Opinião

Supremo Tribunal Federal interpreta garantia de prescrição contra o réu

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16 de agosto de 2023, 11h18

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal julgou, em plenário, o Tema nº 788, cuja discussão girava no entorno do marco inicial da prescrição da pretensão executória (artigo 112, inciso I, CP).

A vexata quaestio dizia respeito à recepção da locução "para a acusação" constante do referido dispositivo. Isto é, se o início da fluência do prazo prescricional da pretensão executória deveria se dar a partir do trânsito em julgado para o representante do Ministério Público, conferindo uma interpretação literal ao artigo da Lei Penal.

Em síntese, o Pretório Excelso decidiu pela não recepção da locução "para a acusação" e compreendeu como marco inicial o trânsito em julgado para ambas as partes, momento em que, segundo a decisão, emerge para o Estado a pretensão de executar a pena.

A racionalidade decisória teve como fundamento o julgamento das ADCs nºs 43, 44 e 54 e o entendimento conferido naquela ocasião ao princípio da presunção de inocência. Em essência, o raciocínio seria o seguinte: se o Supremo Tribunal Federal compreendeu que o Estado somente pode cumprir a reprimenda quando do trânsito em julgado da sentença condenatória, logo seria plausível que a prescrição da pretensão executória tivesse o seu marco inicial nesse momento. Por isso, o acórdão modulou os efeitos da decisão para aplicá-la somente nos casos em que não há declaração de prescrição e cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em momento posterior a 12 de novembro de 2020, data em que foram julgadas as ADCs.

O tema é relevante. Antes, porém, é preciso fazer uma breve reflexão, fundamentalmente por aqueles que visualizam os efeitos que uma persecução penal provoca no indivíduo.

Em um processo penal ideal:  

1. Inquéritos policiais apuram os fatos em até 30 dias (artigo 10, CPP);
2. As provas observam, com rigor, a cadeia de custódia (artigo 158-A e seguintes, CPP);
3. Crimes materiais são solvidos por meio de perícia técnica (artigo 158, CPP);
4. Denúncias são oferecidas em até 15 dias do encerramento da investigação (artigo 46, CPP);
5. A acusação sempre expõe o fato com todas as suas circunstâncias (artigo 41, CPP);
6. O Ministério Público age de modo absolutamente imparcial e, havendo dúvida, deixa de oferecer a denúncia;
7. O juiz, quando recebe a inicial acusatória, analisa com rigor as hipóteses do artigo 395, somente recebendo a denúncia quando presentes os pressupostos legais e, aí sim, manda citar o réu;
8. Depois, em outra oportunidade, o juiz analisa com maior cautela as questões trazidas pela defesa e, se entender por bem, absolve sumariamente (artigo 397, CPP). Sequer sabe que existe um princípio que se chama in dubio pro societate;
9. Na instrução processual penal, atua com imparcialidade e observa com rigor artigos como o 212, jamais buscando produzir prova em substituição à acusação e;
10. Na sentença, enfrenta todos os argumentos suscitados pela defesa e produz uma decisão que somente condena quando as evidências lhe conduzem à certeza para além da dúvida razoável.

Contudo, esse é o mundo ideal. A questão é:

  1. existem decisões judiciais que exigem o cumprimento da literalidade desses dispositivos na sua essência, no seu cerne?
  2. Por exemplo, que o juiz, quando analisa a denúncia, busque barrar acusações sem provas?
  3. Que o MP investigue também em favor da defesa?
  4. Que o juiz tenha um mínimo de cautela na análise dos pressupostos típicos da conduta? Pelo contrário, o que se percebe no dia a dia dos tribunais são decisões que conformam a chamada jurisprudência defensiva, do tipo: o juiz não está obrigado a enfrentar todos os argumentos defensivos, a palavra da vítima em crimes de violência doméstica tem especial preponderância, o recebimento da denúncia não exige do juiz uma análise exaustiva e tantas outras. Muitas em desfavor do réu. Isso porque talvez seja difícil, para quem está do outro lado do balcão, visualizar o que uma acusação infundada gera de consequências nefastas na vida do indivíduo. Carnelutti já dizia, de há muito, que o processo penal equivale à tortura[1].

A prescrição, não é de hoje, vem sofrendo alterações que tem por propósito reduzir o seu âmbito de abrangência. Todavia, no plano legislativo, denota-se que apenas uma alteração — feita pela Lei n.º 12.234/2010 — houve por restringir a aplicação do instituto (artigo 110, parágrafo 1º, CP).

Trata-se da prescrição retroativa a momento anterior ao recebimento da denúncia. Com efeito, desde a promulgação da referida lei, a única hipótese de prescrição no curso de investigação policial é aquela calculada com base na pena máxima cominada ao delito. Na prática, uma investigação de estelionato pela emissão de um cheque sem fundo (artigo 171, inciso VI, CP), por exemplo, pode vir a durar longos 12 anos sem que o Estado perca a sua pretensão punitiva.

De outro lado, o Supremo Tribunal Federal — antes da decisão trazida à debate — também firmou convencimento no sentido de que o acórdão confirmatório de sentença condenatória também é causa interruptiva (HC nº 176473/RR) [2]. A interpretação conferida ao artigo 117, inciso IV, do Código Penal contrasta com o seu texto, na medida em que o legislador, por meio da Lei n.º 11.596/2007, houve por acrescentar acórdão condenatório como interruptivo. A redação, portanto, diz que há interrupção pela publicação da sentença ou acórdão condenatório recorríveis.

No original, o artigo previa somente a hipótese de sentença condenatória. A bem da verdade, parece-nos que o legislador somente buscou uma maior precisão semântica. Isso para evitar alegações de que a sentença absolutória, em caso de reversão pelo tribunal, constituiria um marco interruptivo. O ministro Celso de Mello, quando do julgamento do Habeas Corpus, foi cirúrgico em demonstrar a diferença elementar entre acórdão confirmatório e o condenatório.

Voltemos ao Tema nº 788. O acórdão que firmou a tese, em resumo, interpreta o artigo 112, inciso I, o vinculando diretamente com a compreensão firmada em controle concentrado de constitucionalidade ao princípio da presunção de inocência.

A modulação dos efeitos, ainda, teve como data-base o julgamento das ADCs, a compreender que foi naquele dia em que o Supremo deu fim à discussão e estabeleceu como inconstitucional a execução provisória da pena. Desse modo, a partir daquele instante seria impossível exigir da acusação a execução da pena, posto que o acusado ainda poderia vir a discutir teses defensivas nas instâncias superiores.

Mais: o acórdão sugere que a interpretação literal do dispositivo exigiria do Ministério Público a interposição de recursos desnecessários, a fim de buscar proximidade com o marco inicial da prescrição da pretensão executória.

Façamos, então, novamente um escorço histórico. A redação original do artigo 112, alínea a, do Código Penal de 1940 estabelecia como marco inicial o trânsito em julgado da sentença condenatória, ou seja, sem fazer distinção[3]. Contudo, o artigo 637 do Código de Processo Penal — vigente até os dias de hoje — estabelece que recurso extraordinário não possui efeito suspensivo e, por consequência, demanda a remessa dos autos à origem para cumprimento da pena. O texto é de 1941.

Veja-se que a pretensão executória somente passaria a correr depois do início do cumprimento da pena, em caso de interposição do extraordinário. Por intermédio da Lei n.º 7.209/1984, o artigo 112, inciso I, passou a viger na forma como hoje está e alterou a redação original que, atualmente, o STF compreende como a mais adequada, i.e., se excluindo a locução "para a acusação".

O que faz o STF na decisão sobre o Tema nº 788 é uma verdadeira analogia in malam partem. Quer dizer, usa uma importante decisão que fez valer a literalidade da Constituição em prejuízo do réu. A questão de fundo, evidentemente, é pragmática. Cuida-se de reduzir ainda mais o âmbito de abrangência da prescrição, possibilitando, assim, persecuções criminais de anos e anos.

A ideia é nítida: evitar o constrangimento de ter que decretar sucessivas extinções de punibilidade pela perda do exercício de pretensão punitiva ou executória. Para isso, a receita é suprimir cada vez mais as garantias do acusado, a ponto de ignorar a literalidade da lei com amparo em decisão que confirmou a literalidade da Constituição de 1988. Ao contrário, a jurisprudência faz vista grossa quanto a denúncias ineptas, decisões de recebimento genéricas, restringe habeas corpus mesmo que o tema debatido seja matéria de ordem pública, e tantas outras coisas.

No mundo ideal do processo penal, nem sequer haveria de se falar em prescrição porque uma análise detida das acusações, já em um primeiro momento, evitaria o excesso de trabalho. O juiz solipsista não existiria e as decisões seriam proferidas depois da compreensão jurídica da causa. Não antes. Não abarrotaria o Poder Judiciário com denúncias imputando fatos atípicos, com a atuação estratégica da acusação ou com o não esclarecimento do fato com todas as suas circunstâncias.

A realidade, porém, é outra: a flexibilização das regras tem por propósito facilitar a prestação jurisdicional e, de outro lado, restringir direitos do réu. Sempre é preciso lembrar: garantias devem sempre ser lidas contra o Estado. Mas estão sendo lidas a favor do Estado.

Por último, podemos debater os marcos da prescrição da pretensão executória. Afinal, quais foram as razões que levaram o legislador de 1984 a incluir a locução "para a acusação"? O que se espera do Estado em termos de exercício da pretensão executória antes do trânsito em julgado da sentença condenatória? São questões interessantes. Não quer dizer que concordamos com o marco inicial quando se opera o trânsito em julgado para a acusação.

É, em verdade, debater por qual motivo o Supremo Tribunal Federal interpreta o artigo 112, inciso I, contra o réu. Qual a legitimação constitucional que está por detrás disso. Não se concorda com o termo inicial. Ok. É válido. Porém, o debate não deve ser feito nos tribunais. Tal discussão, na ausência de legitimação para não observar a literalidade da lei, deve ser realizada no foro competente, no Congresso. Afinal, o judiciário não faz leis. Quer dizer, não deveria fazer leis. Só deveria aplicá-las.

 


[1] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Leme: CL EDIJUR, 2013.

[2] Vale destacar a sempre eloquente manifestação do Min. Celso de Mello, divergindo do entendimento: “com efeito, a causa de interrupção prescricional prevista no inciso IV do art. 117 do CP refere-se a “acórdão condenatório”, a cujo sentido conceitual não se subsume o acórdão meramente confirmatório de condenação penal anteriormente proferida em primeira instância.”

[3] Art. 112. No caso do art. 110, a prescrição começa a correr: a) do dia em que passa em julgado a sentença condenatória ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional;

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