Opinião

Preservando as fronteiras da identificação na Polícia Civil na dicção da Lei nº 14.735/23

Autor

  • Eduardo Santos Arcos

    é especialista em Direito Penal e Processo Penal delegado de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e docente na Academia de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e na Escola de Serviço Público do Espírito Santo.

8 de dezembro de 2023, 19h36

Este artigo examina a diferenciação entre o Departamento de Identificação Civil e os Institutos de Identificação dentro da estrutura da Polícia Civil brasileira, conforme estabelecido pela Lei nº 14.735/23 [1]. Argumenta-se que a legislação vigente preserva a autonomia funcional entre as unidades, refletindo a especificidade de suas atribuições e a importância de manter a integridade da estrutura organizacional.

A identificação de indivíduos é um aspecto fundamental para a administração da justiça e a manutenção da ordem pública. No entanto, mostram-se imperiosas algumas distinções quanto ao sentido e abrangência de determinados institutos, a fim de afastar interpretações ambíguas, superficiais, que podem desencadear um complexo desarranjo na integridade e estrutura organizacional de instituições.

Valendo-nos dos ensinamentos de França [2], para quem a identificação constitui um processo pelo qual se determina a identidade de uma pessoa ou de uma coisa, ou um conjunto de diligências cuja finalidade é levantar uma identidade, pode-se distinguir a identificação médico-legal da chamada pelo próprio autor de identificação judiciária ou policial.

Para França [3], a identificação consiste em uma série de métodos científicos ou abordagens técnicas específicas utilizadas para estabelecer a identidade de uma pessoa, tratando-se de um processo médico-legal que tem como objetivo confirmar, através de elementos antropológicos ou antropométricos, a individualidade de uma pessoa, assegurando que ela é de fato quem se supõe ser e não outra pessoa.

Na identificação médico-legal, exigem-se, além dos conhecimentos e técnicas médico-legais, a compreensão das ciências acessórias, razão pela qual sempre deverá ser realizada por legistas. A identificação médico-legal pode ser efetuada quanto a espécie, raça, sexo, idade, estatura, sinais individuais, dentre outros critérios apontados pela medicina legal, todos de ordem técnico-científica.

A identificação judiciária ou policial, por sua vez, segundo França[4] “independe de conhecimentos médicos, e sua fundamentação reside, sobretudo, no uso de dados antropométricos e antropológicos para a identidade civil e caracterização dos criminosos, quer primários, quer reincidentes”.

Feitas essas considerações iniciais, é possível então abordar com maior tecnicismo as distinções propostas pela Lei nº 14.735/23, que institui a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, dispõe sobre suas normas gerais de funcionamento, estabelece a estrutura organizacional da Polícia Civil e dá outras providências.

Este artigo propõe uma análise detalhada da legislação, destacando a importância da separação entre as unidades de execução e as unidades técnico-científicas. A Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, Lei nº 14.735/23, delineia as funções específicas do Departamento de Identificação Civil e dos Institutos de Identificação, conferindo tratamento diverso às unidades, não havendo, portanto, significado e, consequentemente, atribuições unívocas.

O Departamento de Identificação Civil, previsto no artigo 12, IV da Lei nº 14.735/23[5] (LONPC), está elencado entre as unidades de execução da Polícia Civil, previsto na seção VI do capítulo III da referida lei. Por sua vez, os institutos de identificação, previstos no artigo 15 da LONPC[6], constituem unidades técnico-científicas, dispostos na seção VIII do capítulo III do mesmo ato normativo. Caso quisesse o legislador federal dar tratamento idêntico às unidades, não os teria elencado em seções distintas, com nomes diversos e, consequentemente, atribuições e tratamento jurídico distinto.

O Departamento de Identificação Civil é unidade essencial à atividade da Polícia Civil, ao qual cabe a emissão e o controle de documentos oficiais de identificação civil, a gestão de dados relacionados a registros fotográficos e de sinais característicos corporais, coleta de impressão digital, palmar e plantar, boletim de vida pregressa, formulários de risco de vida e outros documentos necessários ao arquivo e à documentação de informações de relevância para a apuração, respeitada a preservação da intimidade, da vida privada e da honra das pessoas cadastradas. São, portanto, unidades de execução, que operam aquilo que tratamos por identificação judiciária ou policial que, como assinalado por França, independe de conhecimentos médicos.

Os institutos de identificação, por sua vez, são responsáveis pela identificação médico-legal, instituto afeto à antropologia forense[7], uma das áreas de interesse da medicina legal, cuja atribuição, por consequência, recai às unidades técnico-científicas, individualizadas pela LONPC nos institutos de identificação.

Vale destacar que a própria LONPC, nos §§4º e 5º do artigo 12, considerando a relevância da identificação judiciária para as atividades da Polícia Civil, previu que o Departamento de Identificação Civil deve ser coordenado por policial civil designado pelo delegado-geral de Polícia Civil dentre os que detenham habilitação específica e sejam da classe mais elevada, além de garantir que os bancos de dados oriundos das atividades de identificação civil, criminal e funcional das polícias civis são de responsabilidade dessas.

No entanto, um ponto da LONPC que vem causando divergências interpretativas que só se justificam em virtude de uma leitura açodada da legislação, diz respeito à previsão contida no artigo 15, que dispõe no sentido do Instituto de Criminalística, o Instituto de Medicina Legal e o Instituto de Identificação constituírem unidades técnico-científicas da Polícia Civil, nos casos em que o órgão central de perícia oficial de natureza criminal estiver integrado em sua estrutura.

O que emerge do artigo 15 consiste em um tratamento de equalização em relação às Polícias Civis que ainda possuam em sua estrutura o órgão central de perícia oficial. Esclarece que, nesse caso, o Instituto de Criminalística, o Instituto de Medicina Legal e o Instituto de Identificação constituirão unidades técnico-científicas da Polícia Civil. Por outro lado, quando o órgão central de perícia oficial não estiver abrangido na estrutura organizacional da Polícia Civil, constituindo órgão autônomo, essas unidades serão partes integrantes da chamada Polícia Técnico-Científica.

Levantou-se, portanto, questionamento no sentido do Departamento de Identificação Civil, na hipótese de o órgão de perícia oficial ser dotado de autonomia, constituir unidade da Polícia Técnico-Científica. Essa interpretação, inclusive, reverberou em alguns projetos de lei, que regulamentam a estrutura da Polícia Técnico-Científica, como é o caso do PLC nº 57/2023 ES[8]. No entanto essa interpretação não encontra qualquer respaldo na Lei nº 14.735/23. Prevê o PLC nº 57/2023 ES:

Art. 50. Compete ao Instituto de Identificação, órgão de execução técnica, científica e funcional:

(…)

II – gerir e responsabilizar-se pelos bancos de dados e sistemas de biometrias múltiplas, bem como emitir documentos pertinentes;

III – realizar a certificação biométrica de documentos de identificação, e promover a cidadania e a valorização dos Direitos Humanos, com atendimento especial e humanitário na área da identificação: aos vulneráveis, dentre outros, às mulheres, às crianças, aos enfermos, aos indigentes, às pessoas com autismo e aos mais necessitados;

(…)

Art. 51. Compete ao Departamento de Gestão de Identificação Civil:

I – gerenciar, coordenar, controlar, monitorar, acompanhar, orientar e fiscalizar as atividades dos postos de identificação civil do estado do Espírito Santo;

II – coordenar as ações relacionadas à inspeção, à análise, à conferência de documentos e de dados biográficos e biométricos de identificação civil, para emissão dos documentos de identificação, a fim de assegurar a unicidade da identidade, evitando erros, duplicidades, fraudes e falsificações;

III – avaliar as instalações dos locais relacionados às atividades de cadastro e emissão da carteira de identidade, organizando seu devido funcionamento;

IV – promover a realização de treinamentos, capacitações e reciclagens para pessoas subordinadas ao serviço de emissão de documento de identificação;

V – coordenar as ações que envolvam aperfeiçoamento, modificação ou alteração dos sistemas informatizados relacionados à identificação civil do estado do Espírito Santo;

VI – planejar e executar ações para a melhoria do serviço de emissão de registro geral de identidade civil;

VII – receber demandas dos postos de identificação relacionadas a suspeitas de fraude e promover a devida apuração de acordo com métodos periciais;

VIII – expedir normas e procedimentos relacionados à atividade de identificação civil do estado do Espírito Santo;

IX – atuar junto a prefeituras e outros entes, conforme critérios de conveniência e oportunidade do Departamento, para a formalização de acordos de cooperação técnica relacionados ao serviço de emissão de registro geral de identidade civil, sob a direção do Instituto de Identificação;

X – promover a constante atualização e modernização do serviço de identificação civil;

XI – fiscalizar a observância aos padrões de qualidade de imagens e dados biométricos coletados nas unidades vinculadas ao Instituto de Identificação ou que com ele façam parceria, impedindo que padrões biométricos em desacordo com as diretrizes técnicas do Instituto ingressem no banco de dados de seus sistemas;

XII – gerenciar a qualidade de imagens e dados biométricos a integrarem o banco de dados do Instituto de Identificação;

XIII – zelar pelas informações biométricas pertencentes ao banco de dados do Instituto de Identificação, objetivando alimentá-lo de forma tecnicamente correta, a fim de não permitir comprometer as análises periciais do Instituto e de seus departamentos;

XIV – estabelecer e gerir diretrizes procedimentais relacionadas aos Sistemas utilizados no Instituto de Identificação para inserção e alimentação dos bancos de dados de identificação civil;

XV – garantir a integridade e a organização dos arquivos físicos de registros civis do Instituto de Identificação;

XVI – realizar consulta, busca e disponibilização de prontuários civis e individuais datiloscópicas de acordo com a demanda dos demais departamentos e órgãos oficiais;

XVII – controlar a entrada e saída de prontuários civis e individuais datiloscópicas dos respectivos arquivos físicos;

XVIII – proceder à análise e verificação de conformidade dos indicadores internos de suas seções; e

XIX – exercer outras atribuições correlatas e complementares à área de atuação.

As funções afetas ao controle e execução dos processos e as perícias de identificação civil, funcional, criminal, de biometrias na área da identificação humana dizem respeito à identificação médico-legal, sendo atribuições do Instituto de Identificação que, nos termos do artigo 15 da LONPC, constitui unidade técnico-científica.

No entanto, qualquer previsão constante do referido projeto que diga respeito à gestão de bancos de dados oriundos das atividades de identificação civil, criminal e funcional das polícias civis, tais como, apenas exemplificativamente, “estabelecer e gerir diretrizes procedimentais relacionadas aos Sistemas utilizados no Instituto de Identificação para inserção e alimentação dos bancos de dados de identificação civil; garantir a integridade e a organização dos arquivos físicos de registros civis do Instituto de Identificação; realizar consulta, busca e disponibilização de prontuários civis e individuais datiloscópicas de acordo com a demanda dos demais departamentos e órgãos oficiais”, viola frontalmente a Lei nº 14.735/23, sendo eivada de ilegalidade.

Como já apontamos, o Departamento de Identificação Civil, previsto no artigo 12, IV da LONPC, está elencado entre as unidades de execução da Polícia Civil, previsto na seção VI do capítulo III da referida lei, ao qual recaem as atribuições de identificação de polícia judiciária. Desse modo, a ressalva constante do caput do artigo 15 da LONPC, diz respeito tão-somente às unidades técnico-científicas, o que inclui os Institutos de Identificação, não se estendendo, no entanto, ao Departamento de Identificação Civil, unidade de execução da estrutura da Polícia Civil.


[1] V. artigos 12 e 15 da Lei 14.735/2023.

[2] FRANÇA, Genivaldo Veloso de. Medicina Legal. 9 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. p. 48.

[3] Ibid.

[4] Ibid.

[5] Art. 12. Constituem unidades de execução da polícia civil, sem prejuízo de outras definidas na lei do respectivo ente federativo:

I – unidades policiais circunscricionais, distritais ou regionais;

II – unidades policiais especializadas;

III – Coordenadoria de Recursos e Operações Especiais; e

IV – Departamento de Identificação Civil.

[6] Art. 15. Constituem unidades técnico-científicas da polícia civil as unidades responsáveis pela perícia oficial criminal, nos casos em que o órgão central de perícia oficial de natureza criminal estiver integrado em sua estrutura, cujos chefes devem ser designados pelo Delegado-Geral de Polícia Civil, dentre outras:

I – Instituto de Criminalística;

II – Instituto de Medicina Legal; e

III – Instituto de Identificação.

[7] HERCULES, Hygino de C. Medicina Legal: texto e atlas. Rio de Janeiro: Atheneu, 2011. 

[8] ESPÍRITO SANTO. Assembleia Legislativa. Projeto de Lei Complementar nº 57, de 30/11/2023. Institui e organiza a Polícia Científica do Estado do Espírito Santo – PCIES, órgão da Administração Direta integrante da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social – SESP, prevista no Inciso V do artigo 126 da Constituição do Estado. Vitória: Assembleia Legislativa, 2023. Disponível em: https://www3.al.es.gov.br/spl/processo.aspx?id=399607&tipo=4. Acesso em: 05/12/2023.

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  • é especialista em Direito Penal e Processo Penal, delegado de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e docente na Academia de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo e na Escola de Serviço Público do Espírito Santo.

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