Controvérsias Jurídicas

O juiz das garantias e suas implicações no processo penal

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

31 de agosto de 2023, 15h20

Em importantíssima decisão proferida no último dia 23, foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal que os tribunais deverão implementar, no prazo máximo de dois anos, a figura do juiz das garantias. Parte das inovações trazidas pela Lei nº 13.964/19, no entanto, sofreram significativas modificações, esvaziando, em parte, a função dessa importante proteção contra o arbítrio.

Aos tribunais foi conferida maior autonomia para definir a estrutura e organizar o funcionamento dos respectivos juízos de garantia, de modo a não prejudicar as ações penais em andamento e não sobrecarregar os magistrados que atuam sozinhos em suas comarcas. Passemos, pois, à análise dos pontos específicos enfrentados pelo STF nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305.

Spacca
Por maioria, os ministros fizeram interpretação conforme a Constituição do artigo 3º-A do CPP, determinando que o juiz, pontualmente, e nos limites da legalidade, poderá determinar diligências suplementares para dirimir dúvida sobre ponto relevante, no momento de proferir decisão. Nesse sentido, o STF, ao invés de considerar a revogação artigo 156 do CPP por incompatibilidade com o artigo 3º-A, entendeu por sua permanência no ordenamento jurídico com limitação dos efeitos do artigo trazido pela Lei nº 13.964/19, consagrando a estrutura do sistema acusatório e a vedação da atuação do juiz durante a fase investigatória. "O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação" (CPP, artigo 3º-A, in verbis). Combinado com o artigo 156 do CPP, fica admitida, em caráter excepcional, a determinação pelo juiz, ex officio, da produção de provas relevantes e urgentes, necessárias ao esclarecimento da verdade.

No que tange ao artigo 3º-B do CPP, com apenas o voto vencido do ministro Luiz Fux, a Suprema Corte entendeu pela obrigatoriedade da implementação do juiz das garantias, por todos os tribunais, no prazo de 12 meses a partir da publicação do acórdão, sendo permitida uma única prorrogação por igual período, à critério do Conselho Nacional de Justiça, a quem também incumbirá estabelecer as diretrizes gerais do instituto.

Por sua vez, ao que se refere à constitucionalidade dos incisos IV, VII, VIII e IX, do artigo 3º-B, do CPP, por unanimidade, entendeu-se pela legalidade do controle judicial aos atos de investigação, determinando prazo de 90 dias, a partir da publicação do acórdão, para encaminhamento de todos os procedimentos investigatórios criminais e seus congêneres, independentemente da nomenclatura, ao respectivo juiz natural, ainda que não se tenha o juiz das garantias.

Outro ponto que merece destaque é a interpretação conforme a Constituição do artigo 3º-B, incisos VI e VII, quanto à possibilidade de o juiz prorrogar a prisão provisória, ou outra medida cautelar, bem como substituí-la ou revogá-la; e decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, desde que respeitado o direito fundamental ao contraditório, preferencialmente em audiência pública e oral.

Diferentemente do que previa a Lei nº 13.964/19, quem receberá a denúncia ou queixa será o juiz da instrução, e não o juiz das garantias, cuja competência cessará com o oferecimento da peça acusatória. Entendeu também o STF pela inconstitucionalidade da exclusão física dos autos do inquérito, devendo o caderno investigatório permanecer fisicamente anexado ao processo.

A corte reviu a vedação absoluta de realização de videoconferência na audiência presidida pelo juiz das garantias do preso em flagrante ou provisório. Previa o artigo 3º-B, § 1º, que: "o preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz das garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência". Para o STF será autorizada, excepcionalmente, sua realização, caso haja impossibilidade fática da audiência presencial.

Por sua vez, no que concerne ao instituto do "prazo com sanção", estabelecido pelo § 2º do artigo 3º-B, o STF determinou a inconstitucionalidade da limitação de prorrogação por apenas uma vez, do inquérito policial de investigado preso há mais de 15 dias, sob pena de relaxamento da prisão. Admitiu, portanto, a prorrogação ilimitada do inquérito de preso, sem a ameaça do relaxamento da prisão por excesso de prazo, nos termos do que já fora decidido na ADI 6.581. Em decorrência de tal entendimento, também ficou declarada a inconstitucionalidade do § 4º do artigo 310, que estabelecia: "Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva".

Também foi decidido que o juiz das garantias não se aplica aos processos de competência originária dos tribunais, júri popular, violência doméstica e de competência dos Juizados Especiais Criminais. Aplica-se, contudo, aos processos de competência da Justiça Eleitoral, que tinham sido excluídos pela lei.

Decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 3º-C, que dizia em seu texto: "A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código", bem como de seus §§ 3º e 4º, os quais, respectivamente, previam: "Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias".

Da mesma forma, entendeu pela incompatibilidade do texto do artigo 3º-D e seu parágrafo único com o ordenamento jurídico, cuja redação dispunha: "O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo" e "Nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados, a fim de atender às disposições deste Capítulo".

Quanto ao artigo 3º-E do CPP, decidiu a corte substituir o verbete "designado" por "investido". Por fim, declarou a constitucionalidade do artigo 3º, F, que versa sobre o dever de o juiz das garantias assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos de imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade penal, civil e administrativa.

Mudança significativa ocorreu na interpretação do artigo 28, CPP. Determinava o texto legal que: "Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei". Desse modo, quem detinha o poder decisório sobre o arquivamento do inquérito era o órgão ministerial, cabendo ao juiz apenas homologar a decisão ou submetê-la à revisão da instância competente do Ministério Público.

Com o novo entendimento da Suprema Corte, o Ministério Público passa a pedir o arquivamento do inquérito ao juiz da instrução, que efetivamente determinará o arquivamento ou remeterá os autos à instância revisora do Ministério Público. Ainda nos termos do artigo 28, § 1º, do CPP, depois de requerido o arquivamento pelo órgão ministerial e determinado pelo juiz da instrução, poderá a vítima ou seu representante legal, no prazo de 30 dias da comunicação do arquivamento, submeter a matéria à instância revisora do Ministério Público, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

Quanto ao acordo de não persecução penal, entendeu o STF pela constitucionalidade do artigo 28-A e incisos, do CPP. Por sua vez, entendeu pela inconstitucionalidade do § 5º do artigo 157, também do CPP, que versava acerca da impossibilidade de proferir sentença ou acórdão o juiz tivesse conhecimento do conteúdo de prova declarada ilícita.

Em que pesem algumas críticas quanto à modificação pelo STF de dispositivos que já tinham sido debatidos, votados e aprovados pelo Poder Legislativo, e que não tinham nenhuma efetiva inconstitucionalidade, a revelar novamente invasão de competência do legislador, a manutenção da figura do juiz das garantias implica em importante avanço civilizatório para o processo penal, afastando a possibilidade de comprometimento psicológico do juiz que determinou a prisão ou medidas cautelares restritivas, com a procedência da acusação.

Não é tarefa fácil a qualquer pessoa, nisso incluídos os magistrados, absolver um réu cuja prisão provisória decretou e manteve até a véspera da sentença. Por maior que seja o espírito de justiça, existe uma pressão ou autossugestão interna pela condenação e consequente manutenção do status quo do preso, muitas vezes condenado antecipadamente mediante um processo psicológico formado antes mesmo do processo, notadamente em casos de maior publicidade. O juiz das garantias é, assim, maior garantia de imparcialidade na prestação jurisdicional, ao menos na primeira instância, já que os detentores de foro privilegiado não terão a mesma proteção.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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