Opinião

Tortura e superlotação nas prisões brasileiras: proposta do cômputo duplo

Autor

  • Gabriel Cardoso Cândido

    é advogado criminalista formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e discente do programa de pós-graduação em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

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4 de fevereiro de 2023, 6h37

A partir da denúncia feita pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre as condições degradantes no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), a Corte decidiu, em 22/11/2018, que a pena no referido Instituto deveria ser contada em dobro, a depender da gravidade do delito punido, enquanto perdurarem as violações de direitos humanos, além de o complexo penitenciário ter sido proibido de aceitar novos detentos.

Defende-se que a precariedade das penitenciárias brasileiras não deve ser combatida com uma espécie indenizatória pela remição, mas sim com a liberdade ou com outras medidas diversas da prisão.

Com o pano de fundo da Resolução da Corte IDH referente ao caso do IPPSC, propõe-se a discussão da remição da pena como forma de indenizar presos que são submetidos a um estado de coisas, no sistema carcerário, diametralmente oposto aos parâmetros da dignidade humana.

Caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho
Em 30 de março de 2016, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro encaminhou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pedido, com medidas provisórias, para denunciar as violações de direitos e requerer a efetiva realização das garantias dos presos custodiados no IPPSC, inserido no Complexo Penitenciário de Gericinó, na cidade do Rio de Janeiro.

A Corte IDH se mostrou preocupada com o cenário prisional do Brasil, em específico no IPPSC, o que resultou na redação da Resolução de 31 de agosto de 2017. Inúmeras violações de direitos foram destacadas no documento, em destaque: a superlotação nesse Instituto Prisional, "em 14 de março de 2017, o IPPSC contava com a presença de 3.570 internos, com uma capacidade para 1.699 pessoas, o que implica uma taxa de superlotação de 210%" [1].

Outro ponto destacado foram as condições precárias de saúde e de higiene. A Corte observou insalubridade completa em todas as dependências do IPPSC, serviços de acesso à saúde extremamente precários e a proliferação exponencial de doenças infectocontagiosas, como a tuberculose  conforme o relatório em média 40 pessoas eram diagnosticadas com a doença por semana , destacando outros fatores prejudiciais à saúde dos apenados. A Corte destacou que "não há nenhum tipo de privacidade, nem camas suficientes para os internos. Vários dormem no chão. (…) pôde constatar que tampouco há colchões suficientes, e que os que há no local são de material altamente inflamável e estão rasgados ou em péssimas condições" [2]

Diante desse cenário, solicitou-se ao Estado brasileiro uma postura ativa para a preservação da vida e da integridade dos apenados custodiados no IPPSC, dos seus funcionários e visitantes. A Corte requereu ao Brasil informações a cada três meses acerca da implementação das medidas contidas na resolução.

O Estado brasileiro admitiu a superlotação carcerária e seus incontáveis males e, em resposta, informou a implementação de medidas para enfrentar o presente cenário.

Muito embora a Corte tenha reconhecido o esforço do Estado em enfrentar as questões postas, tomando nota do "compromisso expresso pelo Brasil, no qual se refere à melhoria das condições das pessoas privadas de liberdade nos diferentes centros penitenciários do país, especialmente no Estado do Rio de Janeiro" a Corte também observou que, mesmo diante dessas mudanças, o cenário carcerário brasileiro permanece alarmante. Tal contexto ensejou na Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 22 de novembro de 2018, abordando principalmente os seguintes eixos: as mortes recentes no IPPSC, a infraestrutura precária e o superencarceramento no IPPSC.

A Corte reiterou a existência torturante da superpopulação prisional, que conduz a sérias consequências.

A única forma de interromper o tratamento degradante no IPPSC vislumbrado pela Corte foi motivar a redução de presos, "é inegável que as pessoas privadas de liberdade no IPPSC podem estar sofrendo uma pena que lhes impõe um sofrimento antijurídico muito maior que o inerente à mera privação de liberdade" [3], justificando a redução do período de encarceramento, além de ser um modo de compensar a dor e o sofrimento da execução da pena.

Assim, dentre outras determinações da Corte IDH para o Brasil, como a vedação de ingresso de novos presos no IPPSC, destaca-se o cômputo duplo da pena aos apenados que cumprem ou cumpriram parte da pena no referido Instituto Prisional, em que cada dia de execução penal dentro do IPPSC será contabilizado como dois dias. A Corte determinou que o Estado brasileiro implementasse tal medida em razão das condições degradantes presentes na unidade prisional em questão, denotando uma nova modalidade de remição da pena.

A resolução da Corte excepcionou da determinação do cômputo duplo da pena os presos acusados ou condenados por crimes contra a vida, contra a integridade física ou por crimes sexuais. O Estado ficou responsabilizado em prover uma equipe criminológica composta prioritariamente por psicólogos e assistentes sociais, a fim de avaliar "o prognóstico de conduta com base em indicadores de agressividade dos presos alojados no IPPSC, acusados de crimes contra a vida e a integridade física, ou de crimes sexuais, ou por eles condenados", conforme os resultados alcançados, a equipe criminológica "aconselhará a conveniência ou inconveniência do cômputo em dobro do tempo de privação de liberdade, ou, então, sua redução em menor medida" [4].

Tribunais superiores
Em 16 de fevereiro de 2017, o STF julgou o RE n° 580.252/MS, acerca das violações aos direitos humanos no sistema prisional e possíveis reparos indenizatórios, bem como outras questões atinentes à questão carcerária. Essa decisão não reconheceu a possibilidade de se aplicar a remição da pena como indenização aos tratamentos degradantes, o Tribunal apenas admitiu a reparação em pecúnia, afastando a hipótese da reparação por meio da redução de pena [5]. Fixou-se a seguinte tese:

Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, §6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.

Em contrapartida ao referido recurso extraordinário, destaca-se o voto vencido do ministro Luís Roberto Barroso, que propôs o seguinte enunciado para a tese da repercussão geral: 

"O Estado é civilmente responsável pelos danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas pela superlotação prisional e pelo encarceramento em condições desumanas ou degradantes. Em razão da natureza estrutural e sistêmica das disfunções verificadas no sistema prisional, a reparação dos danos morais deve ser efetivada preferencialmente por meio não pecuniário, consistente na remição de um dia de pena por cada três a sete dias de pena cumprida em condições atentatórias à dignidade humana, a ser postulada perante o Juízo da Execução Penal. Subsidiariamente, caso o detento já tenha cumprido integralmente a pena ou não seja possível aplicar-lhe a remição, a ação para ressarcimento dos danos morais será fixada em pecúnia pelo juízo cível competente."  

A divergência do voto de Barroso ocorreu devido às consequências da decisão ora distintas, tendo em vista a resposta às violações de direitos nas prisões pouco efetiva trazida pela reparação tão somente em dinheiro, "o detento que postular a indenização continuará submetido às mesmas condições desumanas e degradantes após a condenação do Estado". O ministro traz à tona a escassez dos recursos públicos, que deveriam ser utilizados primordialmente na construção de um sistema prisional nos termos da dignidade da pessoa humana e, que, de certa forma, "estariam sendo drenados para as indenizações individuais".

Conforme o ministro, as condições ultrajantes presentes no cárcere brasileiro, como a superlotação, a insalubridade das celas e uma estrutura de acesso a direitos incapaz de fornecer o mínimo necessário para uma vida digna, causam ao apenado "inevitavelmente uma diminuição mais acelerada de sua integridade física e moral e de sua saúde". Juarez Tavares [6] defende que essa situação há de implicar em "um necessário redimensionamento do valor nominal da pena, ou seja, uma redução proporcional desse valor, de forma a equiparar a aflição ficta à aflição real". O tempo de encarceramento é potencializado por essas condições desumanas e não se comunicam com o tempo estipulado na dosimetria da pena, a dor e o sofrimento vão além do cerceamento da liberdade, os presos pagam a pena com suas vidas. Dessa forma, a redução da pena através da remição tem em vista restituir o "bem da vida" ora vilipendiado.

Apesar da remição da pena pelo tratamento degradante não possuir um caráter de estudo ou de trabalho, reitera-se a ressocialização como a principal finalidade do instituto da remição, estimulando o apenado a exercer atividades que facilitarão o seu reingresso ao convívio social.  Todavia, o tratamento degradante vai em sentido oposto a toda e qualquer perspectiva ressocializadora. Nesse sentido, Barroso propôs em seu voto que a forma de remição ora defendida deverá ser executada nos termos do artigo 126, da LEP, computando o cumprimento de pena com todos os seus efeitos previstos na execução penal, como a progressão de regime (artigo 128, LEP).

O STJ, diante do julgamento do RHC n° 136.961, admitiu a contagem da pena em dobro durante o período pelo qual o paciente cumpriu sua pena no IPPSC, em referência direta ao caso da Corte IDH.

Essa decisão reiterou o entendimento hermenêutico segundo o qual as sentenças da Corte IDH devem ser lidas de modo a favorecer sempre que possível os indivíduos que se encontram com seus direitos violados. O presente entendimento do Tribunal foi sedimentado em sede de AgRg no RHC n° 136.961, em que se reconheceu que a decisão da Corte IDH enseja coisa julgada internacional, vinculando não apenas as partes, mas também as instituições estatais e os entes federativos.

As condições degradantes e desumanas pelas quais os apenados do IPPSC foram submetidos serviram como pano de fundo para a resolução da Corte IDH e para o posicionamento do STJ. Defende-se a ampliação desse entendimento a outros casos semelhantes, em que se constata a degradante situação de superlotação e de sofrimento desproporcional às diretrizes legais da pena privativa de liberdade, afirmando a imprescindibilidade da redução da pena nessas hipóteses pelo instituto da remição, bem como com a superação do entendimento do STF exarado no Recurso Extraordinário n° 580.252/MS referente à presente discussão.

Em sentido contrário, observa-se que em decisão monocrática do STJ, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca decidiu em não conceder o cômputo duplo no contexto do Presídio Regional de Joinville. Mesmo diante do superencarceramento no referido presidio, "as celas são superlotadas, sendo que em uma cela projetada para oito pessoas se encontram mais de 20", o Ministro entendeu por não aplicar o entendimento exarado pela Corte IDH no caso do IPPSC (STJ, HC 706.114). Entendimento este que ao nosso ver deve ser combatido, haja vista os fundamentos da Resolução da Corte IDH referente ao IPPSC se aplicar diretamente a diversos outros casos nacionais, sendo o sofrimento humano causado pela superlotação carcerária ser o mesmo independentemente do local onde determinado Complexo Penitenciário se encontra.

Considerações finais
É evidente que a construção jurídica de remir a pena devido ao tratamento degradante nas prisões brasileiras beneficia a condição do apenado, uma vez que o tempo de sofrimento no sistema prisional declaradamente inconstitucional é reduzido, sendo certo que deve ser aplicada nos tribunais brasileiros.

O ministro Barroso, em seu voto divergente no RE n° 580252/MS, evidenciou os pontos benéficos da modalidade de remição penal em discussão: 1) redução da superlotação; 2) responsabilidade do ente estatal "pelos danos que causarem aos presos"; além da 3) perspectiva moral e pedagógica, criando "estímulos a que os Estados promovam melhorias em seus sistemas prisionais, a fim de que não sejam responsabilizados perante o Judiciário e a sociedade".

Em síntese, diante do reconhecimento do tratamento desumano e inconstitucional ocorrido dentro das prisões brasileiras, foi proposta uma forma de remição para o apenado submetido a essas condições.

Entretanto, tal medida não faz cessar as violações aos direitos fundamentais presentes nos ambientes prisionais. Nota-se que a remição penal devido ao tratamento degradante no cárcere legitima o estado de coisas inconstitucional, visto seu caráter predominantemente indenizatório e, apesar de beneficiar consideravelmente o réu no curso da execução penal, a decisão não incide sob os sofrimentos, as torturas e as supressões de direitos atuais.

A remição penal pelo tratamento degradante não interrompe qualquer violação de direito ou qualquer inconstitucionalidade presente no estado de coisas inconstitucional reconhecido e mantido pelo próprio Estado brasileiro. Defende-se, portanto, que o tratamento precário e desumano presente nas penitenciárias brasileiras não deve ser combatido tão somente com a remição penal, mas sim com formas legais diversas da privação de liberdade no cárcere, como a prisão domiciliar e a flexibilização dos institutos da execução penal [7].


[1] CORTE IDH. Resolução de 31 de agosto de 2017  Medidas Provisórias a respeito do Brasil: assunto do IPPSC. Corte IDH, 2017, p.3.

[2] CORTE IDH. Resolução de 31 de agosto de 2017  Medidas Provisórias a respeito do Brasil: assunto do IPPSC. Corte IDH, 2017, p.17-8.

[3] CORTE IDH. Resolução de 22 de novembro de 2018  Medidas Provisórias a respeito do Brasil: assunto do IPPSC. Corte IDH, 2018, p.13.

[4] CORTE IDH. Resolução de 22 de novembro de 2018  Medidas Provisórias a respeito do Brasil: assunto do IPPSC. Corte IDH, 2018, p.27.

[5] Ressalva-se que o Recurso Extraordinário n° 580.252/MS é anterior à Resolução da Corte IDH referente ao IPPSC.

[6] TAVARES, Juarez. Parecer apresentado no bojo da petição inicial da ADPF 347. Brasília, 2015, p.42.

[7] TAVARES, Juarez. Parecer apresentado no bojo da petição inicial da ADPF 347. Brasília, 2015, p.45.

Autores

  • é estagiário em Direito Criminal no escritório Santiago & Pimentel Advogados, monitor de Prática Penal da disciplina "Estágio Supervisionado IV" na PUC-Rio, discente da graduação de Direito da PUC-Rio e pesquisador no Programa de Educação Tutorial do Departamento de Direito da PUC-Rio.

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