Opinião

Conflito de interesses do acionista controlador nos EUA: o fim do entire fairness?

Autor

27 de dezembro de 2023, 13h21

Em um trabalho anterior, discutimos a — até então — provável mudança de entendimento da Comissão de Valores Mobiliários acerca da natureza do conflito de interesses. Desde a elaboração do referido trabalho, por meio de diversos casos, a CVM firmou o entendimento de que o conflito de interesses deve ser averiguado de forma material, sendo analisado, após a deliberação, se o indivíduo privilegiou o interesse pessoal em sacrifício do interesse social; ou seja, o conflito é analisado a posteriori.

Essa abordagem difere do conflito formal, que preza por uma averiguação do conflito a priori. Importante destacar que essa mudança de abordagem se aplica tanto para os casos de conflito de interesses do administrador (artigo 156 da Lei das S.A.) quanto para os casos de conflito de interesses do acionista (artigo 115 da Lei das S.A.).

Divulgação

Enquanto o mercado aguarda um parecer de orientação da CVM sobre o assunto, o Brasil não é o único que está cogitando realizar mudanças em seu regime de conflito de interesses. Como veremos, os Estados Unidos estão analisando promover alterações acerca dos padrões utilizados para averiguar conflitos de interesses em transações com acionistas controladores.

Todavia, antes de abordar o assunto, é necessário contextualizar a situação atual e como chegamos até ela. Como muitos sabem, o Estado de Delaware é o principal polo para a constituição de sociedades empresariais nos EUA. Isso ocorre por uma série de razões históricas e legislativas, mas, hoje, o importante é entender que as cortes de Delaware são altamente especializadas em direito societário e que uma decisão de Delaware impacta as maiores companhias dos EUA.

Dito isso, os acionistas controladores[1] e os administradores de companhias de Delware possuem dois principais deveres fiduciários o: dever de diligência; e dever de lealdade, com seus standards de revisão sendo a Business Judgment Rule[2] (BJR) e o Entire Fairness, respectivamente[3].

A BJR é uma presunção de que os fiduciários atuaram de maneira informada, de boa fé e no melhor interesse da companhia, sendo considerado um padrão revisional menos árduo em que os acusados tendem a sair vitoriosos[4]. Diferentemente, o Entire Fairness é considerado como a mais extenuante análise de Delaware, com os acusados tendo que demonstrar que sua transação foi realizada a um preço justo (fair price) e é fruto de um processo justo (fair dealing). Como se pode ver, além de inverter o ônus da prova para os acusados, as dimensões do Entire Fairness são amplas e ambíguas, causando bastante insegurança, o que consequentemente incentiva os fiduciários a evitarem esse tipo de análise a qualquer custo.

Eis que chegamos à questão principal: uma acusação típica de violação ao dever de lealdade seria uma situação em que o acionista controlador promove uma transação em que ele está em ambos os polos da transação. Esse tipo de situação é denominada self-dealing, sendo essa uma figura que se assemelha muito ao conflito de interesses brasileiro. De forma illustrativa, um caso que poderia eventualmente gerar uma acusação de dever de lealdade e uma análise sob a ótica do Entire Fairness seria uma transação entre uma subsidiária e sua controladora.

Levando isso em consideração, a princípio, transações em que o acionista controlador se encontra em ambos os polos ou recebe um benefício particular sempre estiveram sujeitas ao Entire Fairness. Isso é uma das licões extraídas do caso Kahn x Lynch (Suprema Corte de Delaware, 1995). Além disso, tal caso determinou que, se a operação com o acionista controlador tiver sido aprovada por um comitê independente especial ou pela maioria dos acionistas não controladores, o ônus de provar que a transação foi entirely fair seria dos autores, e não dos acusados. De toda forma, mesmo com essa inversão de ônus da prova, a princípio, não havia como fugir completamente do Entire Fairness.

Isso mudou em 2014 com o caso de Kahn x M&F Worldwide Corp. (MFW), também julgado pela Suprema Corte de Delaware. Nessa situação, permitiu-se aplicar a BJR para uma transação em que o acionista controlador esteve em ambos os polos, pois se tratava de um squeeze-out merger, sendo essa uma incorporação que resulta na aquisição total da companhia por parte do acionista controlador. Contudo, nesse caso, de início, a transação foi condicionada à aprovação: de um comitê especial independente, devidamente empoderado e atuando conforme o seu dever de diligência; e da maioria dos acionistas minoritários, tendo esses que ser devidamente informados e não podendo ser coagidos.

Desta forma, se ambas essas “proteções procedimentais” fossem preenchidas, a transação estaria sujeita à BJR, e não ao Entire Fairness; e caso apenas um desses requisitos fosse preenchido, o ônus da prova seria invertido, conforme decidido em Kahn x Lynch. Desde então, muito ainda se discute sobre a definição de “acionista controlador” e sobre o escopo de aplicação do MFW. Ele é restrito ao contexto de squeeze-outs? Pode ser aplicado apenas em situações de fusões e aquisições? A tendência de Delaware nos últimos anos vem sido de expandir o âmbito de aplicação desse precedente.

Contudo, recentemente, surgiu uma nova discussão que chegou à Suprema Corte de Delaware. Será que podemos aplicar a BJR em transações que foram, de início, condicionadas à aprovação de um comitê independente ou pela maioria dos acionistas minoritários? Ou seja, podemos aplicar a BJR para transações que apenas preenchem uma das proteções procedimentais do MFW?

Essa é a exata questão que In re Match Group Inc. Derivative Litigation está discutindo. Trata-se de uma acusação contra o acionista controlador por violação ao dever de lealdade, visto que ele estava em ambos os polos de uma operação de cisão. Na corte inferior, entendeu-se que os requisitos de MFW estavam preenchidos, aplicou-se a BJR e julgou-se a favor dos réus.

Porém, os acionistas minoritários recorreram e alegaram que o comitê independente que aprovou a operação não era verdadeiramente independente, pois havia um conselheiro que era vinculado ao controlador, e que, mesmo com a aprovação pela maioria dos acionistas minoritários, as duas proteções procedimentais que garantem a aplicação da BJR, conforme o entendimento MFW, não estariam preenchidas e a transação deveria ser analisado sob à ótica do Entire Fairness.

Em resposta, os réus argumentaram que a transação não é um squeeze-out merger, e sim uma cisão; e que, nesse contexto, apenas uma das proteções procedimentais precisaria estar preenchida para se aplicar a BJR.

Após se deparar com essas questões, a Suprema Corte de Delaware solicitou que as partes elaborassem petições adicionais endereçando a seguinte questão: se “a decisão do tribunal inferior deve ser confirmada porque as transações foram aprovada: pelo comitê especial; ou por uma maioria dos votos dos acionistas minoritários”. Em outras palavras, caso apenas uma das salvaguardas procedimentais esteja em vigor, seria apropriado aplicar a BJR em vez do Entire Fairness?

Recentemente, no último dia 13 de dezembro de 2023, os argumentos orais de cada lado foram apresentados perante a Suprema Corte de Delaware. Os acusados argumentaram que: a seção 144 da Legislação Societária de Delaware traz os critérios para anular transações interessadas e estes devem servir como uma fonte interpretativa para analisar a alegação de violação ao dever de lealdade nesse contexto; MFW só é aplicável no contexto de squeeze-outs e a regra padrão é que, em transações fora desse contexto, apenas um dos mecanismos de proteção se torna necessário; não há como o controlador coagir os outros acionistas fora do contexto de squeeze-outs; e a aprovação dos acionistas minoritários é o mecanismo de “purificação” mais importante. E se isso for satisfeito, eles ratificam a transação, e ela deve ser analisada sob a ótica da BJR.

Em resposta, os minoritários argumentaram que: pelo contrário, MFW não se aplica apenas em contextos de squeeze-outs, mas também em casos que envolvem transações com o acionista controlador como um todo; a regra padrão para essas transações sempre foi Entire Fairness e apenas a partir de 2014 admitiu-se a possibilidade de aplicar a BJR se os devidos mecanismos de proteção fossem adotados; e a seção 144 da Legislação Societária de Delaware surgiu muito depois de casos que determinaram que transações com acionistas controladores estariam sujeitas ao Entire Fairness, e que esse dispositivo não é necessariamente aplicado no contexto de deveres fiduciários.

Tendo em vista esses argumentos, a Suprema Corte de Delaware questionou ambas as partes, demonstrando preocupação: em permitir a aplicação da BJR em casos onde o conselho não é independente, visto que ele é o encarregado por negociar a transação e isso poderia acabar esvaziando o voto dos minoritários, já que a transação inteira foi negociada por esse comitê; em como distinguir squeeze-outs de outras transações, visto que algumas transações estão ficando cada vez mais complexas para evitar a incidência de determinadas regras; na definição e nos limites de quem é o acionista controlador; na relação de conselheiros independentes com o acionista controlador e como este pode influenciar aquele mesmo que o conselheiro seja formalmente independente; e em tratar conselheiros independentes de formas diferentes em contextos semelhantes (se referindo a casos que envolvem ações derivadas e a demanda feita ao conselho de administração).

Acredita-se que a corte chegará a uma decisão dentro dos próximos três meses. Contudo, sem realizar uma análise acerca do mérito de cada lado, é importante analisar as consequências dessa futura decisão de uma forma pragmática. De um lado, caso a corte decida permitir a aplicação da BJR em casos que adotem apenas uma das medidas de proteção procedimental, pode-se argurmentar que isso geraria mais eficiência para esse tipo de transação. Será que haveria uma redução nos custos de transação? Mais operações ocorreriam porque não é mais necessário que os acionistas minoritários aprovem uma transação que de qualquer jeito seria benéfica para a companhia? Poderia ocorrer uma diminuição na judicialização desse tipo de transação?

Por outro lado, é possível argumentar que tal situação acaba por comprometer os direitos dos acionistas minoritários. Como confiar em um comitê que não goza de independência ao negociar uma transação com o acionista controlador? Mesmo considerando que os conselheiros sejam independentes, surge a dúvida sobre a possibilidade de o acionista controlador exercer alguma forma de influência sobre eles. Será que o voto dos acionistas minoritários é prejudicado por essa dinâmica?

Não se sabe ao certo o que vai acontecer. Talvez, o tribunal opte por aplicar a BJR em casos nos quais apenas uma das salvaguardas procedimentais esteja presente. Pode ser que decida que, de qualquer forma, a aprovação dos acionistas minoritários é indispensável, enquanto a aprovação por parte do conselho independente não seja. É também uma possibilidade que a corte mantenha o que parece ser o padrão atual, exigindo ambas as salvaguardas procedimentais para transações envolvendo acionistas controladores para garantir uma análise sob a ótica da BJR.

A única certeza existente é que essa decisão será de grande importância e terá impactos significativos no mercado dos EUA, bem como na estruturação de transações envolvendo acionistas controladores. Adicionalmente, a corte de Delaware encontra-se em uma posição privilegiada para abordar diversos debates e esclarecer questões nebulosas relacionadas à aplicação do MFW, o que pode contribuir para uma maior segurança jurídica para o mercado. Diante desse cenário, é válido acompanhar essa situação e, quem sabe, em algum momento, existirão respostas para tais questões.

 


[1] Importante pontuar que no sistema de Delaware os únicos acionistas quem possuem deveres fiduciários são os acionistas controladores, sendo esses deveres em face dos acionistas minoritários.

[2] A possibilidade de aplicar a BJR já foi reconhecida pela CVM e possuimos previsão semelhante à BJR no art.159, §6º da Lei das S.A.

[3] Também há situações específicas onde a corte aplica o standard conhecido como enhanced scrutinity, mas para este artigo iremos apenas nos referir à BJR e ao Entire Fairness.

[4] Caso a presunção da BJR não seja derrubada, a única maneira de responsabilizar os acusados seria mostrar que a transação em questão foi um completo desperdício corporativo, demonstrando que ela foi objetivamente irracional em vista do objeto social da sociedade. Até o momento não há casos em Delaware em que os acusados foram responsabilizados sob esse critério.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!