Opinião

Poder punitivo das plataformas digitais: análise a partir de um trabalho de campo

Autor

  • Ilan Fonseca de Souza

    é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

4 de junho de 2023, 13h21

O ordenamento jurídico brasileiro, por meio do Direito do Trabalho, confere aos empregadores a tutela de seus interesses. O conjunto de tais interesses, juridicamente protegidos, materializa-se no poder empregatício, cuja face contrária consiste na subordinação dos trabalhadores.

A subordinação apresenta-se sob três aspectos analíticos, com enfoque nos poderes patronais, quais sejam, a hierarquia, supervisão e punição patronal. Há quem enxergue, também, o poder regulamentar como inerente a esse poder patronal (DELGADO, 2012, p. 661).

Com a finalidade de investigar como se manifestam, na prática, os poderes patronais típicos do capitalismo de plataforma, realizou-se um estudo etnográfico que explora de maneira empírica como funcionam os mecanismos de disciplinarização da força de trabalho pela Uber.

As análises resultam de um trabalho de campo com duração de quatro meses, computados em 350 horas de utilização do aplicativo, como motorista. Através do método da participação observante, essa abordagem buscou a experiência subjetiva de prestar serviços à plataforma, no período de dezembro de 2021 a março de 2022, na região metropolitana de Salvador.

É sabido que, na execução do contrato de trabalho, os poderes empregatícios apresentam-se de forma sucessiva: a desigualdade e assimetria econômica, social e técnica entre empregador e empregado engendram o poder diretivo ou hierárquico (ordem); por sua vez, a hierarquia impulsiona o poder de fiscalização ou controle que, finalmente, se desatendida (a ordem), irá culminar no poder punitivo ou disciplinar.

Sem o elemento disciplinar, o poder empregatício não se completa. A punição, ainda que potencial, já carrega consigo o medo do trabalhador em ser penalizado, e o temor é o mais forte estímulo à obediência e subordinação.

No caso da plataforma Uber, a punição aplicada a condutas desviantes não é apenas potencial, mas também concreta, como a pesquisa evidenciou, ainda que obedeça ao critério empresarial do si voluero. Ou seja, a plataforma não abdica da possibilidade de expedir comandos ou de monitorar o comportamento, mas, discricionariamente, pode abrir mão do poder disciplinar e "fingir que não viu".

A explicação para isso é simples: como as plataformas têm acesso a uma mão de obra inadimplida e graciosa — remunerada exclusivamente pela tarefa — a punição máxima somente se mostra aconselhável ou necessária quando motoristas dão efetivo ou potencial prejuízo à Uber.

A condição de motoristas não estarem dando lucros, ou episódios envolvendo pequenos dissabores relacionados a passageiros, não são motivos suficientes para a demissão. Enquanto o tempo de trabalho dos motoristas não for remunerado, não há razão para que a plataforma rescinda os contratos de uma grande quantidade de empregados, sendo preferível dar novas chances de adaptação e apenas aplicar advertências ou suspensões.

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Com um encargo social que está próximo de zero, demitir é sempre a pior opção para o ente patronal do capitalismo de plataforma. Essa é a razão pela qual a taxa de desativações/banimentos tende a ser muito baixa (MPT, 2021), porque outras medidas disciplinares mostram-se mais coerentes para tal lógica empresarial.

A punição aplicada pelas plataformas corresponde ao exercício do poder disciplinar da forma mais tradicional. Porém, como as medidas disciplinares são aplicadas através da tecnologia presente no aplicativo Uber Driver, tem-se a impressão de que não há um empregador punindo um empregado.

O aplicativo é a ordem, o controle e também a punição em si. A cada circunstância experimentada pela etnografia como punitiva  rebaixamento de nota, bloqueio tácito, direcionamento de corridas desvantajosas ou críticas verbais de usuários  diante de um possível banimento que inviabilizaria a própria pesquisa, este pesquisador ajustava a sua conduta, numa verdadeira ortopedia psicológica, para utilizar a expressão foucaultiana.

Os Termos de Uso da plataforma proíbem, por exemplo, a troca de veículo sem o consentimento da Uber ou a comunicação do motorista com passageiros após o término da corrida. Proíbe-se, da mesma forma, a substituição do motorista por outro colega de trabalho, tudo sob pena de desligamento. Até mesmo a prática de infrações de trânsito pode ocasionar a demissão do trabalhador.

O risco de ser banido ou bloqueado tem um forte poder persuasivo e expõe os motoristas a uma vulnerabilidade constante pela perda financeira imediata que isso acarreta, o que se agrava pelo fato de que a maioria desses trabalhadores está endividada.

O desligamento, no entanto, somente se aplica para ocorrências graves, sendo utilizado apenas em último caso, diante da vantagem da plataforma em manter empregados inteiramente à disposição, mas sem a necessidade de efetuar qualquer contraprestação salarial.

Uma drástica desativação só deve ser aplicada, portanto, em face de motoristas inveterados que põem em risco a dinâmica da plataforma como um todo. Por isso, uma simples ameaça ou advertência será tão eficaz quanto uma sanção em concreto. Nesse contexto, avisos ameaçadores, bloqueios e direcionamento de corridas desvantajosas, podem ser medidas largamente utilizadas, sem que se seja necessária a desativação.

Outra punição comum consiste na retenção de valores salariais, uma pena de multa vedada pelo artigo 462 da CLT. Como afirma a plataforma "Nós nos reservamos o direito de deduzir, compensar, ou reaver qualquer valor que o motorista parceiro tenha a receber com eventuais danos relacionados ao mau uso da plataforma, além de adotar as medidas judiciais cabíveis" (UBER, 2022a). Isso ocorre, por exemplo, nas hipóteses em que o saldo devedor do motorista é superior aos créditos que possui.

Se o motorista recebe valores de muitas corridas em dinheiro, mas não possui saldo em conta que permita o desconto da taxa da Uber, o abatimento é feito nas viagens seguintes com o pagamento em cartão; mas, se esse motorista interrompe a prestação dos serviços ou fica sem créditos por duas semanas, a plataforma interpreta essa conduta como indevida e pode desativá-lo: a falta de recursos financeiros pode implicar seu desligamento.

A moderna demissão do trabalhador de plataformas pode ser feita por um empregador que terá a consciência tranquila, já que os critérios de rescisão contratual foram fixados antecipadamente pela empresa, no bojo do seu extenso poder regulamentar.

A punição que deflui do algoritmo aparenta ser imparcial e automática, assemelhando-se a uma interpretação literal das regras e fatos trazidos a julgamento. Escondido, ainda, nas avaliações dos passageiros, o encadeamento de decisões do algoritmo, no entanto, é desenhado exclusivamente pela Uber e pelos gestores da empresa.

Atendimento aos passageiros sem cordialidade, desrespeito ao tempo ou roteiro programados, falta de limpeza, higiene ou mau funcionamento do veículo, violação a regras tarifárias ou atos de deslealdade para com os Termos de Uso, tudo isso é considerado má prestação de serviço facilmente quantificável, que, por sua vez, gera monitoramento constante e prováveis avaliações negativas ou reclamações, sucedendo-se a uma possível rescisão contratual.

O desenho dos requisitos para uma demissão está estruturado a priori e foi exclusivamente projetado pela empresa. A desativação nada mais é do que a rescisão do contrato sem indenizações ou verbas rescisórias, somada à vinculação do trabalhador a regras subordinativas criadas pela plataforma, impeditivas do acesso à justiça, com a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias mesmo após o desligamento (cobranças de valores em conta bancária) e, consequentemente, na impossibilidade de novo cadastramento na Uber, fechando-se as portas para um possível reemprego. É uma temeridade o motorista não se enquadrar aos ditames empresariais nesse cenário.

A associação do poder disciplinar à subordinação jurídica há de levar em conta, portanto, muito mais a potencialidade da punição. Não se deve, pois, interpretar o fenômeno apenas de acordo com a nomenclatura utilizada pelo empregador, que, no caso, não admite se tratar de uma punição patronal, mas apenas de "perda de acesso à conta"; nem de acordo com o histórico de penalidades aplicadas em concreto, que pode indicar uma ampla anistia em relação à recusa de corridas ou à flexibilidade quanto ao tempo de conexão.

Alguns tribunais trabalhistas têm interpretado de forma restritiva esse fenômeno. O primeiro julgado da 5ª Turma do TST (Tribunal Superior do Trabalho), por exemplo, concluiu pela inexistência da relação de emprego (BRASIL, 2020). Pesou contra o trabalhador o fato de ter declarado que podia ficar offline sem delimitação de tempo: para o tribunal, ficar desconectado é o mesmo que não trabalhar, não considerando esse intervalo temporal como tempo à disposição. Avaliou ainda o TST que essa flexibilidade contemplaria rotina, horários de trabalho, locais de atuação e tamanho da clientela. Essas características implicariam uma autodeterminação ou autonomia, antíteses à subordinação.

No entanto, é preciso salientar que, mesmo quando a plataforma impõe sanções, não enquadra tal punição enquanto medida disciplinar, mas sim como mera consequência do descumprimento de parâmetros objetivos fixados pelo algoritmo ou pelo sistema de avaliação, ambos, a seu ver, imparciais e previamente conhecidos dos motoristas.

A plataforma também não enquadra conceitualmente tais parâmetros como ordens decorrentes de um poder diretivo. Por fim, diante de perdões tácitos frente ao descumprimento de ordens patronais explícitas  por não representarem um grande potencial de perdas para a companhia  tem-se uma falsa sensação de que os comandos empresariais são meras sugestões voltadas a trabalhadores autônomos.

O que o trabalho de campo permitiu confirmar, porém, é que a plataforma não se despoja da sua prerrogativa de impor sanções. Assim o faz sempre quando constata que seus interesses não estão sendo suficientemente atendidos. A empresa tem o poder de desligamento, temporário ou permanente, caso o trabalhador não aceite um determinado número de tarefas, se envolva em manifestações políticas contra a plataforma, ou seja denunciado por má conduta (DUARTE; GUERRA, 2019, p. 49; SABINO; ABÍLIO, 2019, p. 120).

Nesse aspecto, a denúncia de assédio comunicada por um passageiro, seja ela verdadeira ou não, representa, quase sempre, a pena de banimento, conforme entrevistas realizadas durante a etnografia. Avaliações insuficientes também podem acarretar sanções e a punição consistirá na desativação:

Desta forma, motoristas parceiros que não mantenham uma avaliação mínima por parte dos usuários podem ser desativados da plataforma (UBER, 2020).

O trabalho realizado com uma pontuação abaixo da esperada pode ocasionar o desligamento. A plataforma interpreta, ainda, que o reiterado absenteísmo ao serviço, recusando diversas solicitações consecutivas de viagens, implica um desejo do motorista em não mais trabalhar, gerando por consequência o bloqueio temporário da conta (offline) (UBER, 2021).

Não se trata de critério orientador apenas, ou de mera automatização do algoritmo sob a rubrica de "nossa tecnologia", mas de um poder empregatício que concretiza uma ordem, com uma sanção específica. Como o descumprimento do comando enseja o desligamento temporário do motorista, não se trata de mera recomendação, mas do exercício de um poder hierárquico e disciplinar que, no entanto, não desaparecem por não se exercitarem (SIGNES, 2017, p. 11).

O exercício do poder disciplinar, através das punições, é a última fronteira do poder empregatício e do seu correlato, a subordinação. Esse poder disciplinar somente deve ser exercido se for necessário, adequado e proporcional aos interesses empresariais, e corresponde a um aspecto decisivo para a caracterização da subordinação dos motoristas de aplicativo.

O conjunto de tais elementos, como poder regulamentar, hierarquia, supervisão e poder punitivo, faz surgir uma subordinação qualificada encontrada no processo de uberização do trabalho. O método científico adotado no trabalho de campo foi indutivo, ou seja, partiu de um fato empírico e concreto para tentar balizar a comprovação teórica. Nesse sentido, a etnografia mostrou-se uma ferramenta útil para perceber a subordinação jurídica em sua totalidade e em seus mais diversos matizes, permitindo compreender, em termos mais amplos, a forma como a subordinação se manifesta no capitalismo de plataforma.

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Referências bibliográficas
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho (Quinta Turma). AIRR-1000123/2017-0038-02. Relator: ministro Breno Medeiros. Acórdão publicado em: 27/11/2020. Disponível em: http://aplicacao5.tst.jus.br/consultaDocumento/acordao.do?anoProcInt=2019&numProcInt=242502&dtaPublicacaoStr=27/11/2020%2007:00:00&nia=7573207. Acesso em: 11 jul. 2021.

DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012.

DUARTE, F. C. P.; GUERRA, A. Plataformização e trabalho algorítmico: contribuições dos estudos de plataforma para o fenômeno da uberização. Revista Eptic, Aracaju, v. 22, nº 2, p. 38-55, maio/ago. 2019. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/12129/1. Acesso em: 17 maio 2021.

MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT). Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região. Ação civil pública de nº 1001379-33.2021.5.02.0004. Petição inicial. São Paulo, 5 nov. 2021. Disponível em: https://cdn.brasildefato.com.br/documents/1482aaae4cfff37611ca025c3b5e7a99.pdf. Acesso em: 14 mar. 2022.

SABINO, A. M.; ABÍLIO, L. C. Uberização: o empreendedorismo como novo nome para a exploração. Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 2, nº 2, p. 109-135, dez. 2019. Disponível em: http://www.revistatdh.org/index.php/Revista-TDH/article/view/53/31. Acesso em: 16 maio 2021.

SIGNES, A. T. O mercado de trabalho no século XXI: on-demand economy, crowdsourcing e outras formas de descentralização produtiva que atomizam o mercado de trabalho. In: LEME, A. C. R. P.; RODRIGUES, B. A.; CHAVES JÚNIOR, J. E. R (coord.). Tecnologias disruptivas e a exploração do trabalho humano. São Paulo: LTr, 2017. p. 28-43.

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Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

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