Diário de Classe

Fabricando a nossa (melhor) história: a narrativa literária e o Direito

Autor

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

11 de fevereiro de 2023, 8h00

Estamos vivenciando no Brasil um momento político que, no mínimo, podemos caracterizar como conturbado. A análise dos atos que culminaram na tentativa de golpe (dessa vez) mal sucedida servem para reforçarmos a necessidade de fortalecer o valor da democracia e os recursos que construímos para legitimá-la e garanti-la. Nesse sentido, a concepção moderna de Estado de Direito assume enorme relevância nas discussões acerca da manutenção desse modelo político que, até o presente momento, mostra-se como o mais coerente com as demandas e formas de organização das sociedades contemporâneas.

De tempos em tempos, países de modernidade tardia como o nosso são palco de tentativas frustradas (ou não) de golpes de Estado. Ocorre que, no Brasil, como bem referiu Lenio Streck em artigo publicado nesta semana na Folha [1], esses impulsos golpistas "sempre tiveram, com exceção da Proclamação da República, uma roupagem jurídica", efetivando-se, a partir do direito, um rompimento do próprio direito. Para trazer à tona o que é reverberado com esse tipo de tentativa de ruptura que se diz "legítima" (no sentido de amparada legalmente), o professor Lenio brilhantemente recorre à literatura. A atribuição de sentidos às normas jurídicas — e as disputas decorrentes deste processo — é ilustrada pela longa guerra que vitimou milhares de liliputianos, em As Viagens de Gulliver. O motivo da batalha era a forma com que se quebravam os ovos cozidos, afinal, o dispositivo constitucional número 1 determinava que "Os ovos devem ser quebrados pelo lado certo!".

Os leitores do Diário de Classe já devem ter percebido que de tempos em tempos escrevo aqui sobre as tantas relações possíveis entre o Direito e a literatura. A coluna de hoje não fugirá desse projeto, pois acredito que devemos estar comprometidos com a sofisticação da interpretação do/em Direito de forma inclusiva, isto é, a partir do pressuposto de que precisamos compartilhar com os cidadãos que não fazem parte do meio acadêmico/jurídico nossas compreensões (muitas vezes mais bem fundamentadas) acerca dos acontecimentos que inspiram a crença dos sujeitos em valores que guiam não somente suas vidas, mas, também, a organização/manutenção do Estado Democrático de Direito. E a literatura, seja como elemento de provocação por meio de suas narrativas, seja pela sua epistemologia, é um excelente instrumento para tanto.

O argumento apresentado pelo professor Lenio de que "todo o golpista sempre terá um jurista para chamar de seu", parte de uma provocação literária e se constrói fitando a nossa história recente (os golpes de 64 e contra o governo de Dilma Rousseff), em que os limites interpretativos foram violados em nome de interesses políticos autoritários e/ou antiemancipatórios. Esse tipo de interpretação (inautêntica) é o que torna ilegalidades legais no Brasil. Mas, como bem explora o artigo em comento, ainda que diante de tamanhos "esforços hermenêuticos", golpes de Estado não precisam ser expressamente proibidos para serem incompatíveis com os princípios constitucionais e, portanto, com o Estado Democrático de Direito. Mesmo que alguns tentem garantir — para usar a provocação do professor Lenio — que determinada forma de quebrar ovos seja a única correta, ela só se sustentaria como tal a partir do peso das justificações invocadas na construção de seu sentido e não pelo cumprimento formal de um rito. Esse sentido é (ou deveria ser) edificado da mesma forma que as histórias são fabricadas.

O desafio deste texto reside, portanto, na tentativa de refletir acerca do processo de atribuição de sentidos em direito recorrendo à literatura, ainda que esta geralmente esteja associada à inexistência de limites interpretativos. Contudo, ao analisarmos as narrativas literárias, percebemos nelas a necessidade de contextualizar e reforçar conceitos que se sustentam em redes de valores, da mesma forma que deveríamos proceder em Direito. Minha inspiração para esse texto se deu a partir da releitura recente de uma obra de Jerome Bruner que costumo indicar aos interessados nos estudos jusliterários, qual seja, o livro Fabricando histórias: direito, literatura e vida, em que o autor procura demonstrar que a narrativa "é um negócio realmente sério – seja no Direito, na Literatura ou na vida" [2]. Sendo assim, reforço, esta é só mais uma razão pela qual não devemos deixar a literatura em paz [3].

Quanto ao argumento que pretendo desenvolver aqui, ele é sintetizado especificamente por este trecho:

"Gostamos de dizer que a narrativa literária não se refere a nada no mundo, mas tão somente fornece um sentido para as coisas. Entretanto, é precisamente esse sentido das coisas, frequentemente derivado da literatura, que torna possível a referência à vida real. Nós nos referimos a eventos, coisas e pessoas usando expressões que os situam não apenas em um mundo indiferente, mas também em um mundo narrativo: são os 'heróis' a quem oferecemos medalhas por seu 'valor'; são 'contratos rompidos' quando uma das partes não demonstra sua 'boa-fé', e coisas do tipo. Só podemos nos referir a heróis e a contratos rompidos em virtude de sua existência prévia dentro de um universo narrativo" [4].

As contribuições de Bruner são importantes para pensarmos as relações entre o possível e o real, bem como nos enchem de esperança acerca de engajarmo-nos em discursos vinculados à ordem do sensível, e não do racional. Essas questões, que estão vinculadas à abordagem do direito pela literatura, no entanto, não estão na mesma ordem que procuro trabalhar aqui. Vale salientar que não é a intenção do livro mencionando trabalhar o direito a partir de conceitos da teoria literária, conquanto seja inegável que a questão da linguagem — e da intersubjetividade — perpasse a obra em diversos momentos, como bem se vê no trecho acima.

Minha reflexão, retomo, alude especialmente ao entendimento de Bruner de que determinados valores (sentido das coisas) fazem parte e são dependentes de um universo narrativo. Isso, traduzido para a linguagem (jus)filosófica, se dá porque o interpretar hermenêutico (crítico) é inimigo do relativismo, afinal "na linguagem existe algo muito além do enunciado" [5], que está contido na intersubjetividade. O horizonte de sentido faz parte de um processo compreensivo em que sempre já existe uma pré-compreensão. Portanto, para fabricarmos a nossa história da melhor forma possível — e finalmente podermos afirmar que existe um jeito realmente certo de quebrar ovos — precisamos estar comprometidos com uma rede de valores que se reforçam entre si e não somente com um dever procedimental.

Na literatura, um dos elementos para que um bom texto seja construído é a coerência semântica, ou seja, o texto não pode ser contraditório. Analogamente, se utilizarmos esse recurso para analisarmos o Direito, podemos afirmar que golpes de Estado não fazem parte do Estado de Direito, visto que que para compreendemos o que é o Estado de Direito, precisamos compreender o que é democracia, que, por sua vez, é incoerente com rupturas políticas autoritárias.

 


[2] BRUNER, Jerome. Fabricando histórias: Direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e voz, 2014. p. 117.

[3] Sobre esse tema escrevi anteriormente a coluna "Não devemos deixar a literatura em paz". Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-07/diario-classe-nao-devemos-deixar-literatura-paz>

[4] BRUNER, Jerome. Fabricando histórias: Direito, literatura, vida. São Paulo: Letra e voz, 2014. p. 18.

[5] Uso as palavras do prof. Lenio no artigo publicado no Estadão "Estamos condenados a interpretar". Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/hermeneutica-juridica-streck/

Autores

  • é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos-RS), bolsista Capes/Proex, membro do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuticos e do grupo de pesquisa Bildung - Direito e Humanidades e professora da Faculdade São Judas Tadeu.

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