Opinião

O precedente judicial no direito brasileiro e o juiz como legislador

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2 de dezembro de 2023, 6h02

A Emenda Constitucional 45 de 2005 reapresentou ao sistema jurídico brasileiro o instituto da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, impondo ao interessado a prévia demonstração de que a decisão judicial a ser proferida produzirá efeitos que “repercutirão” em toda a sociedade (“repercussão geral”); e, em se tratando do recurso especial, o recorrente também deverá demonstrar, de plano, sob pena de inadmissibilidade do recurso, a relevância da questão federal ínsita na própria ação em que se discute o direito material.

Em 2015, o novo Código de Processo Civil delimitou melhor o que deveria ser considerado como repercussão geral para possibilitar o prosseguimento do recurso extraordinário. O parágrafo 1º do artigo 1.035 disciplinou que “para efeito de repercussão geral, será considera a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”.

A subjetividade interpretativa é evidente na redação do dispositivo legal. Em seguida, no parágrafo 3º, de forma objetiva, diz que tem repercussão geral qualquer decisão judicial que “contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal” ou “tenha reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal”.

Quanto ao recurso especial, a relevância foi objeto da Emenda Constitucional 125, de 2022, que apresentou rol exaustivo do que deve ser entendido com tal característica a fim de possibilitar o conhecimento do recurso, ou seja: ações penais, ações de improbidade administrativa, ações de valor superior a 500 (quinhentos) salários mínimos, ações que podem gerar inelegibilidade, contrariedade à jurisprudência “dominante” do próprio Superior Tribunal de Justiça e a fatídica norma aberta: “outras hipóteses previstas em lei”.

O objetivo de todo este esforço legislativo, seja em sede constitucional ou em sede de legislação ordinária, é a preocupação de diminuir a via de acesso aos tribunais superiores, além da produção de decisões judiciais que tenham força obrigatória para todos os processos que tratem da mesma matéria, impedindo soluções diferentes dadas pelos demais órgãos jurisdicionais.

As questões jurídicas que são objeto das ações individuais, para galgarem a via recursal superior, deverão trazer, em sua própria natureza, repercussão geral ou relevância maior do que os interesses imediatos das partes envolvidas na disputa. Mas o juízo de valor sobre estes elementos é extremamente subjetivo, porquanto assente em perquirição sobre fatores econômicos, políticos, sociais ou jurídicos que sobrepujem os interesses individuais envolvidos diretamente no processo.

A ação individual, que é a característica histórica das ações no Direito Brasileiro, pode possibilitar, então a produção de uma decisão judicial que, em razão da repercussão de seus efeitos na sociedade, transmudará aquela simples ação em verdadeiro contencioso coletivo de interesses sociais, políticos, econômicos ou jurídicos, para os quais as partes originais sequer tinham a intenção, a vontade ou o interesse de provocar.

Além desse alcance transindividual, com os institutos da repercussão geral e da relevância, o sistema jurídico brasileiro tem o condão de produzir decisões judiciais, a partir de ações individuais, que vincularão todos os indivíduos que provavelmente nem sabiam da existência daquela demanda judicial, mas que, doravante, deverão se submeter àquela decisão da qual não tiveram ingerência ou participação em sua formação. A parte original do processo, autor ou réu, que teve sua pretensão não reconhecida, poderá interpor os recursos extraordinário ou especial, mas apenas se demonstrar a ocorrência simultânea, em cada um, da repercussão geral ou da questão relevante, respectivamente. E assim fazendo, a decisão judicial transbordará de seu processo para todos os eventuais processos que qualquer cidadão poderá vir a provocar no futuro para defender direito que entende ter sido violado em sua esfera individual. O recorrente individual está apenas exercendo o seu direito de ação perante o Poder Judiciário a fim de ter reapreciada a decisão que obteve e que, segundo o seu juízo individual, é violadora da Constituição ou da lei federal. Não existe ofensa a direito alheio no exercício desta pretensão recursal.

O problema nasce quando o sistema jurídico pretende servir-se da ação individual para produzir decisão de natureza coletiva que regerá todos os futuros processos, ainda inexistentes, que vierem a ser propostos por outras partes completamente desconhecidas daquelas que deram ensejo àquela mesma decisão.

Dir-se-á que, assim, o indivíduo já saberá, de antemão, qual o destino de sua ação individual, pois já tem em seu poder a decisão proferida em outro processo, entre partes absolutamente desconhecidas para ele e sob condições subjetivas diversas, com as quais poderá não concordar. Em não concordando, não existe óbice para que promova sua ação, visando demonstrar que as situações de natureza material são distintas e, portanto, carecem de decisão própria e individualizada, não podendo aquela decisão coletiva valer para o seu processo, conforme dispõe o artigo 1.037, em seu parágrafo 9º.

As decisões judiciais que têm o poder de vincular as decisões de outros julgadores em processos posteriores têm a natureza de precedente judicial, pois indica qual a única solução jurídica possível e permitida para aquela disputa apresentada pelas partes.

Ao lado da repercussão geral e da relevância da questão federal, o Código de Processo Civil criou mais dois instrumentos visando a produção de efeitos coletivos para as decisões judiciais proferidas em processos individuais: o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e o incidente de assunção de competência (IAC). Mesmo tendo origem em ações individuais, a decisão final proferida em tais expedientes processuais tem o poder de determinar futuras decisões judiciais a serem proferidas em outros processos e entre partes absolutamente distintas. Para dar origem ao IAC, basta a existência de um único processo que, segundo o julgador, apresente “relevante questão de direito, com grande repercussão social” e, para a formação do IRDR, indispensável a multiplicidade de processos “que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito” ou que apresentem “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”. Tanto o IAC quanto o IRDR são os grandes formadores de precedente judicial no atual sistema jurídico brasileiro, pois estão acessíveis a todos os tribunais existentes no país, bastando que um de seus integrantes entenda presentes seus requisitos.

A característica principal de ambos os institutos é a subjetividade imanente no juízo de valor empregado pelo julgador ao determinar a instauração do incidente (elemento que também está presente na análise da existência de repercussão geral ou de relevância da questão federal). O legislador entregou ao julgador um amplo poder discricionário (ou seja, político) para interpretar a existência de situações extraprocessuais e que não interessam às partes originais e individuais do processo, para atribuir poder catalisador à demanda no sentido de criar uma solução judicial que será empregada, doravante, para os futuros processos que quaisquer indivíduos pretendam dar início.

A razão destes institutos não é, imediatamente, resolver a disputa entre as partes individuais, mas se apropriar daquela mesma disputa para criar decisão que, preventiva e supostamente, servirá como paradigma no meio social e evitará o surgimento de novos processos sob o mesmo arcabouço fático e jurídico. 

Ao deixar à análise subjetiva do julgador a decisão sobre a existência de situação que apresente “relevante questão de direito”, que tenha “repercussão social”, que ofereça “risco de ofensa à isonomia ou à segurança jurídica” ou, por fim, “controvérsia sobre a mesma questão de direito”, o legislador pátrio transferiu para o julgador a escolha de situações de natureza eminentemente social e que serão objeto de regulação pelo próprio Poder Judiciário. Tal regulação, à semelhança da lei, terá o poder de exigir determinando comportamento dos indivíduos segundo a decisão judicial operada em um único processo judicial. Ou seja, de um conflito intersubjetivo, o sistema permite, agora, que seja produzida norma de observância geral e inquestionável por todos os membros da coletividade.

Existe uma sobreposição de atuação constitucional entre o legislador e o julgador, pois os novos instrumentos processuais darão origem a um ato normativo intimamente semelhante à lei, em seu aspecto material: ato normativo geral e de observância obrigatória. Ambos os agentes estatais, o julgador e o legislador, no entanto, têm origem e legitimação políticas absolutamente diversas, porquanto o juiz não possui nenhuma delegação política do cidadão para estabelecer normas de natureza geral e vinculante, ao passo que o agente político tem no mandato popular justamente esta legitimação funcional.

Outro agravante na atual sistematização destes instrumentos processuais no sistema legal brasileiro é o fato de que as decisões que são consideradas como precedentes visam disciplinar comportamentos futuros, apresentando, como fundamento para tal medida, juízos de natureza subjetiva do julgador em face da realidade social em que vive. O precedente brasileiro deveria, por correção de sua formação, ser denominado de antecedente, pois a decisão judicial antecede o próprio processo na qual será aplicada no futuro.

Tais decisões, ao invés de fazerem valer a reiteração de decisões judiciais passadas (como é o “normal” no sistema inglês da “lei comum”, da “common law”), disciplinam um conflito intersubjetivo atual para que, a partir dele, produzam uma norma geral (uma “lei”) que servirá como solução para um futuro conflito de interesses. Naqueles sistemas, os julgamentos anteriores àquele que está sendo objeto de decisão, são tomados como parâmetros e exemplos para a solução do caso atual, ou seja, conservam-se decisões anteriores que já apreciaram o mesmo problema e, naturalmente, ela também é adotada no julgamento contemporâneo. No caso de inexistência de decisões anteriores, caberá ao julgador emitir a sua própria decisão, mas está não será de aplicação obrigatória em processos futuros, cabendo ao juiz do caso analisar se o precedente formado anteriormente pode ser aplicado para a solução do seu processo. A diferença é grande, porquanto a função judicial é preservada em sua essência, não transformando o juiz em legislador para o futuro.

Não são comparáveis com as decisões emanadas em uma ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade porquanto, nestas, existe um ato normativo emanado do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, submetido ao crivo constitucional do Poder Judiciário. Existe uma “lei” anterior sobre a qual se decide se ela é compatível ou não com a Constituição. Nestas ações constitucionais, o julgador se limita a declarar se a norma produzida pelo Poder Legislativo é compatível, se está conforme à Constituição, mas ele mesmo, enquanto julgador, não cria uma nova lei. A declaração é simplesmente de conformidade (“constitucionalidade”) ou de contrariedade (“inconstitucionalidade”). Na formação do precedente instituído pelo CPC, é a própria “norma geral” que passa a ser produzida pelo Poder Judiciário de modo a vincular toda a sociedade.

A mudança legislativa outorgou ao Poder Judiciário, em termos práticos, a possibilidade de uma norma geral e obrigatória para o futuro e indiscutível pelos demais Poderes.

Ao invés de seguir o modelo consagrado nas demais legislações que adotam o sistema da “precedência do julgado” para a decisão do caso concreto atual, o legislador brasileiro, concretamente, retirou dos representantes do povo e transferiu para os juízes, a formação de uma norma de caráter geral e obrigatória, segundo o julgamento político individual do julgador do momento, sobre a existência de um caso individual que produza “repercussão geral”.

 Além disso, a lei, como norma geral e obrigatória, é aprovada, normalmente, em grandes assembleias de representantes da sociedade, onde as diferentes correntes de opinião e força política se enfrentam segundo regras pré-determinadas, submetendo-se a minoria à decisão da maioria; no caso do precedente judicial brasileiro, a norma que é produzida pela decisão judicial é alcançada após debate realizado por juízes reunidos, normalmente, em pequeno número, pois sequer representam a magistratura local ou nacional. O próprio Código de Processo Civil estabelece no artigo 978 que “o julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento dentre aqueles responsáveis pela uniformização da jurisprudência do tribunal”. O artigo 926 dispõe no mesmo sentido, em seu parágrafo 1º, ao tratar sobre a uniformização jurisprudencial “na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno”. De qualquer forma, os órgãos que fixaram a “tese jurídica” com força de norma geral e obrigatória para todos os julgadores, serão formados por uma pequena parte dos membros do próprio tribunal. Tais órgãos, sem dúvida, serão sempre menores em número do que as casas legislativas.

A criação do precedente judicial com força obrigatória e para valer para as decisões futuras representa, em termos práticos, que as decisões judiciais estarão, doravante, sendo tomadas por um número reduzido de julgadores, os quais, considerando a realidade de determinado momento histórico, com seus vieses político, social, econômico e jurídico dominante, definirão comportamentos sociais que serão considerados legais e dificilmente modificáveis, afastando todas as outras possíveis interpretações.

Todos os instrumentos criados com o Código de Processo Civil de 2015 e as alterações constitucionais e legislativas posteriores, ao lado da tão falada preocupação com o grande número de processos e de diversidade de solução para cada processo, servem ao propósito maior de determinar quais decisões judiciais serão consideradas como válidas pelo sistema jurídico dominante, afastando a legalidade de qualquer outra que se desvie do padrão estabelecido pelas decisões coletivas.

A preocupação com o grande número de processos que existem em trâmite nas diversas instâncias e tribunais do país não será resolvida com a restrição do poder decisório dos juízes em seus próprios processos, retirando sua capacidade de livre pensar e decidir de acordo com a sua própria interpretação do caso concreto. Os novos instrumentos de produção de decisões coletivas vinculativas a partir de ações individuais importará, em pouco tempo, a uma singela realização de atos conducentes à sentença final, sem intervenção do julgador quanto à sua solução, limitando-se a reproduzir a decisão coletiva impositiva ao caso concreto.

Estabelecido o precedente, ele poderá ser, em tese, revisto a qualquer tempo, conforme dispõe o artigo 986 do CPC, de ofício ou mediante provocação apenas da Defensoria Pública ou do Ministério Público. As partes que tiveram o seu caso transmudado em processo coletivo não têm esta faculdade/poder/direito, porquanto não contempladas dentre o rol de legitimados, o que torna o expediente processual mais limitador ainda. A possibilidade de que a tese possa ser revista “de ofício” impõe o acompanhamento dos efeitos negativos produzidos no meio social pelos julgadores que atuarão no mesmo tribunal em momento posterior. A dependência da provocação dos órgãos da Defensoria Pública ou do Ministério Público, da mesma forma, dependem de compromisso institucional de seus agentes atuarem de modo permanente.

Embora possível, a tendência é que a afirmação de uma tese como precedente somente será revista se seus efeitos negativos alcançarem notoriedade social (seja por seu destinatário, seja por alteração de força política), pressionando por sua revisão; ao contrário, a tendência geral será a aplicação simples e corriqueira de “entendimentos” já tornados obrigatórios por decisões anteriores, evitando a sobrecarga de trabalho e o desenvolvimento de argumentação robusta para a sua alteração.

Seja por qualquer ângulo que se analisem os instrumentos processuais criados para a “homogeneização” da jurisprudência, a conclusão não favorece nenhuma melhoria para o sistema judiciário brasileiro, porquanto concentra evidente poder legislativo em mãos de agentes políticos que não detém esta prerrogativa política, porquanto carentes de mandato popular para produzirem norma de caráter geral e impositiva sem o concurso das casas legislativas, assentes, apenas, em juízo particular sobre questões sociais, econômicas, políticas ou jurídicas que entendem relevantes e carentes de regulação “homogênea”. Os efeitos negativos que tais instrumentos produzirão em todo o sistema democrático brasileiro ainda se farão sentir em pouco tempo, retirando dos legítimos representantes da sociedade o poder final de decisão sobre os próprios destinos da nação.

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