Opinião

Princípios fundamentais à administração policial na Lei Orgânica das Polícias Civis

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

13 de fevereiro de 2024, 6h32

A Lei federal nº 14.735, de 23 de novembro de 2023, estabeleceu a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, estipulou as diretrizes gerais para seu funcionamento. Com o objetivo de organizar os princípios fundamentais da instituição descritos no artigo 4º, podemos categorizá-los em duas áreas: aqueles relacionados à adequada condução de investigações criminais e aqueles que dizem respeito à eficaz administração e gestão das atividades policiais.

Os princípios relacionados com a devida investigação criminal já foram abordados no artigo “Princípios fundamentais da investigação: análise da Lei Orgânica das Polícias Civis” (Siena, 2024). Neste artigo, abordaremos os princípios que se referem à boa administração e gestão policial, fundamentais para assegurar a eficiência, responsabilidade e excelência nas operações das agências de aplicação da lei.

Eficácia, responsabilidade e qualidade das obrigações policiais
Inicialmente, destacaremos o princípio de Peel, que enfatiza a eficácia policial através da redução da criminalidade e da desordem, ressaltando a importância da prevenção, do respeito aos direitos individuais, da colaboração com a comunidade e do uso proporcional da força (Williams, 2003).

A inovação e modernização são igualmente essenciais, abraçando tecnologias e práticas atualizadas para otimizar o trabalho policial. Além disso, os cinco princípios de Alsabrook et al (2001) enfatizam a qualidade na prestação de serviços, a medição de desempenho, a implementação de sistemas de recompensas, a consideração das estruturas de custo e a satisfação do cidadão como pilares para atingir a excelência organizacional na administração policial.

Esses princípios, juntos, promovem a eficácia, a responsabilidade e a qualidade no cumprimento das obrigações policiais, beneficiando a comunidade e mantendo a integridade das agências policiais. Com efeito, imbuído desse espírito, o legislador estabeleceu os princípios que devem reger a Administração Policial Civil.

Coordenação e subordinação
A hierarquia e disciplina (artigo 4º, inciso III, da LONPC) são pilares fundamentais da Lei Orgânica das Polícias Civis, estabelecendo uma estrutura organizacional em que há uma clara relação de coordenação e subordinação entre os órgãos da Administração Pública. Nesse contexto, cada órgão possui atribuições definidas por lei, o que permite a revisão de atos dos subordinados, bem como a delegação e avocação de atribuições quando necessário. Além disso, esse princípio implica que os subordinados têm o dever de obediência em relação às diretrizes e ordens superiores.

O artigo 33, § 1º, da LONPC estabelece a importância da hierarquia e disciplina como valores fundamentais para a integração e otimização das atribuições dos cargos e competências organizacionais das polícias civis, com o objetivo de garantir a unidade da investigação criminal. Esse princípio está diretamente relacionado ao propósito de manter uma estrutura organizacional coesa e eficiente, na qual cada policial civil entende sua posição e responsabilidades dentro da hierarquia, contribuindo para um trabalho conjunto mais eficaz.

Além disso, o § 2º enfatiza que as polícias civis devem tomar medidas para promover a harmonia e o respeito entre todos os policiais, independentemente de suas classes e categorias. Isso inclui a prevenção e repressão de condutas ofensivas, insubordinação legal e qualquer forma de assédio. Essa disposição está alinhada com a necessidade de manter um ambiente de trabalho saudável e profissional, no qual os valores de hierarquia e disciplina são aplicados com equidade, contribuindo para o bom funcionamento das polícias civis e a qualidade das investigações criminais.

Aprovação pública
O princípio da participação e interação comunitária (artigo 4º, inciso IV, da LONPC) possui forte inspiração nos postulados de Robert Peel, para quem a aprovação pública é fundamental para o poder da polícia cumprir suas funções e deveres (Williams, 2003).

Isso depende da aceitação pública de sua existência, ações e comportamento, bem como de sua capacidade de manter o respeito público. A cooperação voluntária do público na tarefa de assegurar a observância das leis também é destacada como um elemento crucial.

Segundo Robert Peel, a representatividade é um princípio que destaca que a polícia deve manter um relacionamento que reflita a ideia de que a polícia é parte do público e o público é parte da polícia (Williams, 2003). A polícia é composta por membros do público remunerados para dedicar-se em tempo integral aos deveres que beneficiam a comunidade.

Soluções consensuais
O princípio resolução pacífica de conflitos (artigo 4º, inciso V, da LONPC) tem se tornado cada vez mais relevante na atuação das Polícias Civis no Brasil. Essas instituições, que desempenham um papel fundamental na investigação de crimes e na manutenção da ordem pública, estão expandindo suas abordagens para incluir métodos alternativos de resolução de disputas, como mediação e conciliação.

No contexto das Polícias Civis, a resolução pacífica de conflitos se torna aplicável principalmente em situações envolvendo infrações penais de menor potencial ofensivo, que incluem contravenções penais e crimes com penas máximas não superior a dois anos.

Em vez de recorrer imediatamente à formalização de processos criminais, as Polícias Civis estão explorando a possibilidade de usar métodos resolutivos para alcançar acordos entre as partes envolvidas, ou seja, entre autores e vítimas. Em vários estados brasileiros, como São Paulo, Minas Gerais, Rondônia, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, foram implementados programas e projetos que promovem a resolução pacífica de conflitos pelas Polícias Civis. Essas iniciativas geralmente envolvem a criação de núcleos ou unidades especializadas, onde delegados e outros agentes policiais são treinados para atuar como mediadores e conciliadores.

Ética e respeito em relação aos direitos fundamentais
O princípio da lealdade e ética (artigo 4º, inciso VI, da LONPC) é a base para manter a qualidade nos serviços prestados, garantindo que as ações policiais sejam realizadas de maneira justa, legal e responsável. Além disso, a lealdade e ética são fundamentais na satisfação do cidadão, uma vez que a confiança da comunidade na polícia está intrinsecamente ligada à conduta ética e à lealdade demonstrada pelos policiais. Na investigação criminal é um princípio de natureza moral, que orienta a conduta dos agentes encarregados da investigação e obtenção de provas. Esse princípio exige que a investigação seja conduzida de maneira ética e respeitosa em relação aos direitos fundamentais das pessoas, principalmente no que se refere à dignidade da pessoa humana.

Autotutela
O princípio do controle de legalidade dos atos policiais civis (artigo 4º, inciso IX, da LONPC) está intrinsecamente relacionado ao conceito de controle do ato administrativo. O princípio da autotutela é um conceito que estabelece que a administração pública tem o poder de controlar os próprios atos, anulando-os quando são ilegais ou revogando-os quando se tornam inconvenientes ou inoportunos. Isso significa que a administração não precisa recorrer ao Poder Judiciário para corrigir seus próprios erros ou tomar decisões que considera adequadas.

Esse princípio é respaldado por súmulas do Supremo Tribunal Federal (STF), como a Súmula 346, que afirma que a administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos, e a Súmula 473, que permitem que a administração anule atos ilegais ou os revogue por conveniência ou oportunidade, respeitando os direitos adquiridos e sujeitando-se à apreciação judicial em todos os casos.

Nesse sentido, o artigo 6º inciso VII, da LONPC estabelece como competência da polícia civil “realizar inspeções, correições e demais atos de controle interno, em caráter ordinário e extraordinário”. Cabe à Corregedoria-Geral de Polícia Civil praticar esses atos de controle interno (artigo 10, da LONPC). A autotutela envolve dois aspectos da atuação administrativa-policial: o controle de legalidade, que implica anular atos ilegais, e o controle de mérito, que envolve a revisão da conveniência e oportunidade de manter ou desfazer atos, desde que não esbarre no princípio livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia (artigo 4º, inciso VIII, da LONPC).

Uso da força como último recurso
O princípio do uso diferenciado da força para preservação da vida, redução do sofrimento e redução de danos (artigo 4º, inciso X, da LONPC) já era suscitado por Robert Peel, para quem o uso da força era encarado como último recurso (Williams, 2003). A lei pátria está de acordo com os chamados “Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo por Funcionários de Aplicação da Lei”, adotados por consenso, em 7 de setembro de 1990, durante o Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Infratores, em Havana, Cuba: necessidade, proporcionalidade e precaução.

Quanto mais cooperação pública puder ser assegurada, menor será a necessidade de recorrer à força física e à compulsão para alcançar os objetivos da polícia. A polícia deve usar a força física apenas quando persuasão, conselhos e advertências não forem suficientes para obter a cooperação pública necessária para fazer cumprir a lei ou restaurar a ordem. O uso mínimo da força é uma extensão desse princípio. Quando necessário, a polícia deve usar apenas a quantidade mínima de força física necessária em qualquer ocasião particular para alcançar um objetivo policial específico, evitando o uso excessivo ou desnecessário da força.

Serviços ininterruptos
O princípio da continuidade investigativa criminal (artigo 4º, inciso XI, da LONPC) é uma faceta do princípio da continuidade dos serviços públicos, que por sua vez se revela um conceito importante no contexto da prestação de serviços de segurança pública, destacando a necessidade de que esses serviços sejam oferecidos de forma ininterrupta, sem interrupções. Esse princípio é fundamental para manter a ordem pública, garantir a segurança das pessoas e proteger o patrimônio.

Valorização da corporação e unidade de doutrina
Segundo o princípio da política de gestão direcionada à proteção e à valorização dos seus integrantes (artigo 4º, inciso XIII, da LONPC), nos termos de Sylvester (1910), os policiais devem desfrutar de estabilidade em seus cargos, condicionada ao bom comportamento, enquanto também defende a flexibilidade para recompensar o mérito e punir a ineficiência. Isso inclui a garantia de salários justos e condições de trabalho adequadas, bem como a abordagem equitativa de questões como transferências, multas e remoções.

O princípio da unidade de doutrina e uniformidade de procedimentos (artigo 4º, inciso XIV, da LONPC) é um desdobramento do princípio da unidade na administração pública, que por sua vez está relacionado com a coerência e a consistência das ações governamentais em todas as suas esferas e instâncias. Ele implica que a administração pública deve seguir os mesmos princípios orientadores e manter a uniformidade de procedimentos em suas atividades, garantindo uma atuação integrada e harmoniosa em toda a organização estatal.

O princípio da unidade de doutrina e a uniformidade de procedimentos está alinhado com a ideia de coesão e consistência nas ações policiais civis. Tem como objetivo garantir que as políticas, diretrizes e decisões tomadas pela superior Administração Policial sejam consistentes e coerentes em toda a instituição.

Uniformidade de nomenclatura
O princípio da identidade de nomenclatura para unidades policiais, serviços e cargos de igual natureza (artigo 4º, inciso XVIII, da LONPC) desempenha um papel crucial na organização e na estruturação das unidades policiais, serviços e cargos de igual natureza dentro das polícias civis. Esse princípio visa criar uma consistência e uniformidade na forma como essas entidades são nomeadas, evitando confusões e garantindo uma clara compreensão de suas funções e responsabilidades.

Além disso, o artigo 5º, inciso XIV, da LONPC estabelece a diretriz da padronização, que vai além da nomenclatura e abrange diversos aspectos, como doutrina, procedimentos operacionais, comunicação social e identidade visual e funcional. A padronização desses elementos é essencial para promover a coesão e a eficiência dentro da polícia civil, permitindo que todos os seus membros estejam alinhados em termos de abordagens, protocolos de ação e comunicação, o que, por sua vez, contribui para uma atuação mais efetiva e coerente em suas atividades.

Transição de liderança e continuidade dos serviços
O princípio da transição da gestão da Delegacia-Geral da Polícia Civil, de forma a não prejudicar a continuidade dos serviços (artigo 4º, inciso XIX, da LONPC) é de vital importância para garantir uma administração contínua e eficiente dentro da instituição policial. Este princípio estabelece que a transição de liderança na Delegacia-Geral deve ser realizada de tal forma que não prejudique a continuidade dos serviços prestados pela Polícia Civil.

O artigo 8º da LONPC especifica que a Polícia Civil é liderada pelo Delegado-Geral de Polícia Civil, que é nomeado pelo governador e escolhido entre os delegados de polícia da classe mais elevada do cargo. Além disso, o parágrafo único desse artigo estabelece a obrigação do Delegado-Geral em apresentar um planejamento estratégico de gestão nos primeiros 30 dias após sua nomeação.

Esse planejamento estratégico deve conter metas quantitativas e qualitativas de produtividade, medidas para otimização e eficiência, diagnóstico de necessidades de recursos humanos e materiais, programas de capacitação do efetivo e propostas de estrutura organizacional. Essas diretrizes visam assegurar que a gestão da Delegacia-Geral seja orientada para o aprimoramento das atividades policiais, para o combate à criminalidade e para a manutenção da eficácia da instituição.

Em conclusão, a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, delineou princípios essenciais à boa gestão e administração policial. Esses princípios, interligados, promovem a eficiência, a responsabilidade e a qualidade nas operações policiais, em benefício da comunidade e na preservação da integridade das agências policiais. É essencial que a aplicação destes princípios seja contínua e rigorosa para manter a confiança do público e assegurar a excelência na administração policial, contribuindo para um sistema de justiça mais justo e eficaz em nosso país.

 

Referências:

Alsabrook, C. L., Aryani, G. A., & Garrett, T. D. (2001). Five Principles of Organizational Excellence in Police Management. Law and Order, 49(5), 109-114.

Choukr, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2001.

Siena David Pimentel Barbosa de. Princípios fundamentais da investigação: análise da Lei Orgânica das Polícias Civis. Consultor Jurídico, 3 de janeiro de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-03/principios-fundamentais-da-investigacao-analise-da-lei-organica-das-policias-civis/. Acesso em: 28 jan 2024.

Sylvester, R. (1910). Principles of Police Administration. Journal of Criminal Law and Criminology, 1(3).

UNODC. (s.d.). The General Principles of Use of Force in Law Enforcement. Disponível em: de https://www.unodc.org/e4j/zh/crime-prevention-criminal-justice/module-4/key-issues/3–the-general-principles-of-use-of-force-in-law-enforcement.html. Acesso em: 1 nov. 2023.

Williams, K. L. (2003). Peel’s principles and their acceptance by American police: Ending 175 years of reinvention. The Police Journal, 76(2), 97-120.

 

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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