Paradoxo da Corte

Possibilidade de cessão de crédito derivado de astreintes

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

8 de dezembro de 2023, 8h00

Como é sabido, a cessão de crédito consubstancia-se num negócio jurídico pelo qual o credor de uma obrigação fungível, denominado cedente, transfere a um terceiro, chamado cessionário, sua posição ativa na relação obrigacional, independentemente da autorização do devedor.

Dispõem, a propósito, o artigo 286 e seu parágrafo único do Código Civil que: “o credor pode ceder o seu crédito, se a isso não se opuser a natureza da obrigação ou a lei. Parágrafo único. É nulo todo e qualquer acordo, contrato ou estipulação de qualquer natureza que limite, restrinja ou proíba a livre cessão de um crédito legalmente constituído“.

Spacca
José Rogério Tucci

Na lição sempre precisa de Pontes de Miranda, a cessão de crédito é negócio jurídico bilateral de transmissão de crédito entre o credor e outrem (Tratado de direito privado, t. 23, 2ª ed., Rio de Janeiro, Borsói, 1958, § 2.822, pág. 306).

Excepcionando-se algumas situações particulares, como por exemplo, a de créditos penhorados ou derivados de acidente do trabalho, a cessão é amplamente admitida na praxe jurídica, não havendo dúvida de que quem é titular de direito real ou pessoal cessível tem a faculdade de cedê-lo.

A doutrina controverte sobre a natureza jurídica da multa imposta, como medida coativa de natureza patrimonial, que passou a ter reconhecida relevância na sistemática processual brasileira, sobretudo na esfera das obrigações de fazer infungíveis, a ponto de o Código de Processo Civil vigente lhe dedicar regras específicas, procurando eliminar as principais dúvidas suscitadas sob a égide do diploma revogado.

Destaca-se, em primeiro lugar, a determinação, expressa nos artigos 536 e 537 do Código de Processo Civil, de que a multa pode ser imposta independentemente de pedido da parte. E, assim também, o juiz encontra-se autorizado a agravá-la, quando considerada insuficiente para o fim a que se destina, reduzi-la ou, ainda, suprimi-la, na hipótese de o devedor ter adimplido parte da obrigação ou ter apresentado justificativa plausível para o seu descumprimento (artigo 537, parágrafo 1º, incisos I e II).

O juiz detém ainda o poder de revogar a incidência da multa quando se tornar impossível atender a ordem judicial. Essa, com efeito, é a orientação dominante na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, consoante se infere, por exemplo, de julgamento da 4ª Turma, no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial nº 431.294/RS, da relatoria do ministro Raul Araújo, ao patentear que: “é cabível a aplicação de astreintes como instrumento de coerção ao cumprimento de decisões judiciais que imponham obrigação de fazer ou não fazer. No entanto, deve ser afastada a incidência da referida multa na hipótese de impossibilidade de se alcançar a finalidade da ordem judicial”.

Ademais, nessa linha de raciocínio, a natureza jurídica da multa não pode conduzir a um extremo injustificado, jamais podendo levar o seu beneficiário a enriquecer de forma indevida. A multa tem de atender à sua finalidade, que é a de obter do próprio executado, um específico comportamento ou uma abstenção.

Tal sanção, em princípio, não tem caráter indenizatório ou ressarcitório. Trata-se exclusivamente de técnica impositiva do cumprimento de decisões judiciais de modo mais célere e adequado. Possui, pois, conotação coercitiva, objetivando atuação ou abstenção específica do sujeito processual que se encontra obrigado a um fazer ou não fazer.

Saliente-se que não cumprida a obrigação, as astreintes então fixadas passam a ter natureza indenizatória e, destarte, passam a integrar o patrimônio do credor.

Considerando esta situação, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.999.671/PR, estabeleceu que o credor pode ceder o crédito decorrente de astreintes a terceiro, “se a isso não se opuserem a natureza da obrigação, a lei ou a convenção com o devedor”.

Estribando-se nessa premissa, com voto condutor do ministro Marco Aurélio Bellizze, restou confirmado o entendimento secundado pelo acórdão recorrido, proveniente do Tribunal de Justiça do Paraná, que permitiu a cessão de crédito a uma empresa durante a fase de cumprimento de sentença. A empresa assumiu o polo ativo da ação movida pelos credores, com o objetivo de cobrar exclusivamente o valor decorrente da multa diária em razão do descumprimento da obrigação de fazer imposta na sentença.

Irresignada, a devedora interpôs recurso especial, alegando violação ao artigo 286 do Código Civil, para sustentar a tese de que o crédito decorrente das astreintes não poderia ser cedido, dada a sua natureza acessória e personalíssima, razão pela qual a cessão seria nula.

Não obstante, segundo o ministro relator Marco Aurélio Bellizze, o crédito decorrente da multa cominatória integra o patrimônio do credor a partir do momento no qual a determinação judicial é descumprida, podendo ser objeto de cessão quando constatada tal situação.

Extrai-se, com efeito, do respectivo acórdão que:

“As astreintes possuem traços de direito material e de direito processual, pois o seu valor se reverterá ao titular do direito postulado na ação e, exatamente por isso, sua sorte está atrelada ao sucesso da demanda na qual se busca a obrigação principal ou o direito material posto em juízo, incorporando-se à sua esfera de disponibilidade como um direito patrimonial, sendo evidente o seu caráter creditório (…).

A partir do momento em que a multa incide em razão do inadimplemento voluntário do devedor, passa a ter natureza indenizatória, deixando de ser uma obrigação acessória para se tornar uma prestação independente, e se incorpora à esfera de disponibilidade do credor como direito patrimonial que é, podendo, inclusive, ser objeto de cessão de crédito.”

Constata-se, a propósito, que o regime da multa cominatória está intimamente ligado à procedência do pedido do autor. Todavia, verificada a sua incidência, há uma certa desvinculação do direito material ensejador da prestação e o direito ao crédito proveniente das astreintes, não havendo, portanto, que se equipará-la a uma prestação acessória ou personalíssima, justamente porque após a sua incidência passa a ter natureza indenizatória, constituindo uma prestação autônoma e, consequentemente, passa a constituir direito disponível do seu titular.

Destacou, outrossim, o voto condutor da lavra do ministro Marco Aurélio Bellizze, in verbis:

“Inicialmente este signatário entendeu que sua cessão seria possível apenas depois que sua aplicação for confirmada por sentença, contudo, após o voto-vista apresentado pela ministra Nancy Andrighi, retrocede-se nesse posicionamento para também entender que o crédito decorrente da multa cominatória integra o patrimônio do credor a partir do momento em que a ordem judicial é descumprida, podendo ser objeto de cessão a partir deste fato.

Isso porque o art. 537, § 1º, do CPC/2015, autoriza a execução provisória da multa cominatória mesmo de sua confirmação na sentença de mérito, o que implica afirmar que é exatamente pelo fato de as astreintes integrarem o patrimônio do credor é que se permite a execução provisória.

É de ter-se também presente que são plenamente aplicáveis todas as demais regras atinentes aos institutos da astreintes e da cessão de crédito, isto é, o devedor poderá opor ao cessionário as exceções que lhe competirem, bem como as que, no momento em que veio a ter conhecimento da cessão, tinha contra o cedente (art. 294 do CC).

Aduza-se que na cessão por título oneroso, o cedente, ainda que não se responsabilize, fica responsável ao cessionário pela existência do crédito ao tempo em que lhe cedeu, e a mesma responsabilidade lhe cabe nas cessões por título gratuito, se tiver procedido de má-fé (artigo 295 do CC), assim como o cedente não responde pela solvência do devedor, salvo estipulação em contrário (artigo 296 do CC).”

 

Importa também frisar que, como acima já mencionado, a incidência da multa, de seu valor e até mesmo de sua respectiva periodicidade, a teor do parágrafo único do artigo 527 do Código de Processo Civil, pode ser modificada a qualquer tempo durante a tramitação do processo. Nesta hipótese, a eventual alteração do crédito cedido em nada afeta o devedor, mas apenas as partes envolvidas na cessão do crédito, de acordo com as regras do Código Civil.

Isso significa que a cessão pode inclusive ser efetivada antes da definitiva estabilização das astreintes, sujeitando-se o cessionário do crédito a todas as vicissitudes processuais que poderão ocorrer nos autos do cumprimento de sentença.

Autores

  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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