Opinião

Um precedente vinculante pode ser superado? O que justifica?

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22 de dezembro de 2023, 7h08

Acabam de ser publicados os enunciados aprovados na 3ª Jornada de Direito Processual Civil, do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

A jornada é um evento especialíssimo, pois permite amplo e aprofundado debate sobre os temas propostos, já que conta com a participação de renomados professores, além de membros da magistratura, do Ministério Público, da advocacia pública e privada. O último evento esteve sob coordenação dos ministros Mauro Campbell e Sérgio Kukina, do STJ (Superior Tribunal de Justiça).

Alguns dos enunciados aprovados sintetizam entendimentos já pacificados na jurisprudência. Outros jogam luzes sobre temas menos maduros e, assim, assumem especial relevância, pois têm o potencial de moldar novos rumos.

Entre todos os enunciados aprovados neste segundo grupo, a nosso ver, um merece destaque. É o enunciado 205, que trata da superação dos precedentes e ficou assim redigido:

ENUNCIADO 205: A fundamentação da superação de tese firmada em recurso repetitivo deve apontar, expressamente, os critérios autorizadores da superação de precedentes: incongruência social ou inconsistência sistêmica.

O enunciado faz clara referência à doutrina de Melvin Eisenberg, que aponta que há um princípio básico a ser observado na superação dos precedentes (“the basic overruling principle”): um precedente vinculante somente deve ser superado se (i) deixar de satisfazer os padrões de congruência social e consistência sistêmica e, cumulativamente, (ii) os valores que sustentam o princípio do stare decisis — isonomia, proteção da confiança, estabilidade, vedação à surpresa — não constituírem razões fortes o suficiente para justificar sua preservação. [1]

Basicamente, está-se dizendo que há uma presunção contra a superação de um precedente vinculante. O precedente foi feito para ser preservado, gerando estabilidade e servindo como pauta de conduta confiável para a sociedade [2]. Portanto, somente em situações excepcionais poderá ser revogado.

Tanto o enunciado quanto o ensinamento de Eisenberg podem parecer óbvios, mas, entre nós, são inovadores.

Isso porque, no Brasil, a jurisprudência muda por fatores externos ao Direito (por exemplo, em decorrência de mudança na composição humana da Corte), sem que se apresente uma justificativa jurídica acerca da necessidade de mudar.

Em obra recentemente publicada sobre o tema (“A Superação dos Precedentes Vinculantes” [3]), procuramos demonstrar, com base no estudo de decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, que a superação exige justificação especial e específica: especial, porque deve ser vista como medida extraordinária; específica, porque depende de argumentos próprios, que dizem respeito ao princípio do stare decisis e não se confundem com o mérito do caso concreto ou com os fundamentos do precedente ameaçado.

Sempre que instada a superar um de seus precedentes, a Corte estadunidense, inicialmente, analisa se estaria autorizada a tanto. Nesses julgamentos, o centro do debate não é especificamente a questão de mérito do precedente ameaçado de superação, mas os valores subjacentes ao stare decisis. O precedente se tornou obsoleto? Tornou-se incompatível com o ordenamento? Sua ratio decidendi se mostrou inexequível? Houve realmente mudanças no plano dos fatos ou do Direito a justificarem um novo entendimento? Qual será o impacto que a mudança gerará sobre a confiança do jurisdicionado?

Em suma, avalia-se se há realmente a necessidade de mudar. E, mais importante, decide-se, expressamente, acerca da necessidade de mudar.

Por trás desses debates acerca da superação, estão duas premissas importantíssimas.

A primeira delas é que discordar de um precedente não é motivo para deixar de aplicá-lo e, também, não é razão suficiente para superá-lo. Como apontamos em “A Superação dos Precedentes Vinculantes” [4]com base em Frederick Schauer [5], o papel do precedente vinculante é exatamente constranger e constringir os julgadores do caso subsequente [6]. Estes deverão colocar suas concepções individuais de lado para respeitar aquilo que o precedente dita. Desse modo, ainda que não se concorde com o precedente, ele deverá ser preservado se não estiverem preenchidos os pressupostos para a superação.

A segunda é que o precedente se descola dos membros da Corte que participaram da sua formação e assume um caráter institucional. Assim, vincula com a mesma eficácia: aqueles que compuseram a maioria na formação do precedente; aqueles que votaram contrariamente à tese adotada pelo precedente; e aqueles que não participaram da formação do precedente, incluindo-se, nesse grupo, os que passaram a integrar o tribunal após a decisão. [7]

Dentro dessas premissas, o precedente nunca deve mudar simplesmente porque uma nova composição da Corte não concorda com o entendimento outrora firmado. A mudança deve ser justificada — com base em argumentos jurídicos, levando em conta o princípio do stare decisis —, o que não impede a evolução do Direito, mas faz com que haja racionalidade na mudança jurisprudencial.

Há episódios em que nossos tribunais superiores se ativeram a tais premissas e que são dignos de nota.

No RE nº 655.265, o ministro Edson Fachin apresentou voto divergente, justamente para destacar que o precedente deveria ser prestigiado, por não estarem preenchidas as condições para se proceder à sua superação. Afirmou que “mudar a orientação agora — sem alterações fáticas ou normativas para tanto — seria agir em desacordo com a unidade e a estabilidade que se espera de uma Suprema Corte”. [8]

Na ADI nº 5.127, o Supremo Tribunal Federal também rechaçou a possibilidade de superação. No seu voto, a ministra Rosa Weber afirma: “compreendido o Tribunal como instituição, a simples mudança de composição não constitui fator suficiente para legitimar a alteração da jurisprudência, como tampouco o são, acresço, razões de natureza pragmática ou conjuntural” [9].

Tais exemplos, todavia, ainda são raros no nosso ordenamento. Como dissemos, é comum que a jurisprudência mude sem que nem mesmo se discuta se há necessidade de mudar. Em regra, a discussão em torno de determinado tema é reaberta (debatendo-se os mesmos argumentos formadores do precedente), mas, diante de uma nova composição ou da mudança de opinião de algum dos julgadores, altera-se o placar e passa a prevalecer a interpretação que outrora restara vencida. Assim, altera-se o precedente vinculante, que é pauta de conduta para a sociedade; altera-se o próprio Direito.

Quando isso ocorre, o precedente muda por razões não-jurídicas, o que evidencia arbitrariedade. Ademais, a superação velada, sem que sejam expostos os reais motivos da mudança, obsta a controlabilidade, seja pelas partes e ou pela sociedade.

Teresa Arruda Alvim também alerta que o debate sobre a possibilidade de superar um precedente é absolutamente distinto de se discutir qual será a nova posição. Primeiro se verifica se estão preenchidos os pressupostos para a superação e, apenas na hipótese de se decidir positivamente, é que se passa a definir a nova orientação. [10]

É fundamental que percebamos que há argumentos específicos para justificar a superação de um precedente. Separar esses argumentos daqueles que são impertinentes, por não se prestarem a justificar a mudança, traz enormes ganhos em termos de racionalidade e de estabilidade. Em essência, evita que a jurisprudência mude sob o toque do arbítrio.

Nesse contexto, o enunciado 205 da 3ª Jornada de Direito Processual Civil é salutar e vem em boa hora.

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NOTAS:
[1] EISENBERG, Melvin Aron. The nature of the common law. Cambridge: Harvard University Press, 1991. p. 104-105.

[2] ARRUDA ALVIM, Teresa. Modulação na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 16-20.

[3] PIRES, Michel Hernane Noronha. A Superação dos Precedentes Vinculantes: como se justifica a revogação de um precedente? Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023.

[4] PIRES, Michel Hernane Noronha. A Superação dos Precedentes Vinculantes: como se justifica a revogação de um precedente? Curitiba: Editora Direito Contemporâneo, 2023, p. 44,45

[5] SCHAUER, Frederick. Precedent. Stanford Law Review, v. 39, p. 576, 1987.

[6] Utilizamos os verbos “constranger” e “constringir” no intuito de englobar o que a doutrina do common law busca dizer com o verbo “constrain” e a expressão “constrained by precedent”. Constranger transmite a ideia de obrigar a fazer algo; constringir, por sua vez, significa apertar, comprimir, espremer, diminuir o volume. O precedente vinculante, excetuadas as hipóteses de distinção e superação, obriga o julgador a decidir o caso subsequente conforme o precedente e, ao mesmo tempo, reduz o espaço para escolhas, na medida em que representa um estreitamento da moldura normativa. Por isso, pode-se dizer que o precedente vinculante constrange e constringe.

[7] BARIONI, Rodrigo. O que podemos aprender sobre precedentes em um recente julgamento da Suprema Corte dos EUA? Revista de Processo, v. 312, fev. 2021, p. 279-299.

[8] Supremo Tribunal Federal. RE nº 655.265. Relator: Ministro Luiz Fux. Relator p/ acórdão: Ministro Edson Fachin. Tribunal Pleno. j. 13/04/2016. DJe 05 ago. 2016.

[9] Supremo Tribunal Federal. ADI nº 5.127. Relator: Ministra Rosa Weber. Relator p/ acórdão: Ministro Edson Fachin. Tribunal Pleno. j. 15/10/2015. DJe 11 maio 2016.

[10] ARRUDA ALVIM, Teresa. DANTAS, Bruno. Precedentes, Recurso Especial e Recurso Extraordinária. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 260-265.

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