Público & Pragmático

Mecanismos para a inovação em contratos e processos de empresas estatais

Autor

  • Gustavo Schiefler

    é doutor em Direito do Estado (USP) advogado (Schiefler Advocacia) e professor (Zênite e IDP) em matéria de licitações públicas e contratos administrativos.

27 de agosto de 2023, 8h00

Inteligência artificial, blockchain, internet of things, computação quântica, supercondutores e energia limpa e renovável são exemplos de temas vinculados à inovação que entusiasmam gestores públicos e privados.

A celebração de parcerias estratégicas, contratuais e societárias, com pesquisadores de instituições científicas ou com startups promissoras; o foco na evolução do nível de maturidade tecnológica, a partir da fabricação de protótipos e plantas pilotos; o apreço pela escalabilidade comercial dos produtos e serviços; e a flexibilidade de uma política remuneratória conforme o atingimento de metas também são temas vinculados à inovação que entusiasmam gestores públicos e privados.

A inovação, como método de busca por criações e aprimoramentos em processos, tecnologias ou modelos de negócio, é um fenômeno econômico permanente e que possui característica muito singular: pareado com o potencial disruptivo, que convida o gestor à oportunidade, encontra-se o risco de insucesso, típico daquilo que é fronteiriço.

Em síntese, a possibilidade de não atingimento dos objetivos concebidos, por um lado, e a expectativa de um salto qualitativo em caso de êxito do projeto, por outro, são inerentes ao próprio conceito de inovação.

Essa dualidade é particularmente desafiadora para o gestor de uma empresa estatal.

Assimilando-a como necessária, porém falível, o dirigente de empresa estatal precisa adotar a inovação e deve arriscar sofrer perdas indesejadas à corporação para que determinados problemas institucionais sejam idealmente superados — desde que, é claro, exista uma adequada gestão de riscos e que as perdas potenciais não lhes sejam insuportáveis.

Nesse contexto, o conhecimento sobre as ferramentas jurídicas existentes para promover a inovação no âmbito das empresas estatais, com uma gestão adequada de riscos, não é somente desejável, mas determinante para o fenômeno. O domínio informacional sobre essas ferramentas jurídicas também diminui o indesejável receio apriorístico que dirigentes estatais possam ter por esta prática.

Feita esta introdução destacada sobre a relevância do tema, este artigo lista, de forma prática, algumas das principais ferramentas jurídicas que podem ser utilizadas por empresas estatais durante a jornada de planejamento e busca por inovação.

Os mecanismos estão separados em dois grupos: 1. Mecanismos de interlocução direta com o mercado para a concepção de projetos de inovação; e 2. Modelagens jurídicas típicas vocacionadas à contratação de projetos de inovação.

1. Mecanismos de interlocução direta com o mercado para a concepção de projetos de inovação
Atualmente, a jurisprudência dos tribunais e a própria Lei das Estatais autorizam que gestores de empresas estatais busquem auxílio direto, perante a iniciativa privada, para o planejamento de um projeto de inovação.

Em outras palavras, isto significa que é juridicamente permitido que a administração, antes de tomar qualquer decisão, apresente seus problemas concretos para que empresas, voluntariamente, respondam com o detalhamento técnico e jurídicos das modelagens e soluções inovadoras potenciais para resolvê-los. É permitido também que as próprias empresas busquem proativamente a empresa estatal para oferecer uma solução idealizada.

Esses diálogos público-privados ocorrem com diferentes graus de formalidade e de interação, desde uma simples tomada de subsídios até a obtenção, de forma legítima, das próprias minutas de edital, termo de referência, contrato e demais anexos a serem utilizadas na futura licitação ou contratação direta, como pode ocorrer no PMI.

Como referência pragmática para o assunto, que é de minha predileção, recapitulo muito sinteticamente alguns institutos de diálogo público-privado em processos de contratação pública a que me dediquei nos últimos anos [1], que podem ser aplicados no planejamento de um projeto de inovação:

a) Procedimento de manifestação de interesse (PMI): procedimento administrativo consultivo por meio do qual a Administração Pública organiza, a partir de um edital de chamamento público, a oportunidade para que particulares, por conta e risco, elaborem os documentos necessários à estruturação de um processo de contratação pública dedicado a resolver um problema predeterminado. Está previsto no art. 31, §4º, da Lei das Estatais e, mais recentemente, no art. 81 da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021).

b) Manifestação de interesse da iniciativa privada (MPI): O PMI pode ser originado de uma MIP, o que ocorre quando há manifestação espontânea, sem prévia solicitação da Administração, de um particular, que revela o interesse em oferecer seus estudos e projetos, ou de elaborá-los, a fim de contribuir com a modelagem jurídica-institucional de algum contrato da Administração Pública. Se a MIP interessar à Administração Pública, em regra, promoverá um PMI.

c) Request for information (RFI) e Request for proposal (RFP): são procedimentos administrativos atípicos, simplificados, sem regulamentação específica na lei, em que a Administração Pública solicita informações aos agentes econômicos a respeito de algum bem ou serviço, a fim de obter maior conhecimento e, possivelmente, estruturar o edital licitatório e dar seguimento a uma licitação pública, ou ainda, proceder a uma contratação direta. A diferença está no nível de maturação do projeto pretendido por quem solicita essas informações. Se a Administração Pública demanda informações técnicas para que possa montar uma minuta de projeto básico, o procedimento adequado é o RFI. Caso a Administração Pública já detenha um conjunto de informações técnicas, por meio das quais, inclusive, elaborou uma minuta de projeto básico, mas ainda possui dúvidas sobre a sua adequação, orçamento ou sobre as possíveis soluções variantes, o procedimento adequado é o RFP.

d) Road show: organização de eventos presenciais pela administração pública, em regra sequenciais e em diferentes localidades, em que convida particulares potencialmente interessados para que conheçam informações detalhadas sobre um determinado projeto de caráter contratual. O objetivo, além de obter contribuições técnicas, é promover a competitividade do futuro certame.

e) Consulta pública e audiência pública: clássicos institutos de participação popular por meio do qual os cidadãos e empresas podem opinar por escrito, no caso da consulta pública, ou oralmente, no caso da audiência pública, em momento prévio à adoção definitiva de alguma decisão no âmbito do processo administrativo contratual.

f) Tomada de subsídios: construção do conhecimento sobre dada matéria de interesse da administração, relacionada com um potencial processo de contratação pública em fase incipiente, o que é realizado a partir do encaminhamento, pelos particulares, de contribuições por escrito. Pode ser aberto ao público ou, justificadamente, restrito a alguns particulares convidados.

g) Reunião participativa: construção do conhecimento sobre matéria específica, relacionada com um processo de contratação pública em fase de maturação, o que é realizado a partir da participação em sessões síncronas, com contribuições orais ou escritas de particulares. Também pode ser aberto ao público ou, justificadamente, restrito a alguns particulares convidados.

Este conjunto de institutos de diálogo com o mercado encontra-se previsto atualmente no Regulamento Interno de Licitações e Contratos do Banco do Brasil [2], o que pode servir como uma boa referência para outras empresas estatais.

2. Modelagens jurídicas típicas vocacionadas à contratação de projetos de inovação
Atualmente, quando o assunto é a contratação de um projeto de inovação, o dirigente de uma empresa estatal possui inúmeras modelagens jurídicas específicas à sua disposição, que extrapolam a contratação ordinária a partir de uma licitação comum. As principais delas encontram-se descritas adiante:

a) Parcerias estratégicas para oportunidades de negócios: modelagem jurídica inaugurada pela Lei das Estatais (artigo 28, §3º, II), por meio da qual, em razão de uma oportunidade de negócio identificada no mercado, a empresa estatal pode celebrar parceria estratégica com outra empresa. A característica central dessa modelagem é a inaplicabilidade do regime licitatório e flexibilidade jurídica dedicada à modelagem dessas parcerias, que podem ir muito além de um simples arranjo contratual, abrangendo a possibilidade de operações societárias com a empresa estatal, como a aquisição e alienação de participação em sociedades, ou a criação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), ou mesmo o estabelecimento de “outras formas associativas”. É comum que uma parceria estratégica como essa seja formada para obter uma sinergia duradoura de negócios entre uma empresa estatal e uma startup dedicada à inovação tecnológica.

b) Convênios para pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I): uma empresa estatal pode transferir recursos financeiros no âmbito de um projeto de pesquisa, desenvolvimento e inovação de seu interesse, a ser executado por instituição científica, tecnológica e de inovação (ICT), pública ou privada, ou a pesquisadores a ela vinculados. Está previsto no artigo 9º-A da Lei nº10.973/2004.

c) Diálogo competitivo: muito embora esta modalidade licitatória não seja prevista na Lei das Estatais, apenas na Lei nº 14.133/2021, é totalmente possível estruturar, em regulamento interno da empresa estatal, um procedimento análogo, com as mesmas características, por meio do qual se misturam conceitos do PMI e da pré-qualificação seguida de licitação pública. Trata-se de um mecanismo inteiramente vocacionado à contratação de inovação tecnológica ou técnica, ou ainda para a adaptação de soluções já disponíveis, mediante diálogo intenso com atores de mercado, interessados na contratação, para o desenho da melhor solução técnica.

d) Contrato público de solução inovadora: modelagem contratual inaugurada pelo Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador (Lei Complementar nº 182/2021), vocacionada a (1) resolver demandas públicas que exijam solução inovadora com emprego de tecnologia; e a (2) promover a inovação no setor produtivo por meio do uso do poder de compra do Estado. Pode ser empregado a projetos com ou sem risco tecnológico.

e) Encomenda tecnológica (Etec): contratação vocacionada a projetos de inovação que possuem como característica o baixo nível de maturidade tecnológica, ou seja, é marcada justamente pela existência obrigatória de risco tecnológico. Quando há risco tecnológico, o resultado da contratação é incerto em razão do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização do projeto. A Etec é semelhante ao contrato público de solução inovadora com risco tecnológico, com a diferença de que não depende de licitação pública, possui limitações de valores e seus prazos são mais flexíveis. Está prevista no Marco da Ciência, Tecnologia e Inovação, com regulamentação pelo Decreto nº 9.283/2018.

Todos esses instrumentos servem à estruturação de uma política de inovação para as empresas estatais. O tema é particularmente desafiador para essas entidades porque, nesse caso, o dever de prestação de contas não está atrelado apenas aos seus eventuais acionistas de mercado, presumidamente habituados às áleas do negócio e da inovação.

O conceito de accountability, no âmbito das empresas estatais, envolve a demonstração de boa administração aos órgãos de controle, de origem interna e externa, como tribunais de contas e ministério público, que podem avaliar os meios empregados e os resultados alcançados a partir das decisões empresariais tomadas.

Como os resultados não podem ser exigidos pelos órgãos de controle em um projeto de inovação, a adequada gestão dos seus riscos ganha destaque, o que somente se perfectibiliza mediante a compreensão dos mecanismos jurídicos à disposição para a inovação em contratos e processos das empresas estatais.

 


[1] SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos Público-Privados. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.

[2] Disponível em https://www.bb.com.br/docs/portal/disec/rlbb270821.pdf. Acesso em 25 ago. 2023.

Autores

  • é sócio do escritório Schiefler Advocacia, doutor em Direito do Estado (USP) e professor em cursos de capacitação e pós-graduação na área de licitações públicas e contratos administrativos (Zênite e IDP).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!