Opinião

Relatório de igualdade salarial do MTE impõe novas obrigações ao empregador

Autores

  • Vantuil Abdala

    é sócio do escritório Abdala Advogados e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

  • Sérgio Garcia Alves

    é sócio de Abdala Advogados mestre em Direito & Tecnologia pela Universidade da Califórnia Berkeley e mestre em Regulação pela Universidade de Brasília.

  • Fernando Abdala

    é advogado sócio de Abdala Advogados relator do Grupo de Direito do Trabalho para elaboração do Marco Legal de Startups no Governo Federal pós-graduado em Direito Constitucional pelo IDP mestrando em Políticas Públicas pelo IDP conselheiro seccional da OAB-DF gestão 2019-2021 presidente da Comissão de Direito do Trabalho e Sindical da OAB-DF gestão 2019-2021 e membro consultor das Comissões de Direito Sindical e Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB.

  • Wanessa Araújo

    é advogada de Abdala Advogados.

30 de dezembro de 2023, 7h16

Recentemente, o presidente da República e o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) regulamentaram a Lei nº 14.611, em 3 de julho de 2023, que dispõe sobre a igualdade salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens para a realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função.

De acordo com decreto presidencial e portaria ministerial, nos próximos dois meses, os empregadores serão obrigados a oferecer ao MTE novas informações específicas sobre as práticas de suas empresas em relação a igualdade salarial e passarão a ser fiscalizados pela auditoria-fiscal do Trabalho [1].

O Decreto nº 11.795/2023, de 23 de novembro de 2023, que regulamenta a Lei nº 14.611/2023, estabelece a obrigação para as pessoas jurídicas de direito privado com 100 ou mais colaboradores de divulgar, em caráter semestral, o relatório de transparência salarial e critérios remuneratórios.

O cumprimento dessa obrigação deve ocorrer em estrita conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018 — LGPD) e seguir as diretrizes do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Este último órgão considera as informações salariais dos funcionários como dados sensíveis, especialmente no contexto da concorrência empresarial [2].

Conforme o Decreto nº 11.795/2023, o relatório de transparência tem como finalidade promover a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos. Diante disso, vale a reflexão: como garantir o cumprimento desta nova obrigação?

Para cumprir a finalidade do relatório de transparência, convém considerar que os requisitos de equiparação salarial são previstos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O artigo 461, da CLT, prevê requisitos que permitem a comparação objetiva entre salários, baseada na identidade de função, valor do serviço, empregador, localidade, bem como na diferença de tempo de serviço não superior a quatro anos e tempo na função não superior a dois anos.

Nesse mesmo contexto, a portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nº 3.714, de 24 de novembro de 2023, não apenas estabeleceu os elementos críticos que devem constar no relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios, mas também delineou o formato e os procedimentos necessários para a submissão e publicação desses relatórios.

Segundo a portaria, os empregadores fornecerão informações ao Ministério do Trabalho e Emprego, e este MTE elaborará o relatório de transparência. Em seguida, o MTE disponibilizará o relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios na plataforma do Programa de Disseminação das Estatísticas do Trabalho,  nos meses de março e setembro de cada ano, e o empregador deverá divulgá-lo amplamente aos seus empregados, trabalhadores e público em geral, por meio da publicação em seus sítios eletrônicos, em suas redes sociais ou instrumentos similares (artigos 2°, 4º e 5º) [3].

Em relação ao conteúdo, o relatório de transparência será elaborado pelo MTE com base nas informações inseridas pelos empregadores no eSocial, bem como nas informações complementares que serão coletadas do Portal Emprega Brasil, na aba igualdade salarial e de critérios remuneratórios a ser implementada na área do empregador, a partir do qual a publicação passará a ser obrigatória. Tais informações complementares devem ser inseridas pelos empregadores, nos meses de fevereiro e agosto de cada ano, relativas ao primeiro e segundo semestres, respectivamente.

A estrutura do relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios terá duas seções. A primeira seção apresentará as informações extraídas do eSocial, incluindo: dados cadastrais do empregador; número total de trabalhadores empregados da empresa e por estabelecimento; número total de trabalhadores empregados separados por sexo, raça e etnia, com os respectivos valores do salário contratual e do valor da remuneração mensal; e cargos ou ocupações do empregador, contidos na classificação brasileira de ocupações (CBO).

Vale destacar que a informação sobre valor da remuneração inclui: salário contratual; décimo terceiro salário; gratificações; comissões; horas extras; adicionais noturno, de insalubridade, de penosidade, de periculosidade, dentre outros; terço de férias; aviso prévio trabalhado; descanso semanal remunerado; gorjetas; e demais parcelas que, por força de lei ou de norma coletiva de trabalho, componham a remuneração do trabalhador.

A segunda seção do relatório de transparência apresentará as informações complementares extraídas do Portal Emprega Brasil, incluindo: existência ou inexistência de quadro de carreira e plano de cargos e salários; critérios remuneratórios para acesso e progressão ou ascensão dos empregados; existência de incentivo à contratação de mulheres; identificação de critérios adotados pelo empregador para promoção a cargos de chefia, de gerência e de direção; e existência de iniciativas ou de programas, do empregador, que apoiem o compartilhamento de obrigações familiares.

Em relação à forma de publicização, a Lei nº 14.611/2023 determina que os dados devem ser anonimizados em conformidade com a LGPD. Diante disso, destaca-se que a LGPD define a anonimização como “utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis no momento do tratamento, por meio dos quais um dado perde a possibilidade de associação, direta ou indireta, a um indivíduo” (artigo 5º, XI).

Até o momento, não há orientação específica para anonimização dos dados a serem publicizados no relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios. A falta de orientação é alarmante, tendo em vista que o salário de determinado profissional pode vir a ser identificado, mesmo se não houver a divulgação do seu nome. Caso isso ocorra, a anonimização não será efetiva e a identificação do salário de determinado profissional afrontaria leis e regulamentos de proteção de dados, trabalhistas e concorrenciais.

Deve-se rememorar que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já publicou nota técnica sobre anonimização. Naquela oportunidade, a Autoridade destacou metodologias para evitar que o limite de risco de reidentificação de um titular de dados pessoais não seja ultrapassado. A Autoridade referenciou duas técnicas para proteger os dados dos titulares: generalização pode ocorrer por meio do “k-anonimato”,  um termo utilizado para descrever a técnica que possibilita esconder a identidade dos indivíduos em um grupo com pessoas semelhantes; e adição de ruídos matemáticos pode ocorrer por meio da aplicação da “privacidade diferencial”, essa técnica permite que o nível de privacidade predefinido não seja excedido [4].

A experiência internacional pode servir como importante referência para o Brasil desenvolver seus parâmetros de proteção de dados pessoais aplicáveis ao relatório de transparência salarial e critérios remuneratórios.

Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou o estudo “Pay transparency legislation: Implications for employers’ and workers’ organizations“. Esse estudo citou que os Estados Unidos, Canadá, Austrália e alguns países europeus exigem a transparência salarial baseada em publicação de informações como: quantidade de funcionários por raça, etnia e sexo em cada categoria de trabalho; faixa salarial; média de horas trabalhadas; e estatísticas sobre disparidades salariais entre homens e mulheres [5].

No Brasil, espera-se que o governo federal publique diretrizes específicas para o cumprimento desta obrigação, como ocorre em outros países. O  governo da Califórnia, por exemplo, disponibiliza um guia orientativo e um modelo de relatório, incluindo código de raça-etnia-sexo que é atribuído a cada funcionário, como o seguinte código: “B10 – Não hispânico/Não Latino – Masculino – Branco” [6].

Nesse sentido, o Núcleo de Proteção de Dados Pessoais do Trabalhador e da Trabalhadora (NPDados), do Ministério Público do Trabalho, instituído pela Resolução nº 217, de 4 de dezembro de 2023, poderá ser uma possível referência nacional de boas práticas. Competirá ao NPDados atuar em procedimentos de relevância social e de elevado grau de complexidade, referentes à proteção de dados pessoais dos trabalhadores e das trabalhadoras, bem como políticas institucionais e ações concretas voltadas à implementação da proteção de dados pessoais no âmbito das relações de trabalho [7].

Diante do exposto, o relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios passa a desempenhar função instrumental para análise objetiva das disparidades salariais, das estruturas remuneratórias e da distribuição de cargos dentro das organizações no país. Sempre que identificada desigualdade salarial e de critérios de remuneração, auditoria-fiscal do Trabalho notificará o empregador para que elabore, no prazo de 90 dias, o plano de ação para mitigação da desigualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

Nesse momento, é desconhecida a metodologia que o MTE utilizará para analisar e concluir o relatório. Sendo assim, faz-se necessário que os empregadores estejam atentos ao preenchimento das informações no E-social e no Portal Emprega Brasil, pois é possível que haja conclusões em relação à desigualdade salarial que não correspondem com a realidade.

A portaria é silente sobre mecanismos de retificação ou contestação do relatório de transparência salarial e critérios remuneratórios, e isso pode dar causa a ações administrativos e judiciais para que o empregador questione o resultado do relatório a fim de evitar a sua publicação com conclusão equivocada capaz de causar-lhe danos.

Desde já, destaca-se a importância de as empresas estarem em conformidade com a lei. O descumprimento da nova obrigação resulta na aplicação de multa administrativa cujo valor corresponderá a até 3% da folha de salários do empregador, limitado a 100 salários mínimos, ou seja, R$ 132 mil em 2023.

Por fim, considera-se fundamental que as empresas busquem orientação técnica e jurídica, a fim de garantir a publicação de relatórios adaptados à realidade organizacional interna de cada empresa, conforme o escopo legislativo brasileiro. Isso assegurará a conformidade com a Lei e a minimização de riscos jurídicos e reputacionais.


Referências

[1] BRASIL. Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023. Dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

[2] BRASIL. Decreto nº 11.795/2023, de 23 de novembro de 2023. Regulamenta a Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023, que dispõe sobre igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

[3] BRASIL. Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) nº 3.714, de 24 de novembro de 2023. Regulamenta o Decreto nº 11.795, de 23 de novembro de 2023, que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, em especial o Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, o Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios, o protocolo de fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens e a disponibilização de canais específicos para denúncias de discriminação salarial.

[4] BRASIL. Nota Técnica nº 46/2022/CGF/ANPD. Disponível em: <https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/sei_00261-000730_2022_53-nt-46.pdf>.

[5] ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Pay transparency legislation: Implications for employers’ and workers’ organizations. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_856235/lang–pt/index.htm>.

[6] CALIFORNIA. Pay Data Reporting. Disponível em: <https://calcivilrights.ca.gov/paydatareporting/>.

[7] BRASIL. Resolução nº 217, de 4 de dezembro de 2023. Institui o Núcleo de Proteção de Dados Pessoais do Trabalhador e da Trabalhadora – NPDados – e define os parâmetros para a sua atuação finalística na proteção de dados pessoais dos trabalhadores e das trabalhadoras.

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