido como disregard doctrine, causa uma série de inquietações frente aos sócios atuais e/ou retirantes da sociedade empresarial. Acontece que não há que se confundir a desconsideração, com a própria despersonificação da personalidade jurídica, pois, embora alguns doutrinadores e julgadores utilizem tais expressões como se fossem sinônimas, na despersonificação ocorre a autêntica anulação da constituição da sociedade, necessitando de ação judicial própria para que isso aconteça.

Spacca
Nessa linha de raciocínio, oportunos são os ensinamentos do professor Élisson Miessa [2]:

"É sabido que a pessoa jurídica não se confunde com a figura de seus sócios. No entanto, como estudamos anteriormente, o sócio tem a responsabilidade secundária, ou seja, seu patrimônio poderá ser atingido para arcar com o pagamento da dívida da pessoa jurídica. Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica.

Nesse caso, levanta-se o 'véu' da pessoa jurídica para adentrar no patrimônio do sócio, sem que isso retire a personalidade jurídica da sociedade. É por isso que se fala em desconsideração da personalidade jurídica e não em despersonalização".

De mais a mais, em nosso ordenamento jurídico coexistem hoje duas teorias já há tempos consagradas para fins de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica: de um lado, com fundamento no artigo 50 do Código Civil [3], tem-se a Teoria Maior; e, de outro lado, a Teoria Menor, com base no artigo 28, §5º do Código de Defesa de Consumidor [4].

Na chamada Teoria Maior (subjetiva) devem estar presentes dois requisitos, quais sejam: (1) comprovação da insuficiência de bens para a quitação do débito; e (2) reconhecimento da fraude ou abuso de direito em decorrência do desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Já na Teoria Menor (objetiva), ao revés, basta a demonstração de que a pessoa jurídica não possui bens para satisfazer a dívida frente a seus credores.

Aliás, com o advento da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 [5] (Novo Código de Processo Civil), foi introduzido um capítulo específico na legislação para tratar da operacionalização do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, conforme se observa dos artigos 133 a 137 do referido diploma normativo. E, mais, o Tribunal Superior do Trabalho já havia se pronunciado, de forma favorável, quanto à aplicabilidade do IDPJ na Justiça do Trabalho, nos termos do artigo 6º da Instrução Normativa 39/2016 [6].

De igual modo, a Lei 13.467/2017, conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, inseriu na Consolidação das Leis do Trabalho o artigo 855-A [7], o qual expressamente chancelou a adoção do IDPJ aos processos trabalhistas, a saber: "Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil". Verifica-se, assim, que o sócio poderá responder de forma subsidiária [8], ou, ainda, de forma solidária, na hipótese de comprovação de fraude na alteração societária [9].

Vale destacar que o Projeto de Lei, caso seja sancionado na íntegra pela Presidência da República, não invalidará os dispositivos normativos ora acima citados e até então vigentes. A justificativa para a aprovação desta nova legislação é a de que haja um melhor aclaramento no sentido a complementar o procedimento já existente para fins de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

Entrementes, oportuno relembrar que, historicamente, um dos gargalos da Justiça do Trabalho sempre foi a execução trabalhista, dada a enorme dificuldade da localização de bens dos devedores na fase de cumprimento de sentença, em que pese existirem atualmente diversas ferramentas eletrônicas para fins de pesquisa e quebra da blindagem patrimoniais [10]. E muito embora o projeto de lei traga uma aparente ampliação da imputação de responsabilidade patrimonial a outras pessoas para além da figura do sócio, a leitura crítica que se faz da redação final do referido PL é no sentido de que deve aumentar exponencialmente a problemática em si da responsabilidade patrimonial na fase executiva trabalhista.

Para tanto, de se citar a título ilustrativo o teor futuro artigo 6º do PL: "Os efeitos da decretação de desconsideração da personalidade jurídica não atingirão os bens particulares de membro, de instituidor, de sócio ou de administrador que não tenha praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio".

Ora, diferentemente da redação do artigo 50 do Código Civil, que hoje disciplina a Teoria Maior, se tornará necessária, doravante, a efetiva comprovação de que o ato praticado pelo sócio, por exemplo, não sido realizado com o fim exclusivo de causar prejuízo aos credores e, da mesma forma, que não tenha sido revertido em benefício próprio do devedor. Note-se, assim, que tal novidade legislativa, inobstante já existir a previsão similar no atual artigo 133, §4º do Código de Processo Civil, surge de forma mais analítica e detalhada.

Bem por isso, se sancionado o Projeto de Lei 3401/2008, tal como aprovado pelo Congresso Nacional, isso certamente será um ponto de grandes discussões jurídicas, principalmente quando se estiver diante da figura de sócio que não detenha amplo poder de gestão empresarial ou, ainda, se for o caso de sócio minoritário. Neste cenário, convém ponderar que, além de os bens do sócio não serem atingidos pelo IDPJ, isso trará de igual sorte um ônus sem precedentes na fase de execução do processo em razão da produção de uma aparente prova diabólica.

Sob essa perspectiva, e de acordo com o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania [11], "o projeto, nesse particular, deixa claro que os pressupostos que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica nas relações jurídicas trabalhistas ou consumeristas (v.g. art. 28 do CDC) e nos casos de ressarcimento por dano ao meio ambiente (art. 4.º da Lei 9.605/98) não se prestam, por exemplo, para fundamentar o pedido de desconsideração da personalidade jurídica nas relações civis ou empresariais". Portanto, conclui-se que, na esfera trabalhista, via de regra, seria admitida formalmente a aplicação da Teoria Menor.

Outrossim, é forçoso lembrar que a satisfação dos direitos trabalhistas se reveste de caráter alimentar, tendo em vista que são destinados à subsistência do trabalhador e de sua família, de sorte que dificultar o seu recebimento pode ser entendido como um retrocesso social (CRFB, artigo 7º, "caput"). Além disso, o citado PL, em diversos pontos, em nada moderniza a legislação vigente, passando a reproduzir normas jurídicas até então existentes, a exemplo do direito de defesa e do contraditório.

Uma questão, porém, abordada no Projeto de Lei 3401/2008 e que, s.m.j revela-se totalmente inoportuna, a ponto de causar ainda mais morosidade ao procedimento do IDPJ, diz respeito à necessidade de intervenção do Ministério Público [12]. Observa-se que a lei exige a intervenção do Parquet, mesmo em situações em que não haja a configuração do interesse público ou social, o que, inevitavelmente, resultará em atrasos ainda maiores na entrega da prestação jurisdicional.

De resto, com relação aos casos de fraude à execução, o PL acabará por suprimir na prática a previsão contida no artigo 792, §3º, do Código de Processo Civil [13], na medida que a fraude seria caracterizada "quando, ao tempo da alienação ou oneração, tenham sido eles citados ou intimados da pendência de decisão acerca do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, ou de responsabilização pessoal por dívidas da pessoa jurídica".

Em arremate, é imprescindível salientar que o crédito trabalhista, por possuir natureza alimentar, está ligado diretamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. Portanto, levando-se em consideração que o contrato de trabalho é sinalagmático, deve existir entre as partes respeito mútuo assim como reciprocidade de direitos e obrigações, principalmente no momento da responsabilização dos sócios e representantes legais de uma respectiva empresa pelos débitos existentes frente aos seus trabalhadores.

 


[1] Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/394313. Acesso em 6/12/2022.

[2] Curso de Direito Processual do Trabalho. – 8ª ed. rev.,ampl. e atual. – São Paulo: Editora JusPodivum, 2021. Página. 1055.

[3] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

[4] Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (…). § 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

[8] Art. 10-A. O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, observada a seguinte ordem de preferência: I – a empresa devedora; II – os sócios atuais; e III – os sócios retirantes.

[9] Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do contrato.

[12] Art. 5º. O juiz somente poderá decretar a desconsideração da personalidade jurídica ouvido o Ministério Público e nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação por analogia ou interpretação extensiva.

[13] Art. 792. A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução: (…). § 3º. Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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