Opinião

A resiliência do conceito de subordinação jurídica e o motorista de aplicativo

Autor

  • Ilan Fonseca de Souza

    é doutor em Estado e Sociedade na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) especialista em Processo Civil e procurador do Trabalho.

21 de junho de 2023, 15h16

A 1ª Turma do TST (Tribunal Superior do Trabalho) declarou, em fins de abril, não haver relação de emprego entre motoristas e o aplicativo de transporte Uber. No julgamento do Recurso de Revista nº 271-74.2022.5.13.0026, o colegiado, por maioria, levou em conta a liberdade de um motorista paraibano para escolher os horários e locais pelos quais atuava, além da possibilidade de usar outros aplicativos de intermediação de viagens ao mesmo tempo.

Para o ministro Amaury Rodrigues Pinto Júnior, relator do caso, não havia a presença de elementos fáticos imprescindíveis para a configuração do vínculo empregatício, notadamente a subordinação jurídica. Registrou-se que o motorista ligava/desligava seu aplicativo na hora em que bem entendesse, fazendo suas corridas na hora e pelo tempo escolhido, selecionando ainda os clientes: essa ampla margem de liberdade e autodeterminação evidenciaria a autonomia.

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Assim como essa, outras decisões dos tribunais trabalhistas que não identificam a subordinação destacam que: 1) as regras de atendimento aos clientes não passam de meras sugestões; 2) o trabalhador pode decidir quando dirige e não existe fiscalização da sua atividade; 3) o procedimento determinado para a execução do trabalho tem o objetivo de evitar a prática de irregularidades pelos motoristas, não existindo poder diretivo e não havendo a emissão de ordens diretas 4) o motorista assume os riscos do negócio, dado que todos os custos exigidos pela prestação do serviço são de sua responsabilidade; 5) a precificação das corridas pela Uber não é indício de relação de emprego; e 6) a Uber é uma plataforma que conecta/aproxima os passageiros aos motoristas cadastrados no aplicativo (KALIL, 2019). O TST tem interpretado, ainda, que há uma vantajosa distribuição de valores entre plataforma e trabalhadores que não seria condizente com um contrato de trabalho e que a modalidade de trabalho é inovadora, exigindo, por isso, uma nova regulamentação mais compatível.

Ainda que sujeita a novos contornos, a subordinação possui limites conceituais relativamente duradouros no campo jurídico.

A palavra subordinação tem origem etimológica no latim como sub ordinatione, ou seja, corresponde ao ato de subordinar, ordenar, comandar ou dirigir a partir de um ponto superior àquele onde se encontra outro sujeito (MARTINEZ, 2012). A subordinação é uma espécie de heteronomia, uma regulação pelo outro, ao passo que a expressão autonomia, por sua vez, deriva do grego e significa uma "regulação pelo eu".

A subordinação clássica consistiria na heterodireção patronal rígida e intensa da prestação de trabalho. Nessa primeira acepção, o empregador define e ordena o tempo e o modo de execução do trabalho. Enquanto o tempo laboral corresponde ao momento de início, intervalo e fim da atividade contratada, o modo de execução dos serviços significa a maneira de ser operacionalizado o labor, e a subordinação clássica agiria limitando a vontade individual do empregado quanto a esse tempo, modo e espaço, originalmente fabril. Com isso, ela se caracterizaria pela intensidade de ordens, na obediência e sujeição ao comando do tomador de serviços e na situação de respeito à hierarquia (MARTINEZ, 2012).

Segundo Lorena Porto (2008), sob esse prisma, a subordinação pode ser sintetizada como emanação de ordens intrínsecas e específicas, predeterminação de horário fixo e rígido de trabalho, prestação de serviços no local da empresa, vigilância e controle assíduos do empregador, além da possibilidade de punição. A subordinação estaria acantonada nos tempos e no local da execução da prestação do trabalho, e teria limites funcionais, espaciais e temporais (AMADO; MOREIRA, 2020).

Trata-se de um elemento factual endógeno a uma relação social, ou seja, inerente à própria relação jurídica existente entre patrão e empregado. Enquanto a natureza jurídica da relação de emprego é a de um contrato, a natureza jurídica da subordinação é a de um requisito fático-jurídico fundamental para a caracterização do vínculo empregatício. Pode ser conceituada, assim, como o estado de inferioridade fática em que se encontra o trabalhador diante do conjunto de poderes patronais oriundos de uma assimetria econômica e contratual que impedem a autonomia obreira.

A diversidade, intensidade e centralidade dos poderes diretivos, em aspectos essenciais do contrato, como a jornada de trabalho, a forma como o trabalho deve ser prestado e o preço pago pela mão-de-obra, faz com que a subordinação reste evidenciada. Os indícios da subordinação, porém, não podem ser analisados de forma isolada, mas em conjunto e sistematicamente.

É certo que a propriedade dos meios de produção está na raiz da legitimidade patronal em controlar o processo produtivo do trabalhador. A subordinação representa uma relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens do empregador, mas costuma-se esquecer que o seu real fundamento é o direito de propriedade dos meios produtivos (MACHADO, 2009). Esse direito de propriedade, contudo, não é um fator determinante por si só da existência de subordinação, tendo em vista as transformações históricas empreendidas no capitalismo ocidental.

Os meios de produção na atividade industrial, por exemplo, diferem dos meios de produção da agricultura, ou mesmo do exercício de atividades econômicas no setor de serviços ou no comércio, hoje predominante em muitos países, principalmente diante dos acelerados avanços tecnológicos. A premissa de que "quem manda é o dono" geralmente é válida, mas essa não é uma regra absoluta. Mais do que presentes em um sistema econômico, a hierarquia e a subordinação estão também presentes nas normas e no poder de regulamentar e disciplinar a atividade alheia.

Subordinação seria o correlato do poder diretivo, decorrente do direito constitucional da livre iniciativa (artigo 1º, IV e 170 caput da Constituição Federal): se as formas de controle patronal e a própria morfologia das empresas capitalistas mudam ao longo do tempo, a subordinação também adquire nova aparência — mas não novo conteúdo.

A sujeição hierárquica é a explicação mais aceita para justificar a subordinação, pois o empresário é o coordenador e organizador do empreendimento, exercendo na empresa um poder diretivo. Assim, o empregador tem o direito de dar ordens e o empregado tem a obrigação de cumpri-las, desde que tais ordens sejam legítimas e com origem contratual. A hierarquia e disciplina são necessárias ao capitalismo e estão lastreadas na forma jurídica dos contratos. Essa seria uma subordinação jurídica, que não teria caráter pessoal, mas com fundamento na autonomia da vontade e na liberdade contratual.

No Brasil, foi a partir da CLT que se conformou a relação de emprego. O critério da subordinação jurídica pode ser extraído da conjugação dos seus artigos 2º e 3º: "Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço" e "Considera-se empregado toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário".

No entanto, o artigo 6º da CLT foi alterado pela Lei nº 12.551, de 2011, consagrando a expressão "subordinação jurídica" na legislação nacional e autorizando que a subordinação mediada pela tecnologia também possa ser reconhecida:

"Artigo 6º Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio."

O trabalho intermitente, por sua vez, refere expressamente à necessidade de subordinação para sua eficácia, conforme §3º do artigo 443 da CLT, permitindo a alternância de períodos de prestação de serviços e inatividade. Vale frisar que o §3º do artigo 452-A, da CLT, também não descaracteriza a subordinação nos casos de recusa da oferta, típica do contrato de trabalho intermitente.

Frise-se, ainda, que o artigo 78 da CLT contempla o salário ajustado por empreitada ou convencionado por tarefa ou peça, garantindo-se um salário mínimo diário nestas condições.

Por sua vez, pelos parâmetros legais, o avesso da subordinação seria a insubordinação que dá ensejo, inclusive, à dispensa por justa causa de iniciativa do empregador, consoante artigo 482 da CLT, deixando claro que o poder empregatício punitivo não pretende ser esvaziado.

A ênfase que o direito do trabalho conferiu ao poder diretivo, porém, acabou por ocultar e naturalizar a assimetria entre patrão e empregado, proprietário e não-proprietário (OLIVEIRA, 2012). Tal assimetria é quem dá sustentação ao poder empregatício.

Em síntese, a subordinação clássica é um conceito que traduz uma situação jurídica derivada do contrato de trabalho, mediante a qual o empregado se obriga a acolher a direção do empregador sobre o modo de realização da prestação de serviços, mas não acarretando uma sujeição pessoal.

Apesar do artigo 3º da CLT conter a expressão dependência, que traz a ideia de subordinação em sentido subjetivo, esse sentido deve ser afastado, visto que bastante mitigado diante do contrato celetista de altos funcionários e do trabalho intelectual: "a intenção da lei é se referir à ideia de subordinação quando utiliza o verbete dependência na definição celetista de empregado" (DELGADO, 2012).

O critério tradicional está fundado na relação subordinação/poder, ou seja, é subordinado aquele que, numa relação pessoal, não tem poder, ou ainda, aquele que não tem autonomia (MACHADO, 2009). A subordinação pode ser enxergada como a outra face do poder diretivo, mas também pode ser vista como negação da autonomia e independência de agir do trabalhador.

A subordinação distingue a relação de emprego da sua antítese, o trabalho autônomo, limitando a autonomia individual da vontade do trabalhador. Segundo Luciano Martinez (2012), o trabalhador autônomo estabelece as regras para o oferecimento do seu serviço: idealiza a regra da prestação de serviço e o tomador apenas a ela se submete. Pode o autônomo alterar as fórmulas de concretização dos objetivos pessoais sem dever satisfações a quem quer que seja. Assim, é o próprio prestador de serviços quem define o tempo e o modo de sua execução.

Para Souto Maior (2008), a evolução do direito do trabalho somente foi possível graças a essa distinção entre trabalho autônomo e trabalho assalariado. Ao autônomo não pode recair tão somente o direito de arcar com prejuízos ou riscos, mas também a possibilidade de obter lucros diante de decisões empresariais próprias: a subordinação seria a exclusão da liberdade empresarial do trabalhador. As duas figuras — autonomia e subordinação — apresentam-se exatamente como contrapostas e especulares, e a definição de uma auxilia a conceituação da outra (PORTO, 2008).

Não apenas com o trabalho autônomo há que se buscar o elemento de distinção do trabalho subordinado. Mesmo formas típicas ou históricas de sujeição do trabalho merecem tensionamento nessa diferenciação. As relações pré-modernas conviviam com a sujeição dos servos e escravos, sem que se pudesse falar em assalariamento pela falta do pressuposto da liberdade, ainda que em termos hipotéticos. A escravidão e a servidão contavam com uma subordinação, no sentido de sujeição objetiva e subjetiva, muito mais evidente. No entanto, foi a regulação do trabalho livre por meio do direito do trabalho que se preocupou, ironicamente, com a subordinação e a elevou à condição de princípio estruturante (ANDRADE, 2008).

Desta forma, pode-se concluir que a limitação temporal e espacial da subordinação (exigência de apresentação em determinado local e em determinados horários) foi uma fronteira criada, a princípio, em benefício do trabalhador, uma vez que fora da fábrica e do horário de trabalho, haveria liberdade plena.

Hodiernamente, quando essas esferas se entrelaçam — a diluição das tradicionais fronteiras entre vida profissional e pessoal (AMADO; MOREIRA, 2020) — e as ordens patronais avançam para fora da fábrica e fora da jornada de trabalho, ao invés de se propugnar pelo aumento da subordinação, tem-se afirmado, contraditoriamente, que ela deixou de existir.

Quando analisados os requisitos fáticos da relação jurídica existente entre motoristas de aplicativo e as empresas proprietárias de plataformas digitais, observa-se que é possível, portanto, a aderência entre o conceito doutrinário resiliente da subordinação e as intituladas novas modalidades de contrato atividade. Isso porque a subordinação sedimentou-se como uma concepção estável, abarcando novas formas de remuneração variável, trabalho externo, teletrabalho, trabalho intelectual, ou com o uso de meios telemáticos e informatizados de comando, sempre com a legislação se adaptando para contemplar suas novas representações: as fronteiras espaciais, temporais, remuneratórias, ou relativas ao modus faciendi, foram se alargando diante de um paradigma constante da subordinação.

 

 

Referências bibliográficas
AMADO, J. L., MOREIRA, T. C. A desconexão dos trabalhadores: direito ou dever? In: ROCHA, C. J.; PORTO, L. V. (org.). O mundo do trabalho e a 4ª revolução industrial: homenagem ao Professor Márcio Túlio Viana. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 179-205.

ANDRADE, E. G. L. O direito do trabalho na filosofia e na teoria social crítica: os sentidos do trabalho subordinado na cultura e no poder das organizações. Rev. TST, Brasília, v. 78, n. 3, p.37-46, jul./set. 2012.

DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012.

KALIL, R. B. Capitalismo de plataforma e direito do trabalho: crowdwork e trabalho sob demanda por meio de aplicativos. 2019. 102f. Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

MACHADO, S. A subordinação jurídica na relação de trabalho: uma perpectiva reconstrutiva. 2003. Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2003.

MARTINEZ, L. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012.

OLIVEIRA, M. C. S. A ressignificação da dependência econômica. Revista TST, Brasília, v. 78, nº 1, p. 210-237, jan./mar. 2012a.

PORTO, L. V. A subordinação no contrato de emprego: desconstrução, reconstrução e universalização do conceito jurídico. 2008. 356f.  Dissertação (Mestrado em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade Federal da Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

SOUTO-MAIOR, J. L. Curso de direito do trabalho: a relação de emprego. São Paulo: LTr, 2008. v. 2.

Autores

  • é doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFBA), mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UBC), especialista em Processo Civil pela Faculdade Jorge Amado (Unijorge) e procurador do Trabalho.

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