Opinião

Controle dos desvios de finalidade no fishing expedition em operações da PF

Autores

  • André Elali

    é professor associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) visiting scholar na Queen Mary University of London e no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht.

  • Pierre Franklin

    é advogado e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

6 de fevereiro de 2023, 16h20

Não se nega a importância da investigação das autoridades brasileiras quanto a condutas possivelmente contrárias ao interesse público e à legalidade. Longe disso. Todavia, tem se observado, com reiterados comportamentos no setor público, a falta de adequação de certos procedimentos investigatórios.

A sujeição do agente público à legalidade não é nada novo e garante os limites do próprio agir do Estado perante o particular. Nesse contexto, o agente investigativo (agente de polícia, delegado ou promotor) deve buscar construir elementos indiciários [1], da materialidade e autoria de possível fato punível, visando a justificar a justa causa para a propositura de eventual ação penal. Quando ausentes elementos concretos de eventual justificação do agir estatal, deve o agente aplicar a legalidade sem apego às suas ideologias. Sem justa causa, inexiste motivação jurídica para qualquer atividade no âmbito do processo penal.

Em tempos de elevada insegurança jurídica e da verdadeira banalização de direitos fundamentais, os elementos probatórios passam a ser alvo de debates para se compreender, numa delimitação teleológica, quais os limites que não podem ser transgredidos, usando-se como referência a legislação e os precedentes. É nessa fase preliminar, em que inexiste o processo, que se torna essencial distinguir os conceitos de atos de investigação e atos de prova [2].

A propósito, pertinente é a lição de de Gouveira de que a segurança jurídica está associada ao que se denomina de proteção da confiança, derivando-se da própria estruturação do Estado de Direito, que se vincula à "preocupação com o conhecimento do Direito aplicável, impondo que as respectivas fontes sejam públicas e prospetivas na sua vigência" [3] Destaca o autor que o Estado de Direito requer que "o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as legítimas expectativas geradas nos cidadãos acerca de sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroatividade das leis, assim como a necessidade de essa alteração de expectativas constitucionalmente tuteladas ser devidamente fundamentada". Como pontua o autor lusitano, "a proteção da confiança pretende instituir um clima de estabilidade entre o poder público e os cidadãos destinatários dos respectivos atos" [4].

O que não se pode admitir, portanto, no âmbito do tema, é a prática da busca por novos elementos para justificar a investigação que não os tenha encontrado anteriormente. Muda-se a estratégia e persegue-se um objetivo diverso do que motivou a instauração da investigação. O sistema jurídico se baseia não apenas na segurança jurídica, mas também tem raízes na democracia [5].

Surge, com isso, a prática reconhecida internacionalmente como fishing expedition. Como registra Alexandre Morais da Rosa, "fishing expedition" ou "pescaria probatória é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém" [6].

Em tal sentido, a ausência de indícios de qualquer prática criminosa antes da adoção de medidas constritivas ou invasivas destinadas à "pescaria" de indícios da ocorrência de fatos criminosos pode trazer, claramente, o caráter exploratório e abusivo adotado pela autoridade, quando, sem a existência de lastro mínimo que indique sua necessidade, bem como sem objeto delimitado, pessoa ou delito definidos a serem investigados, pratica a "pescaria de provas".

A "pescaria probatória" ocorre nos casos em que se identifica o desvio de finalidade e a falta de quaisquer evidências que possam embasar eventual instrução criminal futura O agente responsável pela diligência deve ter cuidado para se ater ao escopo  vinculado à justa causa  para o qual excepcionalmente se violou o direito fundamental à intimidade, ressalvada a possibilidade de encontro fortuito de provas.

O encontro fortuito de provas, que se distingue do procedimento mencionado, é permitido pela jurisprudência [7], pois se consideram válidas as provas encontradas casualmente por agentes da persecução penal relativas a infrações penais até então desconhecidas, no curso do cumprimento de medidas de investigação autorizadas para apuração de outros delitos, desde que não haja desvio de finalidade na execução das diligências.

O Superior Tribunal de Justiça tem entendimentos distintos em situações distintas, pois só admite a interpretação da chamada "pescaria probatória" quando o agente está totalmente desprovido de qualquer indício acusatório, não reconhecendo a irregularidade de se descobrir novo ilícito e pessoas envolvidas, já no curso do procedimento investigatório no crime anteriormente observado, decorrente de medida investigativa (quebra de sigilo ou interceptação telemática por exemplo), de maneira acidental.

Existem, pois, duas posições que atualmente o STJ tem adotado. No HC 598.051/SP (relator ministro Rogerio Schietti), a Sexta Turma propôs nova e meticulosa abordagem sobre o controle do alegado consentimento do morador para o ingresso em seu domicílio por agentes estatais. Existindo premissas basilares para tal ato: "a) Na hipótese de suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões [8] (justa causa), aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito. […]". Já no RHC 150354 / PR, sob a relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, tem-se o encontro fortuito de provas [9], isto é, situação distinta em que não há ilicitude das provas desde que o procedimento tenha sido regularmente autorizado e executado dentro dos limites estabelecidos pela autoridade judiciária, não ocorrendo abuso de autoridade ou desvio de finalidade.

Isto posto, tem-se que o STJ corretamente tem fixado a vedação ao fishing expedition como consequência da garantia contra a autoincriminação (privilege against self-incrimination). A busca indiscriminada de provas e sem método adequado é contrária ao modelo do Estado de Direito, violando-se a própria atribuição do agente público, que não deve confundir a técnica jurídica com a sua moral individual e suas crenças a respeito do sistema. Aliás, o dever de motivação do ato administrativo se estabelece no ordenamento jurídico brasileiro como premissa básica de conformidade da atuação da Administração Pública. Enquanto instrumento que resguarda o administrado de arbitrariedades por parte do Estado, funciona como parâmetro para a concretização do controle da legalidade. Também na perspectiva do Direito Processual, a motivação dos atos administrativos se apresenta como imprescindível na concretização do necessário equilíbrio das relações jurídicas.A ausência de motivação  e motivação adequada — no constitui verdadeira barreira ao exercício do direito ao contraditório e da ampla defesa. Sua ocorrência, mediante atos desprovidos de fundamento legal e/ou de elementos de prova, viola as estruturas do Estado de Direito.

Não se pode aceitar práticas questionáveis de presunções e generalizações de condutas antijurídicas sem suporte em provas, as quais se distanciam do modelo de Estado de Direito e que se reaproximam do conceito de "razões de Estado" [10]. Casos de falta de motivação violam as estruturas da legalidade da Administração e se aproximam de excessos argumentativos baseados em ideologias pessoais de política e de justiça, replicando-se o modelo da "tirania de valores", mesmo que com a "melhor das intenções" [11].

 


[1] ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. A Contrariedade na Instrução Criminal. São Paulo: [s.n.], 1937, p. 12.

[2] LOPES JR, Aury. Direito processual penal.  16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 330.

[3] GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito da Segurança  Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo. Lisboa: 2018, p. 95.

[4] GOUVEIA, Jorge Bacelar. Direito da Segurança  Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo. Lisboa: 2018, p. 95.

[5] LANG, Joachim; TIPKE, Klaus. Direito Tributário. Tradução da 18. ed. por Luiz Doria Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 126.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Estratégico: de acordo com a Teoria dos Jogos. Santa Catarina: Emais, 2021, p. 389-390.

[7] STJ — AgRg nos EDcl no RHC 150.354/PR, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2022, DJe 18/03/2022.

[8] "Admitir a entrada na residência especificamente para efetuar uma prisão não significa conceder um salvo-conduto para que todo o seu interior seja vasculhado indistintamente, em verdadeira pescaria probatória (fishing expedition), sob pena de nulidade das provas colhidas por desvio de finalidade". HC 663.055/MT, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 22/03/2022, DJe 31/03/2022.

[9] AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FRAUDE A LICITAÇÕES. ENCONTRO FORTUITO DE PROVAS. POSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO REGULARMENTE INSTAURADO NO CURSO DE OUTRA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Neste caso, tem-se o encontro fortuito de provas, também chamado pela doutrina de serendipidade, o que é reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais Superiores. Não há que se falar em ilicitude das provas desde que o procedimento tenha sido regularmente autorizado e executado dentro dos limites estabelecidos pela autoridade judiciária, desde que não haja desvio de finalidade na execução das diligências. 2. Embora os crimes imputados sejam puníveis com detenção, o fato de terem sido descobertos de maneira fortuita por meio de procedimento investigativo regularmente instaurado nos termos e limites da Lei nº 9.296/1996 não macula as provas obtidas. 3. Não há que se falar em fishing expedition neste caso, pois, não se constata que a investigação tenha assumido caráter exploratório ou especulativo. Trata-se apenas da obtenção de elementos indiciários de modo fortuito em procedimentos de investigação regularmente instaurados. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no RHC 150.354/PR, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2022, DJe 18/03/2022).

[10] DANTAS, Rodrigo Numeriano Dubourcq. Direito Tributário Sancionador. Culpabilidade e Segurança Jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 77.

[11] SCHMITT, Carl. La tirania de los valores. In: Revista de estudios políticos, nº 115, Madrid: Instituto de estudios políticos, 1961, p. 65.

Autores

  • é professor associado de Direito Tributário da UFRN, com estágios de pesquisa no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht (2008), na Queen Mary University of London (2016) e na Universidade de Lisboa (2018).

  • é advogado e pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

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