Opinião

A competência sancionadora dos Tribunais de Contas e o princípio da reserva legal

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10 de janeiro de 2023, 7h13

Não são raras as vezes em que a competência sancionadora dos Tribunais de Contas tem sido objeto de críticas doutrinárias, notadamente em torno da sua natureza. Não foi diferente com a publicação da Lei nº 14.230, de 2021, que reformou a Lei de improbidade administrativa (LIA), positivando que as sanções eventualmente aplicadas em outras esferas deverão ser compensadas com as sanções aplicadas nos termos da LIA, conforme dicção do §5º do artigo 21.

A despeito da previsão expressa quanto à compensação de sanções aplicadas em outras esferas, o texto normativo foi omisso quanto à identidade de fatos e de natureza das sanções que deverão ser compensadas, levando o intérprete a recorrer ao §3 do artigo 22 da Lindb para colmatar referida lacuna normativa.

Essa disposição normativa da LIA, por outro lado, confere reforço à  discussão em torno da necessidade de previsão legal das sanções aplicadas pelos Tribunais de Contas aos agentes jurisdicionados, objeto de abordagem deste artigo de opinião.

Não se desconhece que a interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal sinaliza para a sociedade qual a intensidade de aplicação do texto normativo, com a irradiação de seus valores por todo o ordenamento, promovendo-se uma verdadeira positivação dos valores constitucionais [1].

Assim, no Recurso Extraordinário nº 843.989, o STF, ao se discutir a natureza das normas sancionadoras no âmbito administrativo [2], reforçou-se a inegável repercussão direta na aplicação das sanções no âmbito dos Tribunais de Contas, na linha, inclusive, do que defende corrente doutrinária que difunde o direito fundamental ao regular exercício da função de controle, servindo como meio idôneo para evitar que abusos venham a ser cometidos em detrimento da regular atuação da administração pública, conclusão essa que se extrai do próprio artigo 5º §2º da CRFB/88 [3].     

O tema é instigante, sobretudo quando analisado em conjunto com outras leis que trazem vetores e parâmetros acerca da responsabilização de agentes  públicos e privados  no manejo de recursos públicos, a exemplo da Lindb, Lei nº 13.869/2019 – Lei de abuso de autoridade, a nova lei de licitações  Lei nº 14.133/2021, a própria Lei de Improbidade Administrativa e os seus reflexos na inelegibilidade de que trata a Lei Complementar nº 64/90.

Como visto, os sistemas de garantias fundamentais e o novo arcabouço legal reportado acabaram por, irremediavelmente, aproximar o sistema de responsabilização pelo manejo de recursos públicos aos princípios e regras inerentes ao Direito Administrativo sancionador, especialmente porque há inegável direito fundamental ao regular exercício do controle, com força normativa capaz de autorizar legitimamente a imposição de penalidade, de modo que encontrar seu sentido e alcance se revela como o resultado da ponderação das normas jus fundamentais.

Nessa esteira de raciocínio, defende-se a existência de um microssistema de responsabilização dos agentes públicos, que dialoga com fontes ligadas ao ramo do Direito Administrativo, com as garantias do Direito Penal e Processual Penal, respeitadas, é claro, as peculiaridades inerentes às distintas esferas.

Dentro dessa compreensão, importa reconhecer que os Tribunais de Contas, quando estabelecem a aplicação de multas decorrentes do não envio de documentos necessários à fiscalização, assim agem em aderência à reserva legal, dado que a previsão sancionatória vem contemplada em suas leis orgânicas.

Sob esse prisma, os ensinamentos de Fábio Medina Osório contribuem com à compreensão do tema, ao estabelecer uma distinção entre a aplicabilidade da reserva de lei, no âmbito do Direito Administrativo sancionador, e àquela de natureza essencialmente ligada ao Direito Penal [4].

Isso porque compreensão mais ampla do princípio da reserva legal, em sede de norma ligada ao Direito Administrativo sancionador, não permite concluir que a multa aplicada pelos Tribunais de Contas possa decorrer unicamente de atos infralegais do Tribunal de Contas, no exercício do seu poder regulamentar, não se exigindo, contudo, aderência plena e irrestrita à tipicidade penal, dado o dinamismo das ações administrativas e a autonomia entre as sanções.  

Nesse sentido, para além da autonomia entre as esferas administrativa e controladora, ambas com poderes sancionatórios próprios [5], impõe-se aos Tribunais de Contas a previsão de sanções em leis em sentido estrito, dada a inserção dessas instituições superiores de auditoria em um microssistema próprio de responsabilização de agentes públicos e privados no manejo de recursos públicos, do resulta necessário concluir, por outro lado, que a aplicação de sanções está sujeita ao dever de respeito aos direitos e garantias processuais das partes, em cumprimento ao disposto no artigo 73 da CRFB/88.

 


[1] Korand Hesse, A força normativa da Constituição, Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 1991.

[2] Artigo 1º, §4º — Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

[3] Viana Ismar. Fundamentos do processo de controle externo: uma interpretação sistematizada do texto constitucional aplicada à processualização das competências dos tribunais de contas  Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. p. 21.

[4] (Direito Administrativo sancionador. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 225).

[5] Acórdão TCU 766/2018 Plenário (Tomada de Contas Especial, relator ministro Benjamin Zymler) Responsabilidade. Inabilitação de responsável. Princípio do non bis in idem. Demissão de pessoal. A penalidade de inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública (artigo 60 da Lei 8.443/1992) não configura bis in idem com a pena de demissão estipulada no artigo 132, inciso XIII, da Lei 8.112/1990.

Autores

  • é auditor de controle externo, advogado, professor e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

  • é advogado, auditor de Controle Externo e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

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