Discutindo a relação

De cada três demandas trabalhistas, uma se refere à rescisão de contrato

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4 de dezembro de 2023, 8h23

*Reportagem publicada no Anuário da Justiça do Trabalho 2024, lançado quinta-feira (30/11). A versão online é gratuita e pode ser acessada no site do Anuário da Justiça (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (Clique aqui ).

Quando se pesquisa a Jurisprudência da Justiça do Trabalho, deparamos com dois mundos justapostos, mas inconciliáveis, que poderíamos chamar de velho trabalho e novo trabalho.

O velho trabalho é constituído de causas que se contam na casa dos milhares ou milhões e que podem ser enquadradas, quase sempre, nos limites da CLT e da legislação extravagante. Há poucas divergências sobre Direito e os juízes se dedicam mais a decidir sobre fatos, geralmente se o empregador pagou direitinho o que deve ao empregado na hora em que o dispensa do trabalho.

Já o novo trabalho produz ações em quantidades ainda pequenas e que só começaram a chegar às varas do Trabalho nos últimos anos. O debate jurídico nessa área é intenso e, em último caso, discute-se a essência do que é trabalho e o que é livre empreendimento.

Um terço de todas as ações protocoladas na Justiça do Trabalho se ocupa justamente disto: discutir se a demissão do empregado foi feita de acordo com o que dispõe a legislação. E como quase ninguém questiona o patrão enquanto está empregado, é na hora da demissão que o trabalhador vai apresentar queixa das condições de trabalho que desfrutou ou sofreu no tempo que serviu à empresa.

O velho trabalho inclui também cuidados com antigas mazelas trabalhistas da sociedade, como os acidentes de trabalho, a segurança do trabalho, o assédio moral e sexual no ambiente de trabalho, que produzem um grande volume de ações de danos morais e materiais. Sem falar de resquícios dos tempos coloniais, como o trabalho análogo à escravidão, que remanescem nas carvoarias do Brasil profundo e também em casas das melhores famílias e em finas lojas de confecção dos grandes centros urbanos.

A despeito de o artigo 7º, inciso I, da Constituição, estabelecer que é direito do trabalhador uma “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa”, estão sendo testadas na prática diferentes formas de relação de trabalho que não se encaixam automaticamente na legislação vigente. Estamos falando de terceirização, pejotização, empreendedorismo, trabalho por aplicativo, automação, home office, informalidade e mil outras formas de relação de trabalho e emprego que estão sendo inventadas a cada dia.

Como a legislação existente é ainda insuficiente, cabe ao Judiciário criar jurisprudência para dirimir os litígios que lhe são submetidos. Essa missão vem sendo cumprida não sem grandes embates que afloram diante de visões conflitantes sobre o papel social e econômico do trabalho emanadas do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição, e do Tribunal Superior do Trabalho, o guardião da CLT. É disso que trataremos a seguir e em outras reportagens do Anuário da Justiça do Trabalho 2024.

Os litígios do velho trabalho
Quatro de cada cinco demandas constantes nos processos que chegaram à Justiça do Trabalho em 2022 estavam relacionadas com cinco temas: 1) rescisão do contrato de trabalho; 2) jornada de trabalho; 3) remuneração do trabalhador; 4) contrato individual do trabalho; e 5) responsabilidade civil do empregador. Ao todo, tais assuntos resultaram em um volume de 9,3 milhões de pedidos nas ações trabalhistas em um total de 11,9 milhões de casos que discutiam os direitos e deveres previstos na CLT.

Na maioria desses casos, discute-se questão de fato e não de direito, que pode-se resumir na célebre frase pronunciada na hora em que o trabalhador é demitido ou se demite: “Vá procurar seus direitos na Justiça”. Ou seja, já que é grande a chance de ter de pagar duas vezes as verbas rescisórias do trabalhador dispensado, o empregador prefere deixar tudo para ser resolvido de acordo com o que o juiz decidir.

Em 2022, 3,3 milhões dos pedidos levados à Justiça do Trabalho discutiam as verbas rescisórias, aqueles infinitos itens que devem ser pagos na na hora da demissão. Coisas como a multa de 40% do valor do FGTS prevista no artigo 18 da Lei 8.036/1990, que deve ser paga pela empresa ao empregado demitido sem justa causa. Ou o aviso prévio, que é o período de 30 dias que o empregador deve remunerar o empregado depois que ele é comunicado da dispensa. Até 2011, pairavam dúvidas sobre a maneira de fazer o cálculo do total a ser pago. A Lei 12.506/2011 veio para esclarecer o assunto e determinou que “serão acrescidos três dias por ano de serviço prestado na mesma empresa, até o máximo de 60 dias”.

No rol das demandas da hora da demissão, aparecem outras duas multas previstas na CLT para empregadores relapsos: uma delas, no valor de um salário do demitido, está prevista no artigo 477 e pune a empresa que atrasar por mais de 10 dias o pagamento das verbas rescisórias; a outra, do artigo 467, penaliza o empregador que deixar de pagar as verbas que não estão em discussão no momento do acerto de contas da rescisão junto à Justiça do Trabalho. A maior de todas as reclamações para adoçar o momento amargo da rescisão chegou a 1,1 milhão de casos em 2022 e se refere ao pagamento ou não pagamento de horas extras.

Chegaram também à Justiça do Trabalho cerca de 650 mil pedidos de indenização por dano moral e outros 150 mil por danos materiais, sem contar a novidade de 11 mil casos por danos estéticos. A maioria destes pedidos está relacionada a doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, mas é crescente o número de reclamações por assédio moral e sexual. Uma das doenças que podem surgir em decorrência do trabalho é a síndrome de burnout, reconhecida pela OMS em janeiro de 2022 e que consiste no esgotamento físico e mental por conta do estresse.

A Associação Internacional de Gerenciamento de Estresse estima que ao menos 30% dos trabalhadores brasileiros são acometidos por essa doença todos os anos. “O desrespeito à legislação trabalhista e a incumbência de mais tarefas, mais horas de trabalho, vêm acarretando muitos problemas psicológicos nos colaboradores”, afirma o advogado Daniel Oliveira, do Euclides de Oliveira Advogados Associados.

O ministro do TST Douglas Alencar Rodrigues lembra que é papel do Judiciário buscar harmonizar as relações de trabalho em um contexto no qual as empresas possuem mais poder do que os empregados. “O Direito do Trabalho surgiu para regular relações jurídicas assimétricas e por isso suas disposições sempre foram consideradas normas de ordem pública, ou seja, de cumprimento obrigatório, que não poderiam ser objeto de disposição ou flexibilização pelos atores interessados”, defende.

Para o procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, é justamente o descumprimento da lei trabalhista que explica a repetição das demandas. “Há, na sociedade, a cultura do litígio em que o cumprimento voluntário do ordenamento jurídico é exceção. Assim, o descumprimento das obrigações laborais implica o ajuizamento de ações.” O PGT lembra que o compliance trabalhista, tão em voga ultimamente, visa justamente a “adequar a empresa às normas trabalhistas, a padrões éticos e aos regulamentos e, assim, evitar ações trabalhistas”.

Sergio Nobre, presidente da Central Única dos Trabalhadores, entende que a repetição das mesmas demandas o tempo todo se deve ao fato de direitos básicos dos trabalhadores não serem respeitados pelas empresas. Outra razão seria a alta rotatividade no mercado de trabalho, que eleva o volume de discussões judiciais relacionadas ao encerramento do contrato. Segundo dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), do Ministério do Trabalho e Emprego, em 2022 ocorreram 20,6 milhões de demissões e 22,6 milhões de contratações no Brasil.

“Em torno de 20 milhões de pessoas empregadas perdem o emprego por ano e muitas delas saem sem receber. Procuram os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e a Justiça”, avalia Nobre. A discussão gira em torno do modo como o Poder Judiciário julga os conflitos entre os trabalhadores e as empresas. “A Justiça do Trabalho tem o papel de fazer cumprir a Constituição e a lei. É preciso lembrar que existem empresas que não cumprem direitos humanos básicos”, ressalta.

Uma das justificativas para esse fenômeno está em como se dá a relação entre trabalhadores e empresas. “Decorre da própria dinâmica, onde surgem conflitos de interesses. Além disso, a legislação trabalhista brasileira é complexa e sujeita a interpretações divergentes, o que contribui para a litigiosidade. A cultura e a conscientização dos direitos trabalhistas também desempenham um papel importante”, opina o advogado Gilberto Bergamin, do Bergamin Advogados.

O consultor de negócios e de comportamento social Luiz Gaziri, professor da Unesp e da FAE Business School, lembra que o trabalho impacta no sentimento de felicidade do ser humano. “Existe uma cultura organizacional que faz com que o trabalhador se sinta explorado. Parece que as empresas ou o chefe estão levando vantagem. Tem muitas empresas ainda que usam os sistemas de meritocracia que são muito complicados.”

Bruno Martins, CEO da consultoria de recolocação profissional Trilha Carreira Interativa, entende que a ineficiência da gestão dos funcionários por parte das empresas faz com que o Judiciário acabe por ter de assumir esse papel. “A área de recursos humanos deveria resolver todas as questões com os funcionários de forma clara e transparente, independentemente. As políticas de RH devem ser criadas para diminuir o passivo trabalhista porque muitas vezes a demanda do trabalhador não é sobre a questão do direito, mas como o funcionário se sente tratado na empresa”, finaliza.

A Reforma Trabalhista (Lei 13.467), sancionada em julho de 2017, criou um dispositivo para desestimular o acesso do trabalhador à Justiça ou, visto de outro ângulo, a litigância sem risco. O pagamento dos honorários de sucumbência pela parte perdedora dos processos, que antes não abrangia os trabalhadores, passou a ser exigido. Desde então, o trabalhador que ingressa com um processo corre o risco de, caso perca a ação, ter que pagar ao advogado da empresa entre 5% e 15% do valor discutido.

ANUÁRIO DA JUSTIÇA DO TRABALHO 2024
Lançamento: 30/11/2024, durante o II Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho, em Foz do Iguaçu
4ª edição
Número de Páginas: 260
Editora: ConJur
Versão impressa: Livraria ConJur, clique aqui para saber mais
Versão digital: disponível gratuitamente no site do Anuário da Justiça (anuario.conjur.com.br), acesse

Anunciaram nesta edição:
BFBM – Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Corrêa da Veiga Advogados
Décio Freire Advogados
Didier, Sodré & Rosa Advocacia e Consultoria
Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
JBS S.A
Machado Meyer Advogados
Moro e Scalamandré Advocacia
Original 123 Assessoria de Imprensa
Sergio Bermudes Advogados
Warde Advogados

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