Combinado ou legislado?

Execução imediata da pena do colaborador premiado é ilegal, diz ministro do STJ

Autor

17 de agosto de 2023, 20h38

A execução imediata da pena privativa de liberdade, mesmo quando prevista em um acordo aceito pelo colaborador premiado e homologado pelo juízo, acaba por ofender o devido processo legal e a presunção de inocência. Logo, não pode ser admitida.

Rafael Luz/STJ
Sanções atípicas devem também observar direitos e garantias fundamentais,
disse o ministro Mauro Campbell
Rafael Luz/STJ

Com esse entendimento, o ministro Mauro Campbell Marques abriu divergência no julgamento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça que analisa o caso de um empresário, alvo da finada "lava jato", que aceitou colaborar com o Ministério Público Federal.

A negociação culminou em um acordo para cumprir 15 anos de pena em sanções atípicas — ou seja, não previstas em lei —, francamente brandas, e que terão como momento mais gravoso o período de um ano de recolhimento domiciliar das 20h às 6h e aos finais de semana.

Do total da pena, o colaborador passará 12 anos e seis meses tendo apenas de informar semestralmente seu endereço e contato, além de fornecer relatórios sobre suas atividades. Uma das cláusulas do acordo previu seu cumprimento "imediatamente após a homologação".

Esse foi o ponto impugnado pela defesa ao STJ. A alegação é que seria necessário aguardar a prolação da sentença condenatória, a qual, nos casos de colaboração premiada, é uma mera apreciação dos termos do acordo, uma vez que a análise do documento já foi feita pelo próprio juízo quando da homologação.

Relator da matéria, o ministro Raul Araújo votou em maio por negar o recurso da defesa. Ele sustentou que a forma de cumprimento da pena no caso concreto não é prisão no sentido estrito de reprimenda estatal, mas mera condição do acordo com o qual o colaborador concordou.

Em voto-vista proferido nesta quarta-feira (16/8), o ministro Mauro Campbell divergiu para dar razão às alegações defensivas. O julgamento foi interrompido por novo pedido de vista, desta vez feito pela ministra Nancy Andrighi.

Presunção de inocência
A divergência se baseou em inovações sobre o tema surgidas após a homologação do acordo: a mudança da posição sobre o cumprimento da pena após condenação em segunda instância e a entrada em vigor do pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019).

No primeiro caso, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que o cumprimento de qualquer pena, conforme prevê a Constituição, só pode se dar com o trânsito em julgado da sentença condenatória. E, para o ministro Mauro Campbell, isso se aplica também à pena negociada.

Lucas Pricken
Ministro Raul Araújo votou por manter execução antecipada da pena, por ter sido ela livremente negociada pelo colaborador
Lucas Pricken

Nesse ponto, o relator havia entendido que não há no caso qualquer espécie de reprimenda estatal. Em vez disso, há condições combinadas, as quais, se descumpridas, não geram qualquer consequência prevista na lei penal, a não ser a quebra do acordo.

Nessa hipótese, o Ministério Público estaria livre para oferecer denúncia, instaurar ação penal e, provavelmente, impor ao réu condições bem menos benéficas do que as alcançadas por ele por meio da delação premiada.

Para o ministro Mauro Campbell, no entanto, punição negociada com o MPF é pena, ainda que atípica. E, como tal, deve observar direitos e garantias fundamentais como a presunção de inocência, principalmente diante da ausência de parâmetros legislativos claros sobre o tema.

Limites do Ministério Público
Esse cenário, em sua análise, levou a uma avocação de poder por parte do MP, que, por meio de tais cláusulas, pretendeu alijar o Estado-juiz da definição dos contornos normativos da sanção penal. A consequência é a existência de um órgão que atua como investigador, acusador e julgador, o que não se admite.

"Amparado na premissa da admissão das sanções premiais atípicas, pretende o MP, com ampla liberdade, fixar a reprimenda a ser cumprida em substituição ao próprio legislador e determinar o imediato cumprimento do comando por ele estipulado logo após a homologação, à revelia de atuação do Judiciário na prévia verificação da culpabilidade do agente", criticou o magistrado.

Isso faria com que, na eventual prolação da sentença, o juiz não tivesse o que fazer senão concordar com a situação de que a reprimenda penal já foi cumprida, independentemente do desfecho da ação penal, a qual segue indispensável no caso.

Além disso, o ministro Mauro Campbell destacou que o pacote "anticrime" introduziu no ordenamento jurídico a possiblidade de questionar judicialmente acordos de colaboração premiada, ou mesmo a decisão de sua homologação, como é precisamente o caso dos autos.

"Não se pode negar que os espaços de consenso abertos no processo penal após o advento de sucessivas mudanças legislativas operadas em tempos recentes devem respeitar os direitos e garantias fundamentais do colaborador, cuja abrangência foi redimensionada de maneira significativa após a celebração do referido acordo."

Pet 12.673

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!