Opinião

A CVM e a insustentável leveza de suas finanças sustentáveis

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5 de dezembro de 2023, 20h36

“Menos Keynes, mais Friedman!” foi a frase que ouvimos da Superintendência de Desenvolvimento de Mercado (SDM) da Comissão de Valores Mobiliários, em uma recente conversa sobre o Plano de Finanças Sustentáveis dessa autarquia, com o propósito de discutir duas das 17 “iniciativas sustentáveis” que integram o plano de ação da CVM para o biênio 2023/24. São elas: a regulamentação dos Fiagro (Fundos de Investimento das Cadeias Produtivas do Agronegócio) e a regulamentação dos ProRecicle (Fundos de Investimentos para Projetos de Reciclagem).

Na mesma conversa, a SDM publicava a Consulta Pública SDM 03/2023 para debater a minuta de anexo normativo à Resolução CVM nº 175/2022, dispondo sobre as regras específicas dos Fiagro. Pela nova regulamentação, os Fiagro estarão habilitados a investir em créditos de carbono, já qualificados pelo Banco Central e pela CVM como “ativos financeiros” que poderão ser utilizados em dação em pagamento para quitar dívidas lastreadas em cédulas de produto rural — verde (CPR-V) — e em certificados de recebíveis do agronegócio — verde (CRA-V).

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Na visão da autarquia, os avanços legais e regulatórios dos mercados voluntário e regulado dos créditos de carbono são fruto de sua obediência à visão neoclássica da economia de mercado, defendida por Milton Friedman e demais economistas da Escola de Chicago. A decisão entre manter uma “floresta de pé” e capturar seus créditos de carbono, ou colocar uma “floresta no chão” para explorar legalmente a extração e o comércio da madeira, estaria pautada, principalmente, na lucratividade e na taxa interna de retorno de cada investimento no curto e médio prazos. E no longo prazo?

“No longo prazo, todos estaremos mortos” é uma frase conhecida do economista John M. Keynes, falecido logo após o final da Segunda Guerra Mundial. Com o advento do aquecimento global, essa frase ganha conotação apocalítica. Keynes e os pós-keynesianos mostram que, em um mundo incerto e desconhecido, os agentes econômicos preferem reter moeda em vez de tomar decisões de gastos. O resultado dessa racionalidade é a insuficiência de demanda efetiva, desemprego e maior concentração de renda.

Se os Fiagro e os créditos de carbono são pautados pela lógica econômica de Friedman, seria fundamental que os ProRecicle e os créditos de reciclagem ou de logística reversa sejam pautados pela lógica econômica de Keynes, para quem a intervenção do Estado é vital para a diminuição do desemprego e para a distribuição de renda.

Em outras palavras, se o maior apelo dos Fiagro está na sustentabilidade ambiental, seria fundamental que os ProRecicle estejam ancorados na sustentabilidade social para promover a emancipação econômica e social dos catadores de rua.

Do contrário, da mesma forma como as comunidades tradicionais, as aldeias indígenas e demais povos das florestas estão sendo alijados dos ganhos econômicos e financeiros dos créditos de carbono, as cooperativas de catadores de materiais recicláveis serão privadas dos ganhos dos créditos de reciclagem. Eles têm de se contentar com as migalhas a elas concedidos pelos demais agentes econômicos que efetivamente lucram com a reciclagem em descumprimento ao protagonismo garantido aos catadores nos “projetos estruturantes” de logística reversa e de economia circular regulamentados pelos decretos nº 11.413/2023 e nº 11.414/2023.

“Menos Friedman, mais Keynes!” é o que advogamos para a regulamentação do ProRecicle, que nesse sentido pode (e deve) ser combinada com estratégias de blended finance patrocinadas pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e pela Caixa Econômica Federal. É fundamental que a CVM evite o “social washing” de investimentos em projetos de reciclagem que não emancipem os catadores. Pois, se existe um risco iminente de médio e longo prazos de sermos todos dizimados pelos efeitos do aquecimento global, risco maior de curtíssimo prazo está na fome e na miséria a que se sujeitam os catadores de materiais recicláveis.

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