Direito Civil atual

Veto presidencial ao PL 3.401/08 deve ser mantido pelo Congresso

Autores

  • Alice Cysneiros

    é mestranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e advogada.

  • Jully Anne Silva

    é advogada do escritório Telino & Barros Advogados Associados na área cível empresarial e mestranda em Direito Privado pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE.

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é doutor em Direito pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) professor adjunto da Faculdade de Direito da UPE (Universidade de Pernambuco) e da UniFafire membro da Comissão Especial de Responsabilidade Civil do Conselho Federal da OAB e advogado.

6 de fevereiro de 2023, 18h12

Após longos anos de tramitação, o Projeto de Lei (PL) nº 3.401/2008, apresentado, na época, com a finalidade de disciplinar o procedimento judicial para a desconsideração da personalidade jurídica, foi vetado integralmente pela Presidência da República, em 14 de dezembro de 2022. Entre as motivações, há de se destacar a inconstitucionalidade e contrariedade ao interesse público, considerando existir regulamentação própria sobre a matéria nos artigos 134 a 137 do Código de Processo Civil e artigo 50 do Código Civil. O veto ocorreu após várias manifestações da comunidade jurídica, baseadas em diversas questões que serão suscitadas abaixo, principalmente no que concerne à contrariedade e falta de adequação à realidade legal e normativa, o que envolve os dispositivos atualmente em vigor e os julgamentos acerca do tema.

ConJur
Atualmente, o PL, apresentado em 13 de maio de 2008 pelo deputado Bruno Araújo, após longos anos de tramitação, encontra-se aguardando a apreciação do veto na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados. Para elucidar os pontos controvertidos deste PL, cabe explicar, de forma breve, que a desconsideração da personalidade jurídica, com origem no direito anglo-americano (a partir do case Salomon versus Salomon & Company Ltd.), visa coibir o abuso da personalidade jurídica. Esta doutrina, também conhecida como "disregard of legal entity", busca revelar o propósito real que a pessoa jurídica encobre, a fim de responsabilizar o seu controlador pelos atos que importem em abuso de direito[1]; posto que (na feliz expressão de Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo): "a fórmula jurídica da personificação, destituída de realidade institucional, seria um mero subterfúgio para a prática de atos ilícitos".[2] As pessoas físicas ou jurídicas são criações do direito, visto que é o sistema jurídico que atribui direitos, deveres, pretensões, obrigações, ações e exceções a entes humanos ou entidades por eles criadas[3].

Destarte, ao atribuir personalidade jurídica a determinadas entidades, a lei as confere uma existência jurídica própria e independente das pessoas que a integram, de modo que "ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres separadamente, isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõem ou dirigem"[4].

A separação entre a pessoa jurídica e as pessoas que a integram tem como reflexo a autonomia patrimonial, compreensão segundo a qual o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio dos seus integrantes não se confundem, de modo que a pessoa jurídica será dotada de patrimônio jurídico próprio, tanto moral quanto econômico, capaz de responder por suas próprias obrigações. Ademais, como já foi pontuado por Otávio Luiz Rodrigues Jr e Rodrigo Xavier Leonardo, o Estado termina por outorgar benefícios tributários para o desenvolvimento de uma série de atividades por pessoas jurídicas, de modo que a promoção de tais atividades "é menos oneroso se praticado por intermédio de pessoa jurídica". "Em síntese: pagam-se menos tributos por se contratar como pessoa jurídica".[5] Essa técnica é importante para a propulsão da atividade econômica, sendo ainda mais significativa quando somada com a limitação da responsabilidade, tendo em vista que, com exceção de alguns tipos societários, como as sociedades em comandita simples e as sociedades em nome coletivo, via de regra, o patrimônio dos integrantes da pessoa jurídica não respondem por atos por ela praticados.

Contudo, em algumas situações, a separação patrimonial pode ser utilizada como um escudo protetor para práticas abusivas e lesivas em face de terceiros. Em razão disso, foi desenvolvida a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, como uma forma de excepcionar a regra geral de separação entre a pessoa jurídica e as pessoas dos seus integrantes.

Para tanto, é indispensável o preenchimento dos requisitos previstos em lei, que variam, em nosso ordenamento, conforme a natureza da relação jurídica que fundamenta o pedido de desconsideração (se empresarial ou consumerista, por exemplo). Existe um regime geral, previsto no artigo 50, do Código Civil, que exige a prévia comprovação do abuso de personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conhecido como teoria maior da desconsideração da personalidade.

Por outro lado, há também um regime especial, a teoria menor da desconsideração da personalidade, com requisitos mais flexíveis, acolhido na legislação consumeirista, trabalhista e de crimes ambientais. Para que haja a desconsideração nessas hipóteses, basta que a personalidade, de alguma forma, funcione como obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos credores[6].

Embora os requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica tenham sido positivados em nosso ordenamento jurídico, durante muito tempo não havia, entre nós, a regulamentação do procedimento necessário à aplicação do instituto, situação que trazia evidente insegurança jurídica. Isso porque o Código de Processo Civil de 1973 não previa os requisitos processuais para a desconsideração da personalidade.

Foi nesse contexto que foi apresentado o PL de Lei nº 3.041 de 2008, buscando disciplinar "o procedimento de declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica". A justificativa ao PL apresentada pelo deputado Bruno Araújo evidencia a intenção de disciplinar o procedimento para a desconsideração da personalidade, uma vez que, segundo o autor da iniciativa, "a falta de um rito procedimental que assegure o exercício do contraditório, tem ocasionado uma aplicação desmesurada e inapropriada da Disregard Doctrine".

Da justificativa do PL, também é possível depreender que as regras estabelecidas pretendiam se limitar ao direito processual, "sem qualquer abordagem de cunho material ou substantivo"[7]. Considerando a época em que foi apresentado, o PL, apesar das imprecisões conceituais, tinha uma finalidade oportuna. Mas, atualmente, o projeto de lei não se revela mais pertinente, vez que, durante os longos anos de sua tramitação, as alterações pretendidas foram supridas, com muito mais acuidade técnica, por legislações supervenientes.

O Código de Processo Civil de 2015, supriu a lacuna deixada por seu antecessor e regulamentou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como modalidade de intervenção de terceiros, assegurando o contraditório e a ampla defesa como originalmente pretendido pelo PL nº 3.041 de 2008. Ademais, durante a tramitação do PL, também foi promulgada a Lei de Liberdade Econômica endurecendo os requisitos materiais para a desconsideração da personalidade jurídica e amadurecendo a matéria no ordenamento brasileiro.

Neste ponto, a referida legislação, além de esclarecer os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial, também consagrou expressamente o princípio da autonomia patrimonial, ao prescrever que "a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores".

Apesar de todo o amadurecimento legislativo em matéria de desconsideração da personalidade jurídica, após 14 anos de tramitação legislativa, o PL nº 3.041 de 2008 retornou a pauta do Congresso ignorando as modificações supervenientes a respeito da matéria. Além do anacronismo, o PL, se aprovado, provocará um efeito contrário ao que originalmente se propôs, ao criar uma situação de antinomia com as legislações que atualmente regulam a matéria, consolidar imprecisões conceituais e agravar a situação de insegurança jurídica.

Vejamos alguns exemplos. O artigo 2º do PL cria um ônus processual específico para a parte que postula a desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de membros, instituidores, sócios ou administradores, ao impor a necessidade de indicar objetivamente os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva responsabilização.

No âmbito da teoria maior, em que o abuso de personalidade é condição necessária para a desconsideração, a previsão, de fato, se justifica. Contudo, este não é o caso da teoria menor, pois, neste caso, a desconsideração se opera com a simples comprovação de que a personalidade é obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos ocasionados pela pessoa jurídica.

Dessa forma, caso não seja mantido o veto, a proposta inviabilizará a utilização do instituto nas searas ambiental, trabalhista e consumerista. Muito mais apropriada, nesse contexto, a previsão estipulada no §4º, do artigo 134, do Código de Processo Civil, ao dispor que "o requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica", permitindo que o requerente justifique os requisitos à luz da teoria aplicável ao caso, sejam eles atinentes à teoria menor ou maior.

O artigo subsequente também cria algumas incompatibilidades com a legislação vigente. Ao exigir, obrigatoriamente, a instauração de um incidente em autos apartados, ignora a autorização contida no §2º, do artigo 134, do Código de Processo Civil, no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser requerida na petição inicial, hipótese em que será dispensada a instauração do incidente processual. Além disso, como bem observado em nota do Instituto Brasileiro de Direito Processual sobre o PL em questão, o artigo "contém imprecisão no texto por assumir que o polo passivo do incidente será formado apenas por pessoa física, ao passo que a desconsideração poderá alcançar eventualmente outra pessoa jurídica"[8].

De fato, a doutrina amadureceu para reconhecer não somente a forma direta da desconsideração da personalidade jurídica, como também as formas de desconsideração classificadas como inversa, indireta e expansiva. Outra questão diz respeito à redação do §2º, do artigo 5º, do PL, ao consagrar que "a mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica, quando ausentes os pressupostos legais".

Mais uma vez, a norma ignora a teoria menor; vez que permite a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica quando se constata, p. ex., a ausência de patrimônio titularizado pela pessoa jurídica capaz de suportar a obrigação assumida, conforme já consolidado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça[9].

Destarte, é possível constatar que todas as modificações envolvendo a matéria foram ignoradas na redação final do PL. Não por acaso, durante a sua tramitação na Câmara, só foram propostas quatro emendas, todas com a finalidade de explicitar a necessidade de prévia decisão judicial para permitir a desconsideração da personalidade jurídica na via administrativa.

A única menção ao anteprojeto que viria a resultar no Código de Processo Civil foi a sugestão da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania para modificar o prazo de defesa, uniformizando de dez para quinze dias[10]. Dentre os pontos suscitados no veto, vale destacar que a criação de hipótese de intervenção obrigatória  do Ministério Público ensejaria ainda mais lentidão na tramitação processual; e que a indicação objetiva dos atos que foram cometidos, por quem alega, alteraria integralmente a sistemática legal estabelecida no CDC, atribuindo ao consumidor o ônus integral da prova.

Todos os fatos acima expostos nos levam a endossar a necessidade de manutenção do veto presidencial à proposição legislativa. O tempo percorrido entre sua propositura, votação e, por último, o acertado veto presidencial demonstram as contrariedades e a falta de adequação à nova realidade legal, confirmando a sua desnecessidade e a potencial insegurança jurídica que poderia causar por desconsiderar a normatização já estabelecida após a vigência da lei processual civil e da Lei da Liberdade Econômica.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).


[1] LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 6 Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185.

[2] RODRIGUES JR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. A “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira (parte 2). Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-10/direito-civil-atual-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira Acesso em: 20 de janeiro de 2023.

[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado, Tomo I, Parte Geral: Pessoas físicas e Jurídicas. Atualizado por Judith Martins-Costa, Gustavo Haical e Jorge Cesa Ferreira da Silva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 399

[4] Idem, p. 406.

[5] RODRIGUES JR, Otávio Luiz; LEONARDO, Rodrigo Xavier. Pessoa jurídica, “pejotização” e a esquizofrenia sancionatória brasileira. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-fev-03/direito-civil-atual-pessoa-juridica-pejotizacao-esquizofrenia-sancionatoria-brasileira Acesso em: 20 de janeiro de 2023.

[6] Esta regra é prevista no §5º do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, aplicado por analogia ao âmbito trabalhista: “Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Igual previsão também foi prevista na Lei de Crimes Ambientais (Lei Federal nº 9.605 de 1998) ao prever em seu artigo 4º que: “Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.”

[7] Essa pretensão fica ainda mais evidente pela leitura do seguinte trecho do projeto original: “Em suma, o presente Projeto de Lei, de natureza eminentemente adjetiva, pretende estabelecer regras processuais claras para aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, além de assegurar o prévio exercício do contraditório em hipóteses de responsabilidade pessoal de sócio por débito da pessoa jurídica”. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=562997&filename=PL%203401/2008. Acesso em 17 dez. 2022.

[9] Cf.: “O art. 50 do CC, que adota a teoria maior e permite a responsabilização do administrador não-sócio, não pode ser analisado em conjunto com o parágrafo 5º do art. 28 do CDC, que adota a teoria menor, pois este exclui a necessidade de preenchimento dos requisitos previstos no caput do art. 28 do CDC permitindo a desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, pelo simples inadimplemento ou pela ausência de bens suficientes para a satisfação do débito. Microssistemas independentes”. (REsp n. 1.658.648/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 20/11/2017).

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