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Segurança da coisa julgada em decisões de controle concentrado de constitucionalidade

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

30 de agosto de 2023, 13h20

Muito tem sido dito sobre o entendimento do STF (Supremo Tribunal Federal) a respeito dos Temas 881 e 885, quanto à chamada relativização da coisa julgada. Notadamente no que concerne aos efeitos modulatórios. Nesta oportunidade, cabe enfatizar o regime adotado nas relações futuras, daquilo que ficou assentado como resultado unânime da decisão, quanto ao cabimento da cobrança em face dos prazos de decadência, ou seja, quando a exação não tenha sido objeto de lançamento tributário. E notadamente naquelas situações com ações rescisórias em curso.

Na função de estabilidade sistêmica, a segurança jurídica protege situações que se consolidaram no tempo, ao garantir a irretroatividade das leis e impedir que seus efeitos atinjam a coisa julgada, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, diretamente ou por regras de superposição, como são as de direito tributário. A presença dessas garantias na Constituição equivale a um compromisso firme do Estado Constitucional na preservação de direitos e liberdades. Pontes de Miranda bem as sintetizou: "a irretroatividade defende o povo; a retroatividade expõe-no à prepotência". [1]

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No Brasil, a estabilidade, calculabilidade ou previsibilidade [2] do direito integram a segurança jurídica na ordem temporal (segurança jurídica por estabilidade temporal), pelas garantias de anualidade, anterioridade e irretroatividade (vedação de regulação ex post facto); bem como do respeito aos direitos adquiridos, à autoridade da coisa julgada, enquanto preservação da regra patere legem quam ipse fecisti, segundo a qual a autoridade deve suportar e respeitar a regra editada,[3] além de determinação clara e objetiva de prazos de prescrição e decadência.

A normalidade é o "estado de segurança" ou o "estado de confiança". Quando um ou outro suporta alguma quebra de certeza ou de atuações nas dobras da Constituição, justificadas apenas por decisão da Autoridade Administrativa, e, conforme o caso, até mesmo pelo Estado-Juiz, mas sem que se configure estabilidade e segurança jurídica, confirmam-se o "estado de insegurança", o estado da "quebra de confiança", o "estado de exceção permanente".

Entre todos os princípios definidores da segurança jurídica, o princípio do due process of law assumiu a condição de instrumento de justiça, cujo ponto culminante é o juízo final do processo, com efeitos que têm por conteúdo alterações nas relações entre as partes e entre estas e terceiros, quando versem sobre direito material, o qual recebera o manto da imunização pela garantia constitucional da coisa julgada.

A efetividade da prestação jurisdicional, que põe norma jurídica válida no sistema, depende de uma série de circunstâncias para serem atendidas, que se podem resumir nas seguintes: independência do juízo e carências de vícios sobre as atitudes das partes no processo (i), atos judiciais hígidos e fundados na legalidade prévia do devido processo, com tratamento paritário, publicidade dos atos processuais e motivação das decisões (ii), livre produção e apreciação de provas (iii), julgamento fundado na legalidade material, nos limites do pedido (iv), acessibilidade ao judiciário (v) e duração razoável do processo (vi).

Com isso, os critérios sobre "autoridade", "competência" e "processo" restam atendidos e a norma posta (acórdão — mérito), porque válida, ao assumir os efeitos de "coisa julgada", não pode ser modificada, salvo por ação rescisória nas hipóteses previstas na lei processual.

Da segurança jurídica procedimental ou processual, passa-se à segurança jurídica da estabilidade do caso julgado, como medida de validade normativa. De se ver, só haverá res iudicata quando verificado o atendimento ao princípio do "devido processo legal", como condição de validade da norma posta (sentença), para que os "direitos adquiridos" sejam respeitados.

Este é o efeito de segurança jurídica processual que o ordenamento deve oferecer, o respeito ao devido processo legal. E em matéria tributária, nada muda. Antes, reforça-se a segurança jurídica desejada, pela presença da Fazenda Pública, que deve respeitar todos os pressupostos imanentes aos princípios de "devido processo legal" e de "coisa julgada", preservando os direitos adquiridos e fazendo cumprir os mandamentos das decisões judiciais que lhes forem desfavoráveis.

A jurisdição funda-se no direito de livre acesso ao Judiciário (CF, artigo 5º, XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito") e prossegue no exercício do devido processo legal (CF, artigo 5º, LIV: — "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"). Seria o mesmo que negar eficácia a esses direitos qualquer prejuízo à autoridade da coisa julgada (CF, artigo 5º, XXXVI).

No Brasil, a coisa julgada encontra-se definida pelo Código de Processo Civil, especificamente pelo artigo 502, nos seguintes termos: "Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso".

A imutabilidade impede qualquer renovação das pretensões deduzidas em processos amparados pela eficácia da coisa julgada, agora, permanente no tempo. A indiscutibilidade, por sua vez, veda que uma mesma matéria possa ser alegada em processos diferentes entre as partes de um outro processo.

Consolida-se, desse modo, a segurança jurídica da res iudicata entre as partes, nos limites da sentença, a impedir que se renove discussão sobre a relação de direito material entre as mesmas partes já julgada. Somente com o trânsito em julgado, as referidas alterações sujeitam-se aos efeitos de indiscutibilidade e de imutabilidade da sentença[4]

Deveras, ainda que se trate de relação tributária continuativa, se o provimento jurisdicional requerido baseia-se em discussões específicas de fato, relativas às operações realizadas, ou a qualquer outro elemento circunstancial não reproduzível no tempo, a eficácia da coisa julgada correspondente ao comando normativo concreto será igualmente específica e circunstancial.

Ao revés, na hipótese da relação jurídica tributária continuativa, caso seja requerido provimento jurisdicional com o objetivo de se obter a declaração de inexistência ou existência dessa relação, a decisão judicial que colocar termo à lide, ao constituir coisa julgada, produzirá eficácia prospectiva, alcançando os fatos futuros que decorrerem da mesma relação jurídica.

Impõe-se delimitar, ainda, a eficácia da coisa julgada nos casos de declaração e reconhecimento de inconstitucionalidades em matéria tributária, especialmente, diante do teor da Súmula do STF nº 239, assim redigida: "Decisão que declara indevida a cobrança do imposto em determinado exercício não faz coisa julgada em relação aos posteriores".

Nesse particular, a coisa julgada mantém seus efeitos em matéria tributária como em qualquer outra, sem qualquer especialidade. E vale lembrar que o próprio Supremo afastou, de modo expresso, o limite de eficácia restrita ao exercício financeiro à coisa julgada declaratória da imunidade, por entender, em diversos julgados, que o teor da a Súmula nº 239 aplica-se exclusivamente às hipóteses de exigências formais de tributos que aludam a um determinado exercício financeiro (RE 83.225; RE 93.048-SP), sem qualquer alcance sobre questões materiais, como a manutenção de um certo direito.

Quanto ao mérito de constitucionalidade, decidiu o STF no julgamento dos Temas nº 881 (RE nº 949.297/CE) e 885 (RE nº 955.227/BA), da Repercussão Geral, que:

"1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo. 2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo."

Assim, o Supremo firmou o entendimento de que as decisões por ele proferidas com efeitos erga omnes interrompem automaticamente a decisão transitada em julgado em sentido diverso em relação aos fatos geradores posteriores à publicação da ata de julgamento daquela decisão proferida em controle concentrado ou difuso com repercussão geral respeitados, ainda, os princípios da anterioridade anual e da noventena.

É o que se extrai do seguinte trecho do Voto do Ministro Edson Fachin, Relator do Recurso Extraordinário nº 949.297/CE, verbis:

"A eficácia temporal de coisa julgada material derivada de relação tributária de trato continuado possui condição resolutiva que se implementa com a publicação de ata de ulterior julgamento realizado em sede de controle abstrato e concentrado de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, quando os comandos decisionais sejam opostos, observadas as regras constitucionais da irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, de acordo com a espécie tributária em questão. Considerando razões de segurança jurídica, com destaque ao seu consectário da proteção da confiança dos contribuintes acobertados pela coisa julgada, o presente entendimento tem eficácia pró-futuro a partir da publicação da ata de julgamento desta decisão.[5]

Desse modo, a Fazenda Pública encontra-se autorizada a exigir tributo de contribuinte amparado por coisa julgada (que reconhecia a inconstitucionalidade da exação) a partir do reconhecimento da constitucionalidade de determinado tributo pelo E. STF, com eficácia erga omnes, observados os princípios assinalados: irretroatividade e anterioridade.

Nesse ponto, é relevante identificar que a ineficácia da coisa julgada diante dos novos fatos jurídicos, nas relações continuativas, independe de intervenção do Poder Judiciário, ressalvado o caso de alteração de entendimento do STF com eficácia erga omnes e vinculante.

Sobre o marco temporal da interrupção dos efeitos da coisa julgada, decidiu o STF no julgamento da Recurso Extraordinário nº 955.224/BA, verbis:

"Por conseguinte, tem-se que a publicação da ata de julgamento em controle concentrado ou controle difuso em repercussão geral equivale ao primeiro dia de vigência da nova norma que somente produzirá efeitos após os referidos períodos de 'vacatio legis', garantias fundamentais dos contribuintes que asseguram certo grau de segurança jurídica. Por óbvio, a aplicação da anterioridade aqui aventada só deverá beneficiar aqueles contribuintes que possuíam decisões judiciais transitadas em julgado em seu favor."

Isso não quer dizer que a coisa julgada vê-se "anulada" pela declaração do E. STF, efeito que somente poderia ser obtido pela ação rescisória (no prazo legal de dois anos do trânsito em julgado); mas que cessam seus efeitos a partir daquela decisão.

Então, a partir de qual prazo a fazenda pública poderia retomar sua cobrança naquelas hipóteses pendentes de ação rescisória? Não deve observar prazo de decadência ou, ao contrário, deve promover lançamento para exigir o tributo, como forma de prevenir o efeito decadencial?

Consolidado o entendimento de que o prazo decadencial não pode ser interrompido ou suspenso, bem como não é cabível o deslocamento de seu termo a quo, as referidas conclusões, por si só, levam à necessidade de lançamento para prevenir a decadência, caso contrário, a ação rescisória proposta pelo Fisco seria privada de efeitos práticos.

A decadência do direito de o Fisco efetuar o lançamento tributário está regulada por duas disposições normativas do CTN, preponderantemente, a saber: o artigo 150, § 4º, que prevê o prazo de cinco anos contados do fato gerador, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, na ausência de dolo, fraude ou simulação (i); e o artigo 173, inciso I, cujo prazo quinquenal conta-se do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o tributo poderia ter sido lançado (ii).

O que há, de fato, é a impossibilidade de exigir o crédito tributário lançado enquanto não transitar em julgado a decisão que rescindir a coisa julgada. Nada há de irregular no lançamento para prevenir a decadência que não enseja a cobrança enquanto a ação rescisória estiver pendente de julgamento. Afinal, não há que se confundir o lançamento tributário com o direito de fisco exigir o tributo.  

Nesse ponto, lançar o crédito tributário para prevenção da decadência é um dever do Fisco decorrente da atuação concreta deste para rescindir a coisa julgada. Em outras palavras, a materialização da intenção de rescindir a coisa julgada, que se dá mediante o ajuizamento da ação rescisória, é o marco de primeiro grau a ensejar a prevenção da decadência.

Há, ainda, um segundo momento ensejador do dever de realizar o lançamento para prevenção da decadência. Trata-se da publicação da Ata de Julgamento. Nesse átimo, surge para o Fisco um importante marco que representa o segundo momento em que, poderia ensejar, ainda com mais força, a obrigatoriedade de lançar para prevenir a decadência nos casos em que há ação rescisória ajuizada em momento anterior ao julgamento em repercussão geral.  

O "Lançamento para Prevenção de Decadência de Segundo Grau", que é aquele após o julgamento em repercussão geral, só tem lugar nos casos em que já há ação rescisória ajuizada em momento anterior, já que, nestes casos, resta consignado que o direito material de fundo que o Fisco pretende fazer prevalecer na ação rescisória mereceria procedência.

Ressalte-se, novamente, que o poder-dever do Fisco é apenas o de lançar o crédito em questão. A cobrança do crédito, por outro lado, segue suspensa. Só com o trânsito em julgado da ação rescisória é que os lançamentos para fins de prevenção de decadência poderão ser cobrados.

Caso o Fisco tenha se desincumbido do seu dever de lançar o tributo para prevenir a decadência, na ocasião do trânsito em julgado da ação rescisória poderá lançar e cobrar os tributos relativos aos últimos cinco anos, ou seja, relativo ao período não abarcado pela decadência.

Evidente, pois, que, desde que ajuizada a ação rescisória visando desconstituir a coisa julgada do contribuinte, deve o Fisco realizar o lançamento para prevenir a decadência.  Na hipótese de aguardar o trânsito em julgado da ação rescisória para realizar o lançamento, o Fisco só poderá autuar os fatos geradores ocorridos dentro do prazo decadencial de cinco anos.


[1] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição Federal de 1967 com a Emenda 1 de 1969, 2 ed., SP: RT, 1974, t. V, p. 20. Cf. MENDONÇA, Maria Luiza Vianna Pessoa de. O princípio constitucional da irretroatividade da lei: a irretroatividade da lei tributária. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 89 e ss.

[2] Nas palavras de Anne-Laure Valembois: “stabilité et previsibilité sont en effet les deux exigences qu'implique la sécurité juridique dans sa dimension temporelle”. VALEMBOIS, Anne-Laure. La constitutionnalisation de l’exigence de sécurité juridique en droit français. Paris: L.G. D. J., 2005, p. 201; Cf. RAITIO, Juha. The Principle of Legal Certainty in Ec Law. Dordrecht: Kluwer, 2003, p. 201 e ss.

[3] SCHERMERS, Henry G.; WAELBROECK, Denis F. Judicial Protection in the European Union. Hague: Kluwer, 2001, p. 84.

[4] Nas palavras de José Ignácio Botelho de Mesquita: “Define-se como trânsito em julgado o fato de não estar mais a sentença sujeita a recursos ordinários ou extraordinários.” (MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 11).

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Recurso Extraordinário nº 949.297/CE. Relator Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 08/02/2023, DJe 02/05/2023.

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