Prática Trabalhista

A nova Lei 14.647/2023 e a inexistência de vínculo empregatício no trabalho religioso

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

10 de agosto de 2023, 8h00

O presidente da República sancionou a nova Lei 14.647, de 4 de agosto de 2023 [1], que alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para estabelecer, via de regra, a presunção legal quanto à inexistência de vínculo empregatício entre entidades religiosas ou instituições de ensino vocacional e seus ministros, membros ou quaisquer outros que a eles se equiparam [2].

De acordo com a atual lei ordinária que foi sancionada sem vetos, também não haverá relação de emprego mesmo que sejam desempenhadas atividades relacionadas à administração da entidade religiosa, ou, ainda, que estejam em formação.

Spacca
Indubitavelmente, a temática envolvendo o reconhecimento do vínculo de emprego no trabalho religioso sempre foi polêmica, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, desta ConJur [3], razão pela qual agradecemos o contato.

Aprovado no ano de 2022 pela Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1.096/2019 [4] que originou esta hodierna normatização afastou o vínculo de emprego dos ministros de confissão religiosa com as entidades, haja vista que o fundamento maior que caracteriza e identifica tal relação é baseado predominantemente na fé, na crença ou na consciência religiosa.

Dentre as justificativas desta propositura legislativa, constou que "a adesão à determinada Confissão Religiosa, seja ela Igreja ou Instituição, Ordem ou Congregação, para dela tornar-se ministro, pastor, presbítero, bispo, freira, padre, evangelista, diácono, ancião ou sacerdote, responde a um chamado de ordem espiritual, de perceber recompensas transcendentes e não ao desejo de ser remunerado por um serviço prestado como ocorre com o trabalho secular. Não se forma vínculo trabalhista entre ministros, pastores, presbíteros, bispos, freiras, padres, evangelistas, diáconos, anciãos ou sacerdotes e as organizações às quais se unem, por inexistirem os pressupostos de caracterização da relação de emprego" [5].

Aliás, conquanto o Projeto de Lei 1.096/2019, em sua escrita original, mencionasse, na época, um rol mais específico de pessoas que se dedicassem à essa prestação de serviços, na redação final, porém, houve uma maior abrangência de pessoas, sendo o texto mais genérico e amplo.

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Entrementes, antes mesmo da promulgação da Lei 14.647/2023, o Decreto nº 7.107/10 [6] já preceituava, em seu artigo 16, que "o vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos e equiparados é de caráter religioso e portanto, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira, não gera, por si mesmo, vínculo empregatício, a não ser que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica".

Noutro giro, a Lei 9.608, de 18 de fevereiro de 1988, que dispõe sobre o serviço voluntário, prevê que, em se tratando de serviços desta natureza, não há que se falar em vínculo empregatício, e tampouco em obrigações de natureza trabalhista, previdenciária ou afim [7].

Nesse desiderato, a partir da vigência da nova Lei 14.647/2023, a matéria passa a ser regulamentada. Se é verdade que para a configuração do liame empregatício devem estar presentes os requisitos contidos nos artigos 2º e 3º da legislação celetária; de igual modo, na prestação de serviços de natureza eclesiástica, embora tal relação possa se assemelhar àquela de natureza empregatícia, de igual modo é imperativo o cumprimento da norma legal, observadas, porém, as circunstâncias do caso concreto.

A respeito de tal temática, já nos ensinava a saudosa professora Alice Monteiro de Barros [8]:

"O trabalho de cunho religioso não constituiu objeto de um contrato de emprego, pois sendo destinado à assistência espiritual e à divulgação da fé, ele não é avaliável economicamente. Ademais, nos serviços religiosos prestados ao ente eclesiástico, não há interesses distintos ou opostos, capazes de configurar o contrato; as pessoas que o executam, o fazem como membros da mesma comunidade, dando um testemunho de generosidade, em nome da sua fé. Tampouco se pode falar em obrigação das partes, pois, do ponto de vista técnico, aquela é um vínculo que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa em proveito próprio de outrem. Esse constrangimento não existe no tocante aos deveres da religião, aos quais as pessoas aderem, espontaneamente, imbuídas do espírito de fé. Em consequência, quando o religioso, seja frei, padre, irmã ou freira, presta serviço por espírito de seita ou voto, ele desenvolve profissão evangélica à comunidade religiosa a que pertence, sendo excluído do ordenamento jurídico-trabalhista, ou seja, não é empregado. Isto porque há uma relação causal direta com o cumprimento dos votos impostos pela ordem religiosa e uma presunção de gratuidade da prestação, que é disciplinada pelo direito canônico, no caso da Igreja Católica Apostólica Romana."

A propósito, frise-se que o posicionamento dos tribunais sobre o assunto não era pacífico [9], até mesmo por conta da proliferação de igrejas, e, por conseguinte, da indesejável possibilidade de mercantilização da fé.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo, as igrejas evangélicas, por exemplo, abriram, em média, cerca de 17 novos templos por dia no Brasil no ano de 2019 [10]. O estudo ainda revelou que, no período de 20 anos, as igrejas evangélicas cresceram a um patamar significativo de 543% [11].

Esse cenário, em certa medida, é explicado desde a promulgação da Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003 [12], que permitiu há vinte anos uma maior liberdade para o desenvolvimento, incentivo e funcionamento das organizações religiosas, sem que houvesse a interferência do poder público.

De toda sorte, ponto fundamental para os estudiosos trabalhistas, e que foi trazido pela Lei 14.647/2023, é no sentido de que, se houver no caso concreto o desvirtuamento da finalidade religiosa e/ou voluntária, cessa-se imediatamente a presunção legal de inexistência de liame de emprego, e, por conseguinte, passa-se a reconhecer o vínculo na forma da lei celetária.

Não por outra razão que os ministros de confissão religiosa que já tenham firmado, voluntária ou judicialmente, vínculo de emprego para com as respectivas entidades, antes do advento da nova diretriz legal, não sofrerão nenhum tipo de alteração dos seus correspondentes contratos de trabalho. O fato de ter sido criada, supervenientemente, a presunção legal de tal relação, doravante, não mais é de natureza empregatícia, não desconstitui os atos e decisões praticadas no passado, tampouco impõe a rescisão contratual para fins de adequação à Lei 14.647/2023.

Logo, ao que parece, a nova lei pretende coibir eventuais abusos e distorções da atividade religiosa. Isto porque, por vezes, pode ocorrer de um líder espiritual ser tratado como funcionário, realizando atividades que não sejam efetivamente de ordem eclesiástica, inclusive com a presença de todos os elementos e requisitos da relação de emprego.

Em arremate, o novo marco legal tem por objetivo pacificar as controvérsias que permeiam este trabalho singular, reforçando a distinção que deve ser feita na atividade desenvolvida eminentemente em razão fé, diante do seu caráter voluntário e espiritual, para além da missão e ideologia religiosas do indivíduo.

 


[2] "Artigo 442.(…). §2º Não existe vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem, ainda que se dediquem parcial ou integralmente a atividades ligadas à administração da entidade ou instituição a que estejam vinculados ou estejam em formação ou treinamento".

[3] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[7] Artigo 1º  Considera-se serviço voluntário, para os fins desta Lei, a atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa. Parágrafo único. O serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim.

[9] Disponível aqui. Acesso em 8.8.2023.

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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