Opinião

Relatório de transparência salarial da Lei nº 14.611/23: riscos e incertezas

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24 de dezembro de 2023, 9h21

Com o objetivo de assegurar a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, a Lei nº 14.611/23, dentre outros mecanismos, instituiu a obrigação de publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios por todas as empresas com 100 ou mais empregados. Em casos de desigualdade identificada pela fiscalização, as empresas deverão elaborar planos de ação com metas e prazos, sob pena de estarem sujeitas a multa de até 3% da folha salarial.

Estudos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) citados pela relatora do projeto de lei que culminou na edição da Lei nº 14.611/23 apontam que, globalmente, as mulheres recebem, em média, cerca de 20% menos do que os homens e que, em grande parte, essa diferença se deve à discriminação com base no gênero. A síntese de indicadores sociais de 2023, estudo publicado pelo IBGE, expõe que o rendimento nacional médio dos homens, no ano de 2022, foi de R$ 2.838, frente ao rendimento nacional médio de R$ 2.235 das mulheres, uma diferença percentual de praticamente 27%.

O diagnóstico de discriminação baseada em gênero é incontestável, e a atuação estatal, imprescindível. Contudo, mesmo com a edição dos atos regulamentadores, mais especificamente o Decreto Presidencial nº 11.795/2023 e a Portaria nº 3.714/2023 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), não há clareza de como os dados compartilhados serão utilizados e qual será a estrutura dos relatórios que deverão ser publicados.

O conjunto de dados e informações listados nas normas é extenso e traz informações críticas da estrutura salarial praticada pelas empresas e sobre seus empregados, com amplo detalhamento da estrutura remuneratória. Caso todos os dados que passarão a ser compartilhados com o governo federal sejam tornados públicos através dos relatórios de transparência salarial, na prática, estaremos diante de um cenário em que uma legislação aprovada em regime de urgência inaugura o dever de ampla transparência salarial em nosso ordenamento. Isso sem a necessária maturação do debate público sobre o tema e a necessária ponderação de questões econômicas e sociais que vão muito além do fomento à equidade salarial.

Não há elementos que corroborem a ampla transparência como medida mais adequada para o fim proposto, especialmente se seria este o meio menos invasivo para alcançar o mesmo resultado.  Diante da ausência da publicação da análise sobre impacto regulatório, conforme exigido pela Lei da Liberdade Econômica, sequer é possível apreender os fundamentos que possam ter levado à compreensão de que os benefícios de uma transparência irrestrita suplantam os custos coletivos e individuais dela.

No aspecto coletivo, impõe-se que se pondere sobre os efeitos colaterais da medida. Estudos conduzidos pela Universidade de Chicago demonstram que a vigência da Lei de Transparência Salarial do Estado da Califórnia resultou em redução média da remuneração em 7% para os cargos de gestão. Outro estudo, publicado pela Harvard Business Review, concluiu que a transparência salarial estimula o acordo por benefícios personalizados não financeiros em detrimento de incrementos salariais.

Na esfera de garantias de direitos individuais, os riscos residem, sobretudo, em potenciais violações à proteção de dados e à privacidade dos trabalhadores. Em uma sociedade assolada por uma verdadeira epidemia de violência, a potencialidade lesiva dos dados elencados pelas normas é significativa.

A preocupação com a privacidade e a segurança é latente em nossa sociedade, tanto que foi necessário o próprio MTE vir a público, em comunicado publicado em seu site, esclarecer que “a divulgação de salários de homens e mulheres não mostrará nomes de colaboradores”. No entanto, como se sabe, o nome não é dado indispensável para identificar um indivíduo.

Em contradição com o próprio ato do governo federal de retirar do ar a publicação dos microdados do Inep até que se avalie alternativas que garantam a privacidade dos titulares, o MTE fez vistas grossas à clara possibilidade de utilização de um conjunto de dados indiretos para reidentificar os titulares afetados. Se agregamos apenas alguns dos dados elencados na Portaria nº 3.714/2023, como sexo, raça e etnia, com os respectivos valores da remuneração mensal, não é difícil concluirmos que a reidentificação do titular será possível ser realizada sem grandes esforços.

À luz destas premissas, a publicação de todos os dados elencados nos atos infralegais é incompatível com o próprio comando normativo da Lei nº 14.611/23, que estabelece expressamente o respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e o dever de anonimização de dados. Circunstância esta que se agrava quando observamos que na lista de dados pessoais que deverão ser compartilhados temos dados pessoais sensíveis e dados pessoais que trazem elevado risco de dano aos titulares.

Soma-se aos riscos individuais e coletivos, a ausência de critérios previamente estabelecidos para dosimetria da multa e definição normativa de qual será a sua destinação. Incertezas que trazem insegurança jurídica e poderão ser causa de passivo judicial ao próprio Estado.

A relevância do combate à desigualdade de gênero não deve nos impedir de denunciar que o rei está nu, que as incertezas e riscos existentes na formatação dos relatórios de transparência salariais devem ser melhor endereçados. Mostra-se mandatório que o governo federal submeta à sociedade civil a proposta de estrutura do relatório de transparência salarial, a avaliação do impacto regulatório e de proteção de dados, bem como que amplie o debate sobre quais as consequências da publicação de cada uma das informações que serão tornadas públicas.

A segurança jurídica e o direito à privacidade são direitos fundamentais que devem ser considerados na construção desta importante política pública e não são antagônicos aos seus objetivos. É possível avançarmos com transparência sobre o diagnóstico situacional da odiosa discriminação salarial baseada em gênero sem prejuízo à efetividade da fiscalização, bem como em sinergia com outros direitos envolvidos.

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