Linha dura

Regras do regime aberto em MG abrem discussão sobre individualização da pena

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21 de agosto de 2023, 8h49

O endurecimento generalizado das regras impostas aos apenados que cumprem pena no regime aberto na comarca de Guaxupé (MG) tem levado o Poder Judiciário de Minas Gerais e o Superior Tribunal de Justiça a avaliar quais são os limites da execução da pena, tendo em vista a necessidade de sua individualização.

CNJ
Ao passar para o regime aberto, preso é autorizado a ir e voltar do trabalho, mas deve se recolher no restante do tempo
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A batalha jurídica é travada há um ano e meio, mais precisamente desde 19 de janeiro de 2022, quando a juíza titular da Vara Criminal de Guaxupé, Cristiane Vieira Tavares Zampar, reviu as condições de cumprimento de pena com base nas especificidades da comarca, e não de cada apenado.

A mudança foi motivada pelo aumento considerável do número de boletins de ocorrência noticiando o descumprimento das regras do regime aberto, modalidade que permite ao preso deixar a reclusão no período em que estiver trabalhando.

De acordo com o artigo 33, parágrafo 1º, alínea "c", do Código Penal, a execução da pena no regime aberto deve ser feita na casa do albergado, um tipo de estabelecimento que não existe em Guaxupé.

Como a Súmula 56 do Supremo Tribunal Federal indica que a falta de local adequado não autoriza a manter o condenado em regime prisional mais gravoso, a saída, na cidade mineira e em tantas outras do Brasil, é mandar os apenados do regime aberto para o domiciliar.

O artigo 115 da Lei de Execuções Penais prevê quatro condições gerais e obrigatórias para o regime aberto. Em suma, impõe que o apenado permaneça no local designado e seja autorizado a sair e voltar do trabalho em horários fixados previamente.

A mesma norma autoriza o juiz a estabelecer condições especiais para a concessão de regime aberto. E o artigo 116 prevê que essas regras podem ser modificadas até mesmo de ofício, desde que as circunstâncias assim o recomendem.

Com base nesse poder, a magistrada impôs 12 novas regras a todos os apenados do regime aberto da comarca, independentemente do crime cometido, da pena imposta e do histórico prisional de cada um. Algumas delas endureceram regras gerais, outras simplesmente criaram imposições.

12 mandamentos
O agravamento decorreu da experiência e da vontade da magistrada. Ela percebeu, por exemplo, que os apenados estavam abrindo empresas para emitir declarações de emprego fictícias em favor de outros condenados. E que essa mesma estratégia era usada para forjar propostas de trabalho em outras comarcas, na tentativa de livrar os presos das rígidas condições do regime aberto em Guaxupé.

Além disso, policiais estariam com dificuldades para fiscalizar se os apenados seguiam recolhidos em prisão domiciliar no período de repouso. A alegação dos condenados era de que não conseguiam ouvir os chamados da rua ou estavam dormindo.

Reprodução
Em diversos julgados, TJ-MG validou condições especiais gerais estabelecidas para os presos do regime aberto em Guaxupé

A saída encontrada pela juíza foi proibir os apenados do regime aberto de conviver com outros sentenciados ou com pessoas que respondam a processos criminais, inclusive no trabalho. Ela também determinou a instalação de campainha nas residências, para permitir o acionamento pela Polícia Militar.

Mas não foi só isso. Os apenados foram proibidos de ficar na calçada ou na entrada de casa — deveriam, portanto, ficar dentro da residência, com portas ou portões fechados. E também não poderiam se deslocar a qualquer lugar sem autorização judicial.

O tema bebida alcóolica mereceu destaque nas novas regras. A juíza proibiu o consumo de álcool de qualquer espécie, ordem justificada pela necessidade de manter boa saúde mental para evitar o cometimento de crimes. E vetou a ida a bares, boates, botequins, casas de prostituição ou semelhantes, mesmo para comprar mercadoria diversa de bebida alcoólica, para, assim, evitar o contato com ambientes propensos ao delito.

Nesse cenário, os condenados também passaram a estar sujeitos à fiscalização pela PM em qualquer horário, inclusive à noite, aos feriados e várias vezes ao dia, quando poderiam ser submetidos ao bafômetro sem qualquer justificativa.

Estigmatização do apenado
Contra o que a magistrada generalizou, a Defensoria Pública precisou recorrer de forma individualizada. Houve a interposição de agravo em execução penal em mais de cem processos, mas o endurecimento foi considerado válido em diversos julgados da 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG).

Para o defensor público Flavio Wandeck, a decisão de primeiro grau chama a atenção pelos seus componentes estigmatizantes, a começar pela ligação que a juíza faz entre o aumento dos boletins de ocorrência na cidade e os apenados do regime aberto.

A conexão entre álcool e criminalidade, que atinge também pessoas condenadas por condutas sem qualquer relação com a substância, e o excessivo rigor ao proibir portas e janelas abertas nas casas dos apenados e ao prever que sejam fiscalizados até mesmo de madrugada são elementos que indicam o mesmo, segundo ele.

"Estamos falando de alguém que vem cumprindo pena, já teve progressão, está buscando se reinserir na sociedade. É uma pessoa que precisa acordar cedo e ir ao trabalho. Ela vai ter de ser acordada durante a madrugada para sofrer uma espécie de baculejo por parte da polícia? Isso não tem nenhum efeito a não ser estigmatizar e até humilhar."

A princípio, o TJ-MG validou as condições impostas pela juíza por entender que a lei confere a ela o poder de estabelecê-las. Foi só no Superior Tribunal de Justiça que os limites passaram a ser delimitados.

Generalização inviável
Por meio de decisões monocráticas e em julgamentos colegiados, tanto a 5ª quanto a 6ª Turmas do STJ entenderam haver constrangimento ilegal na imposição das novas condições gerais para o regime aberto em Guaxupé. Essas condições dependeriam da análise da situação de cada apenado, o que não ocorreu.

As decisões da corte superior cassaram os acórdãos do TJ-MG e a própria decisão do Juízo de Execução Penal de Guaxupé, conferindo a possibilidade de uma nova determinação legal, desde que de forma fundamentada e individualizada. A magistrada, então, repetiu a decisão incluindo as justificativas gerais, mas sem especificar o caso de cada apenado.

Lucas Pricken/STJ
Julgados do STJ anularam o endurecimento das regras para o regime aberto por não individualizar a situação de cada apenado
Lucas Pricken/STJ

A Defensoria Pública, então, voltou a ajuizar embargos à execução penal, o que levou o TJ-MG, em alguns casos, a fazer ajustes: afastou a determinação de instalação de campainha nas casas; a previsão de testes de bafômetro; e a proibição de conviver e trabalhar com sentenciados ou pessoas que respondam a processos criminais. O resto permaneceu.

A impetração de novo Habeas Corpus no STJ para tratar de um tema já apreciado se tornou inviável. Restou à Defensoria o ajuizamento da reclamação, instrumento que permite a preservação da competência e da autoridade das decisões dos tribunais diante de algum desrespeito ou descumprimento.

O primeiro desses casos foi apreciado pela 3ª Seção do STJ no último dia 9. A Defensoria Pública mineira se insurgiu especificamente contra dois pontos: a proibição de frequentar lugares que comercializem bebidas alcoólicas e a própria proibição de consumo, de viés moralista, segundo o órgão.

Flávio Wandeck destacou na tribuna que o apenado, no caso concreto, cumpre pena por roubo, delito sem qualquer ligação com bebida alcoólica — não houve violência doméstica ou direção alcoolizada. "É um sentenciado exemplar. Isso o impede até de almoçar em um local que venda bebida alcoólica."

O que pode e o que não pode
Relator da matéria, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que a proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres está prevista no artigo 124, inciso III, da Lei de Execução Penal. Com isso, não pode ser considerada derivada de concepções da juíza da causa.

Já a proibição de consumo de álcool em quaisquer circunstâncias foi feita sem vinculação com o caso do apenado. Não há comprovação, por exemplo, de que o consumo de bebidas possa ter levado ao cometimento do crime, nem da existência de problemas de saúde específicos.

"Não se nega que o apenado não deve ingerir álcool durante o trabalho ou ao dirigir. Mas não parece irrazoável que, dentro da residência, ele venha ingerir algum tipo de bebida como cerveja, cujo consumo não é vedado no ordenamento jurídico."

A reclamação foi julgada parcialmente procedente para determinar à juíza de Guaxupé que reveja a condição especial de proibição do consumo de álcool, eliminando-a ou apresentando nova fundamentação para sua manutenção.

Rcl 45.054 (STJ)
HC 749.408 (STJ)
HC 761.674 (STJ)
HC 744.193 (STJ)
HC 752.402 (STJ)
HC 757.985 (STJ)
AGEXP 1.0287.16.008536-4/002 (TJ-MG)
AGEXP 1.0000.22.038924-1/001 (TJ-MG)
AGEXP 1.0000.22.032058-4/001 (TJ-MG)
AGEXP 1.0287.18.003178-6/002 (TJ-MG)
EXP 0031786-13.2018.8.13.0287 (1º grau)

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