Direito de defesa

Novo governo acerta ao alterar espaço institucional do Coaf

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3 de janeiro de 2023, 9h55

Em janeiro de 2020, o Congresso Nacional converteu em lei uma medida provisória expedida por Jair Bolsonaro, que deslocava o Coaf do Ministério da Fazenda para o Banco Central.

Spacca
À época escrevi um artigo neste espaço da ConJur com críticas à medida, em especial porque a alteração parecia enfraquecer um órgão indispensável ao combate à lavagem de dinheiro. Passados três anos, o novo governo traz de volta o Coaf para o Ministério da Fazenda, em decisão que parece bastante acertada, pelos motivos que tomo a liberdade de repetir, na esteira das reflexões pretéritas.

1. As Unidades de Inteligência Financeira: os diversos modelos internacionais
A melhor forma de combater organizações criminosas é identificar e bloquear seus bens. Para além da prisão de membros, a supressão de recursos é fundamental para esvaziar sua estrutura e capacidade de atuação.

Os produtos dos crimes praticados por essas organizações são em geral escondidos e reinseridos na economia formal através de diversas modalidades de lavagem de dinheiro. Para isso, são utilizadas operações simuladas e fraudes para conferir aos recursos de origem criminosa uma aparência de licitude.

Como o Estado não tem capacidade de fiscalizar todos os atos financeiros e comerciais usados para mascarar bens, diversos países — entre eles o Brasil — criaram um sistema de colaboração compulsória, pelo qual profissionais e entidades que trabalham em setores mais usados por criminosos para ocultação de recursos devem notificar autoridades públicas sempre que tomarem conhecimento de operações suspeitas, como transações com altos valores em espécie ou depósitos fracionados. Assim, bancos, prestadoras de serviços de ativos virtuais, cartórios, seguradoras, joalheiros, leiloeiros de arte, dentre outros, têm obrigação de colaborar com o poder público e comunicar atos de possível ocultação de bens ilícitos.

Tais comunicações são feitas às Unidades de Inteligência Financeira (UIFs), órgãos públicos com atribuição de recolher dados, organizá-los e repassá-los às autoridades competentes para investigar a lavagem de dinheiro, como o Ministério Público.

Diversas recomendações de entes internacionais de combate à lavagem de dinheiro recomendam a instituição de UIFs para sistematizar informações sobre movimentações atípicas de capital, aprimorar o combate à reciclagem de capitais e facilitar o intercâmbio de experiências em âmbito internacional.

Nessa linha, o Gafi (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) recomendou que os países criassem Unidades de Informação Financeira (UIF) que servissem como centro para receber, analisar e transmitir declarações de operações suspeitas (Recomendação 29). A Diretriz 2018/843 do Conselho Europeu destaca a importância das UIFs no combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro e indica como "essencial reforçar a eficácia e a eficiência das UIFs" [1].

Diante disso, diversos países criaram UIFs, com diferentes estruturas, a depender de sua vocação institucional e tradição jurídica. Existem basicamente três espécies de Unidades de Inteligência Financeira: (1) judiciais (2) coercitivas, (3) administrativas — sem considerar as híbridas, que mesclam elementos de cada uma delas.

As unidades judiciais são previstas, em geral, naqueles países nos quais o Ministério Público é parte integrante do Judiciário. Neles, as unidades têm natureza persecutória penal porque o próprio órgão responsável pela acusação possui os instrumentos de acompanhamento ou recebimento de informações sobre operações suspeitas. As unidades coercitivas têm natureza administrativa, mas podem determinar medidas cautelares como suspensão de transações, congelamento e sequestro de bens.

Por fim, as administrativas têm atribuição exclusiva de sistematização de informações e produção de análises sobre possíveis operações ilegais ou atípicas. Não têm poder de determinar medidas de coerção ou de iniciar processos judiciais. Apenas colhem a informação e comunicam, provocam ou instruem os demais órgãos competentes para a persecução penal ou investigação, como o Ministério Público e a polícia, nos termos e limites da lei.

Dado o papel central das UIFs no combate à lavagem de dinheiro, a comunidade internacional recomenda que os países se esforcem para garantir sua autonomia institucional, livrando-as de ingerências políticas e de manipulações que dificultem o exercício de suas funções. Em regra, tais entidades são ligadas diretamente a Ministérios da Fazenda ou da Justiça, com quadro próprio de servidores e estrutura orçamentária adequada.

2. O Coaf
A unidade de inteligência brasileira é o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — e tem natureza administrativa. Não se trata de órgão de investigação ou julgamento, nem de entidade com capacidade de promover medidas cautelares como quebras de sigilo ou bloqueio de bens. O Coaf é um órgão de inteligência, com atribuição estrita de receber, armazenar e sistematizar informações sobre operações suspeitas, elaborar relatórios sobre tais dados e enviá-los aos órgãos de investigação (polícia e Ministério Público), nos limites definidos em lei.

A lei de lavagem de dinheiro elenca, em seu artigo 9º, as pessoas físicas ou jurídicas que têm a obrigação de comunicar ao Coaf atos suspeitos de lavagem de dinheiro praticados em seu setor. Trata-se de uma gama heterogênea de atividades, que vai daquelas estritamente reguladas por órgão específico, como bancos, custodiantes, emissores e distribuidores de valores mobiliários, empresas de seguro, capitalização ou previdência privada até outras sem órgão regulador próprio, como o comércio de joias, metais preciosos, pedras, objetos de arte e antiguidades.

Justamente por receber informações de pessoas físicas e jurídicas de tantos e diferentes setores, o Coaf deve ser um órgão eclético, composto por representantes de diversos órgãos públicos, e não deve estar subordinado a uma autarquia específica, como o Banco Central. Por mais que esse órgão tenha experiência na prevenção à lavagem de dinheiro, suas funções não se confundem com as do Coaf. Aquele regulamenta e fiscaliza o sistema financeiro e as instituições financeiras. Esse é mais abrangente, pois recebe e sistematiza e informações de inúmeros setores, a maior parte deles sem qualquer relação com o sistema financeiro, como o comércio de bens de luxo, a corretagem de imóveis e a atividade notarial e de registros públicos. Apenas em 2022, o Coaf recebeu mais de 420 mil comunicados de notários e registradores, e mais de 320 mil oriundos do mercado segurador, não regulados pelo Banco Central, a revelar que o espectro de prevenção à lavagem de dinheiro é mais amplo do que as atividades reguladas por essa autarquia.

A existência de um Coaf forte e independente é a chave para prevenir e combater a lavagem de dinheiro. Isso passa por garantir que o órgão tenha capacidade de interagir com setores regulados por diversas entidades, objetivo mais fácil de atingir quando não se é subordinado a uma autarquia específica, como Banco Central.

Nesse sentido, merece elogios a medida tomada pelo novo governo. Que os próximos passos garantam uma política criminal efetiva, pautada pela legalidade no manejo dos dados pessoais e pela eficiência no tratamento das informações.

 


[1] Considerando 16 da DIRETIVA (UE) 2018/843 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 30 de maio de 2018 que altera a Diretiva (UE) 2015/849 relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e que altera as Diretivas 2009/138/CE e 2013/36/UE

[2] Lei 9.613/98. art. 16 e Decreto 9663/19, art. 3º

[3] Gafi — Nota interpretativa 8 da Recomendação 29 (UIFs)

[4] Gafi — Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)

[5] Lei 83/2017, art. 83

[6] Gafi – Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)

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