Paradoxo da Corte

O tribunal não pode alterar o regime legal das obrigações solidárias

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

22 de dezembro de 2023, 8h00

Como é sabido, a solidariedade não se presume, ou decorre ela da lei ou do contrato (artigo 265 do Código Civil), em situações que envolvem mais de um devedor ou mais de um credor.

Assim, quando mais de um agente, por negligência ou imprudência, cometerem ato ilícito, serão eles solidariamente responsáveis a reparar o respectivo prejuízo.

Dispõem, a propósito, o artigo 942 e seu parágrafo único do Código Civil, que: “Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932″.

Spacca

Observa-se destarte que, nessa hipótese, a solidariedade entre os factores do ato ilícito é estabelecida por lei.

Como bem assevera Gustavo Trajano de Azevedo (Solidariedade: funções, eficácias e devido processo legal, tese de doutorado inédita, Faculdade de Direito da USP, 2023, pág. 218), o exemplo bem típico desta situação “é o dos coautores de um dano. Há tradicional responsabilidade solidária pelos prejuízos causados à vítima comum, nos termos do artigo 942 do Código Civil. Não há contraprestação do credor, que apenas é ressarcido pelo prejuízo sofrido, porém todos os codevedores participaram do prejuízo causado; daí por que se diz que todos eles têm interesse comum na obrigação solidária”.

Caso interessante que foi recentemente enfrentado pelo Tribunal de Justiça paulista concernia à prática de ato ilícito cometido por dois advogados, tendo como vítima um magistrado.

A sentença de primeiro grau impôs condenação aos dois requeridos à título de dano moral.

Irresignado com o quantum fixado, o magistrado recorreu e, na sequência, foi provida a sua apelação para condenar cada um dos litisconsortes passivos ao ressarcimento de R$ 30 mil.

Instaurado o respectivo cumprimento de sentença, então aforado contra os dois devedores, para a cobrança de R$ 60 mil, um deles apresentou impugnação forte no fundamento de que não havia solidariedade, uma vez que o Tribunal de Justiça havia estabelecido a condenação na quantia de R$ 30 mil para cada um dos réus.

Para surpresa do exequente, a impugnação foi acolhida, seguindo-se então a interposição do recurso de agravo de instrumento, cujas razões lastrearam-se no argumento de que, na hipótese concreta, não há se falar em excesso de execução, visto que há solidariedade legal na atuação dolosa dos executados.

O outro fundamento em que se baseou o magistrado agravante, para atacar a decisão recorrida, é a existência de um importante precedente, que julgou questão em tudo análoga à vertente, no qual restou decidido que a solidariedade não se confunde com a divisibilidade da obrigação.

Nesse particular, o agravante invocou o julgado da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 1.087.142/MG, da relatoria da ministra Nancy Andrigui, que assentou, à unanimidade de votos, o seguinte:

“Inexiste incompatibilidade entre a divisibilidade e a solidariedade. Nada obsta a existência de obrigação solidária de coisa divisível, tal como ocorre com uma condenação em dinheiro, de modo que todos os devedores vão responder integralmente pela dívida.

A solidariedade nas coisas divisíveis reforça o vínculo entre devedores, servindo de garantia para favorecer o credor, de modo a facilitar a cobrança” (destacamos).

Tal precedente decidiu, com muita precisão, que cada um dos sujeitos passivos da obrigação solidária é responsável pela dívida toda (in solidum), ou seja, tem a obligatio (Haftung) de solver a obrigação total. Desse modo, a única posição que têm os sujeitos passivos na relação oriunda da obrigação solidária é a de estarem responsáveis pelo mesmo debitum. O patrimônio de cada um deles está potencialmente garantindo o adimplemento da mesma obrigação por inteiro (cf. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado — Direito das obrigações, Borsoi, Rio de Janeiro, 1958, pág. 330 e segs.).

Eis a razão pela qual, na situação acima reportada, os executados despontam como devedores solidários, a responder, cada qual, pela integralidade da condenação.

Não obstante, ao desprover o recurso de agravo de instrumento interposto pelo magistrado agravante, a turma julgadora, como se extrai do respectivo v. acórdão, simplesmente, em dois únicos e lacônicos parágrafos, asseverou que:

“(…) Em que pese as alegações dos patronos do agravante, com a devida vênia, entende-se ser caso de manutenção da decisão agravada, pois, como se sabe, o cumprimento de sentença que tem por objeto condenação de indenização tem a finalidade de fazer com que o exequente receba aquilo que lhe é devido, ou seja, que se encontra previsto no título judicial.

No caso, conforme constou das decisões condenatórias replicadas a f. 04/05 (do agravo), a condenação se deu de forma individual, e não solidária….”

Ora, em primeiro lugar — repita-se —, a solidariedade decorre da lei ou da vontade das partes. Isso significa que decisão judicial não pode desfazer a obrigação solidária! É dizer: a existência ou não de solidariedade não fica ao sabor do julgador!

Saliente-se, por outro lado, que o artigo 489, parágrafo 1º, inciso IV, do Código de Processo Civil, dispõe que não será considerada fundamentada a decisão que:

“IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.”

Assim, fica claro que o citado acórdão deixou de enfrentar — até porque nenhuma alusão fez — a regra acima citada do artigo 942 do Código Civil.

Ademais, o artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI, do mesmo diploma processual, reza, igualmente, que não será considerada fundamentado o ato decisório que:

“VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

Aduza-se que aqui também o acórdão foi proferido como se não existisse o importante precedente expressamente invocado pelo agravante, consubstanciado no julgamento do Recurso Especial nº 1.087.142/MG, em causa exatamente análoga à vertente!

Ora, é notório que o Juiz tem o ônus da argumentação para se afastar de precedentes judiciais provenientes, sobretudo, dos Tribunais Superiores. No entanto, o v. acórdão fez absoluta e eloquente abstração do referido julgado.

E, assim, além de incompleto, a infringir o artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI — acima transcrito —, o acórdão vulnerou ainda o comando do artigo 926 do Código de Processo Civil, que preconiza o dever dos tribunais de uniformizar a jurisprudência e de mantê-la estável, íntegra e coerente.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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