Retrospectiva 2023

A evolução da cannabis medicinal no Brasil

Autor

  • Claudia de Lucca Mano

    é advogada consultora empresarial especialista na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios fundadora da banca DLM e responsável pelo jurídico da associação Farmacann.

20 de dezembro de 2023, 17h25

O ano de 2023 foi de grande evolução para a cannabis medicinal. Principalmente, no entendimento de seus benefícios em diferentes áreas, a se destacar a jurídica e a legislativa nacional, para além da científica, que não para de evidenciar sua importância no tratamento e combate de um número cada vez maior de doenças.

Durante este ano, alguns estados como Acre e São Paulo, aprovaram leis que pretendem garantir acesso à cannabis medicinal de forma gratuita por meio do Sistema Único de Saúde (SUS). Outros 22 estados também aprovaram ou estão debatendo o assunto no Legislativo. É verdade que a aprovação ainda é de certa forma limitada, vide o estado paulista, onde, em princípio, o uso da cannabis é coberto somente para pacientes acometidos por três raras enfermidades — Síndrome de Dravet, Síndrome de Lennox-Gastaut e Esclerose tuberosa. É igualmente verdadeira a necessidade de mais esforço político para de fato a lei ser colocada em prática e de modo mais abrangente, ampliando efetivamente o acesso da população mais carente a esse tipo de produto. Contudo, é visível que 2023 representou um salto de visibilidade do tema na mesa de nossos legisladores.

É importante lembrar que a grande motivação da criação dessas leis é diminuir a enxurrada de ações judiciais de pacientes que através da Justiça conseguem garantir que o Estado custeie seus respectivos tratamentos pelo SUS. Novamente, São Paulo pode ser usado como exemplo ilustrativo. De janeiro a outubro deste ano, o estado paulista gastou R$ 25,6 milhões na compra de remédios à base da cannabis que foram destinados ao atendimento de 843 ações de pacientes.

Em cinco anos, a judicialização contra o Estado por parte de pacientes para a busca de tratamento cresceu 1.000%, o que comprova de fato a necessidade de legislar sobre o tema. A regulamentação do acesso através do SUS poderia acelerar o entendimento do governo sobre a importância do produto medicinal, de forma que pudesse, então, identificar e criar controle maior sobre quais doenças deveriam ser relacionadas para tratamento gratuito à base da cannabis.

Ainda no campo jurídico, outro importante avanço da cannabis em 2023 foi o fato de ter sido pautado no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento decisivo de recurso especial de repercussão geral que avalia a constitucionalidade do artigo 28, da Lei 11.343/2006. A Corte se inclina para definir que não é considerado crime o porte de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal, defendendo a fixação de critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes, especialmente no que se refere as pequenas quantidades de cannabis. O resultado parcial está em cinco votos a um em favor da descriminalização. A votação não foi concluída. Foi paralisada por um pedido de vistas do ministro André Mendonça, que já devolveu o processo. O caso deve voltar à pauta do Supremo no próximo ano.

No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a 3ª Seção Criminal confirmou o entendimento da jurisprudência no sentido da atipicidade da conduta, ou seja, de que não configura crime de tráfico de drogas plantar maconha para extração de óleo medicinal, desde que comprovada a necessidade de tratamento. Com a decisão, pacientes podem ter mais segurança jurídica para não serem perseguidos criminalmente pelo estado em caso de plantio caseiro para extração de óleo medicinal de canabidiol. Foi outro importante avanço para quem depende do produto e ficava refém dos altos valores para importá-lo.

Nessa abordagem do fornecimento da cannabis medicinal, aliás, entra mais uma vitória ao longo do ano: o avanço do essencial envolvimento das farmácias de manipulação que, infelizmente, ainda precisam recorrer ao Judiciário para obterem o direito de manipular medicamentos de cannabis com prescrição médica e até mesmo fazer a simples compra e revenda de produtos registrados na Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) e disponíveis nas drogarias. Segue vigente a proibição estampada na RDC 327/19.

O setor congrega mais de 8 mil empresas que possuem conhecimento técnico para operar com todas as substâncias de controle especial, como as listadas na portaria 344/98 da Anvisa, incluindo o canabidiol e o tetrahidrocanabinol.

Contudo, nos tribunais tem aumentado o reconhecimento da relevância das farmácias de manipulação e seu papel no acesso a tratamentos com grau farmacêutico e qualidade controlada para a população.

Em 2023, diversos despachos foram realizados com desembargadores e juízes de todo o Brasil, além de sustentações orais em segunda instância, com foco em esclarecer ao judiciário que esses estabelecimentos são uma alternativa segura e controlada para fornecimento de produtos manipulados de cannabis.

Embora haja oscilação nas decisões dos tribunais, o trabalho demonstra resultados. Em São Paulo, onde ocorre a maior parte das ações, o TJ-SP somente neste ano decidiu favoravelmente em 37 ações individuais de farmácias de manipulação. Vale lembrar, porém, que liminares concedidas podem ser revogadas, o que causa insegurança jurídica. Mais além, apenas os estabelecimentos que ingressam no judiciário podem obter o direito, o que causa um mercado desuniforme, onde alguns podem operar e outros não, prejudicando não apenas o segmento como também mais um possível canal facilitador de acesso à cannabis medicinal para pacientes que necessitam. A proibição da Anvisa que atinge as farmácias de manipulação é injustificável e representa prejuízo para a sociedade brasileira.

Nesse sentido, aguardada e prometida pela Anvisa ainda para 2023, a revisão da RDC 327 ficou para o próximo período. A sociedade ainda aguarda a publicação do texto de consulta pública, para que se possa avançar na discussão regulatória do tema. A autarquia parece ciente de que é necessário contemplar as farmácias de manipulação no novo texto, que ainda aguarda conclusão da análise de impacto regulatório para poder seguir adiante. Mesmo que não tenha avançado na velocidade desejada, o fato de ser pautado para o debate deve ser visto com algum otimismo.

Por fim, neste ano, a cannabis medicinal foi bastante destacada na área científica e vem colecionando cada vez mais evidências e informações acerca de seus benefícios para um vasto rol de doenças. As pesquisas construíram a ponte para que fossem utilizadas terapeuticamente em pacientes com doenças como dor crônica, epilepsia, espasticidade muscular, sem deixar de citar o autismo, o câncer, para atenuar náuseas e vômitos decorrentes da quimioterapia, dor crônica, entre tantos outros.

Governo, Ministério da Saúde e a sociedade em geral ano após ano vão percebendo como a cannabis medicinal ganha seu espaço no país. Em 2023, importantes passos foram dados. Que no próximo ano a jornada siga bem-sucedida, com vitória nos desafios em curso e nos que certamente surgirão, de modo que cada vez mais pessoas sejam beneficiadas.

Autores

  • é advogada, sócia fundadora da banca De Lucca Mano Consultoria, consultora empresarial atuando desde 1994 na área de vigilância sanitária e assuntos regulatórios.

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