Observatório Constitucional

A decisão do Tribunal Constitucional alemão sobre o financiamento dos partidos

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

25 de fevereiro de 2023, 8h00

Uma lei que eleva os recursos públicos para financiamento dos partidos políticos em 15% por ano é aprovada no parlamento de modo relâmpago em prazo de dez dias da sua apresentação como projeto. Parece um caso anedótico, mas não é: trata-se da Lei Alemã de Modificação da Lei dos Partidos Políticos e outras Leis, de 10 de julho de 2018 (Gesetzes zur Änderung des Parteiengesetzes und anderer Gesetze).

Um grupo de 216 deputados do Parlamento (Bundestag) questionou a lei em controle abstrato de constitucionalidade perante o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht — BVerfG) com base no argumento de que o legislador não haveria se desincumbido do ônus de justificar o porquê do valor legalmente fixado, mas apenas defini-lo em lei sem apontar os critérios utilizados para tanto.

Em 24 janeiro de 2023, o Segundo Senado do tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei. Para fins do presente artigo, dois argumentos utilizados na decisão são de grande relevância: a) em caráter de obiter dictum, o tribunal apontou que distorções substanciais no processo de elaboração de uma lei podem levar à sua inconstitucionalidade formal e b) como ratio decidendi, entendeu-se que durante o processo legislativo de elaboração da Lei impugnada não foram apresentados argumentos suficientes para justificá-la.

Em relação ao primeiro argumento em caráter de obiter dictum, com base na ideia de causa petendi aberta das ações de controle abstrato de constitucionalidade, o tribunal analisou a questão da constitucionalidade formal da Lei em face do artigo 77 (regras do processo legislativo); artigo 38 (igualdade entre os parlamentares para participação no processo legislativo); e artigo 42 (publicidade dos trabalhos parlamentares), todos da Lei Fundamental Alemã (Grundgesetz GG).

O Tribunal partiu da constatação de que a GG não estabelece diretrizes para a duração do período de apreciação dos projetos durante o processo legislativo. Entretanto, "Ainda que à maioria parlamentar seja concedido um amplo espaço de conformação [Gestaltungspielraum] na definição do percurso procedimental no Parlamento, aponta-se que ele extrapolará concretamente a constitucionalidade formal da lei editada, caso os mencionados princípios sejam totalmente ou substancialmente desrespeitados sem justificativas concretas" (nr. 96).

A despeito das colocações feitas acima, o tribunal não realizou a avaliação da constitucionalidade formal do processo legislativo extremamente acelerado que levou à aprovação da lei impugnada, pois foi identificada outra razão pela qual a norma impugnada foi considerada materialmente inconstitucional.

Trata-se aqui de um caso claro de minimalismo judicial, em que o BVerfG poderia ter decidido a questão da constitucionalidade formal da lei impugnada, mas decidiu não o fazer pelo fato de haver outro fundamento jurídico suficiente para julgamento do caso. Na escolha do "caminho argumentativo" da decisão[1], o tribunal deixou expressa — em caráter de obiter dictum — uma importante consideração sobre a possibilidade de se avaliar a constitucionalidade formal de uma lei à luz do seu processo de produção, tendo em vista o respeito a princípios constitucionais como a igualdade entre os parlamentares e a publicidade dos trabalhos legislativos.

Já a ratio decidendi do acórdão centrou-se nos deveres constitucionais de fundamentação a serem adimplidos durante o processo legislativo.

O Tribunal entendeu que a lei impugnada efetivamente violou a norma constante do artigo 21, parágrafo 1, frase 1, da GG: "Os partidos participam na formação da vontade do povo". Isso porque deste dispositivo extrai-se um "mandamento de procedimentalização" (Prozeduralisierungsgebot) que exige a apresentação de razões para a tomada de decisão legislativa. Somente com o atendimento dessa exigência constitucional pode ser assegurada a necessária independência dos partidos políticos para que, de um lado, possam ter os mínimos recursos necessários para desempenho de suas atividades e, de outro, não sejam excessivamente dependentes do Estado.

No caso em exame, o tribunal entendeu que esse mandamento de procedimentalização deveria ser objeto de um controle jurisdicional ainda mais rigoroso, uma vez que se trata de área da legislação em que não há um conflito de posições políticas entre os parlamentares tão acentuado. Os mecanismos de competição política e debate parlamentar oferecem menores possibilidades de controle pelas minorias políticas, uma vez que seus interesses se alinham predominantemente aos das maiorias. Em face disso, o Tribunal entendeu que a extensão do controle de constitucionalidade das leis pode ser ampliada para avaliar também as justificativas apresentadas durante a tramitação legislativa, como forma de contrabalancear esse alinhamento de interesses parlamentares.

Cabe destacar que, no curso do processo judicial, o Parlamento e o governo trouxeram aos autos argumentos e dados que supostamente justificariam a tomada da decisão legislativa, em razão da elevação dos custos dos partidos políticos decorrentes da digitalização e do aumento das formas de participação de seus filiados em suas atividades.

O tribunal, contudo, entendeu que tais argumentos deveriam constar do histórico legislativo, ou seja, dos documentos do processo legislativo como o projeto e sua justificação, os pareceres das comissões e notas taquigráficas dos debates. Nas palavras do tribunal: "Uma justificativa rasa da decisão legislativa para elevação do limite absoluto do financiamento estatal dos partidos políticos não é suficiente. O desejado ganho de racionalidade decorrente da função de compensação da procedimentalização somente pode ser efetivamente alcançado quando as exigidas investigações de fato e ponderações ocorrerem no processo legislativo e forem correspondentemente documentadas. A procedimentalização dirige-se à construção da decisão e não à sua apresentação, ou seja, sua justificação retrospectiva" (nr. 131).

O Tribunal então pontua que a justificativa do projeto de lei, os depoimentos de especialistas em audiência pública perante Comissão do Bundestag e manifestações orais de parlamentares favoráveis ao projeto durante seu debate não foram suficientes para atender as exigências constitucionais de se apontar os critérios pelos quais se chegou ao valor para financiamento estatal dos partidos políticos (no caso, 190 milhões de euros por ano). Por essa razão, o tribunal declarou a inconstitucionalidade e nulidade da lei questionada.

Embora recente, o caso já chama atenção no debate alemão. Questiona-se se o BVerfG não estaria compreendendo indevidamente a legislação como atividade administrativa ("legislação no modo administração"), no sentido de uma ampliação do controle judicial de constitucionalidade das leis em semelhança ao controle judicial dos atos administrativos [2]. Também se levantam dúvidas se tal prática não desconsideraria a lógica política do processo legislativo, sobrecarregando-o com demandas de informações empíricas com ele incompatíveis [3].

Como já destacado neste Observatório [4], trata-se de mais uma decisão alinhada com tendência relativamente recente no direito comparado de expansão do controle judicial de constitucionalidade sobre o processo legislativo, em que se utilizam outros parâmetros de controle para além das regras constitucionais tradicionais de competência, inciativa e quóruns de votação. Nesse mesmo sentido, proponho que a partir da ideia de devido processo legislativo, é possível reconstruir as normas jurídicas que disciplinam o modo específico de produção normativa legislativa para compreender suas diretrizes e limitações em uma democracia representativa e deliberativa como a brasileira. Isso permite que, de um lado, seja respeitado o espaço de discricionariedade epistêmica e normativa do legislador em postura deferente da jurisdição constitucional, e, de outro lado, sejam submetidos a controle judicial o modo concreto pelo qual uma lei é elaborada em face do arcabouço constitucional que rege o processo legislativo [5].

A recente decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão insere-se neste debate, em particular sobre o chamado "controle semiprocedimental" de constitucionalidade [6], aqui entendido como um modelo de controle judicial de constitucionalidade material de um ato, em que os fatos e argumentos do processo legislativo em concreto são elementos juridicamente relevantes e não apenas meramente auxiliares da interpretação jurídica.

Não se trata apenas de investigar se o processo de elaboração de uma lei atende às regras constitucionais tradicionais. Nesse modelo, outras exigências constitucionais derivadas dos princípios do devido processo legislativo (como o "mandamento de procedimentalização" apontado pelo BVerfG) são também levadas em consideração para saber até que ponto os fatos e prognoses elaboradas durante o processo legislativo devem ser objeto de deferência judicial ou se a jurisdição constitucional deve fazer uma investigação própria, com novos argumentos e informações produzidas já no momento de controle repressivo de constitucionalidade.

E qual a relevância dessa discussão para o Brasil?

Como exemplo da pertinência desse debate no caso brasileiro, pode-se mencionar o julgamento em andamento da ADI 7.222, em que se questiona a constitucionalidade da Lei nº 14.434, de 4 de agosto de 2022, que fixou o piso salarial dos enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras.

A maioria do STF referendou a medida cautelar concedida pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso, que determinou a suspensão da norma impugnada até sejam "esclarecidos os seus impactos sobre (i) a situação financeira de Estados e Municípios, em razão dos riscos para a sua solvabilidade (…) (ii) a empregabilidade, tendo em vista as alegações plausíveis de demissões em massa (…) e (iii) a qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução nos quadros de enfermeiros e técnicos". Citando Ana Paula de Barcellos [7], o ministro relator apontou que "a observância de um devido procedimento na elaboração legislativa exige que quem apresente uma proposição normativa apresente, também, a justificativa correspondente" [8].

Quando apreciar o mérito da ADI 7.222, o STF terá oportunidade de se debruçar sobre o significado do devido processo legislativo, em especial do princípio da deliberação parlamentar, no que se refere ao exame da profundidade dos argumentos apresentados durante o processo de elaboração da lei impugnada tanto para fins de sua constitucionalidade formal quanto material. Nesse momento, o julgado recente do BVerfG poderá ser mais uma das decisões do direito comparado que poderá ser levada em consideração para tanto.

 


[1] Cf. Victor Marcel Pinheiro, Decisões vinculantes do STF: a cultura de precedentes, São Paulo, Almedina, 2021, p. 183.

[2] Cf. Uwe Volkemann, Ein bisschen kleinlich: Zum jüngsten Urteil des Bundesverfassungsgerichts in Sachen Parteienfinanzierung, Verfassungsblog, 27/1/2023. Diponível em: https://verfassungsblog.de/ein-bisschen-kleinlich/

[3] Cf. Timo Sewtz, Schuldet der Gesetzgeber doch mehr als das Gesetz? – Das Urteil des BVerfG zur Parteienfinanzierung, Junge Wissenschaft in Öffentlich Recht, 7/2/2023. Disponível em: https://www.juwiss.de/4-2023/

[5]Cf. Victor Marcel Pinheiro, Devido processo legislativo: princípios, elaboração das leis ordinárias no Congresso Nacional e controle judicial, Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022.

[6] Essa expressão foi cunhada por Ittai Bar-Siman-Tov, Semiprocedural Judicial Review, Legisprudence 6 (2012), pp. 271-300. No Brasil, veja-se Natasha Schmitt Caccia Salinas / Guilherme da França Almeida, Controle judicial de projetos legislativos — uma análise exploratória, RIL 57 (2020), pp. 125-150.

[7] Ana Paula de Barcellos, Direitos fundamentais e direito à justificativa: devido procedimento na elaboração normativa. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

[8] STF, ADI-MC 7.222, rel. min. Roberto Barroso, j. 19/9/2022, p. 33.

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  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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