Senso Incomum

A pergunta: o que é necessário para existir um precedente?

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20 de abril de 2023, 8h00

Há uma série de obras sobre precedentes lançados e circulando. Em comum, a maioria defende a tese que eu chamo de "precedentalista" (ler aqui), pela qual os tribunais superiores se constituem em Cortes de Precedentes, que estabelecem pro futuro, via teses, súmulas e precedentes (o que seria, afinal, um precedente no meio desse imbróglio epistemológico?), o modo de interpretar-aplicar o direito [1].

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Aliás, essa tese é esgrimida pelo ministro Edson Fachin e não contestada pelos demais ministros no RE 655.265. De minha parte, apoio qualquer ideia que dê coerência e integridade ao Direito (afinal, fui o protagonista da emenda que alterou o artigo 926 do CPC). Entretanto, preocupa-me a transformação do STJ e STF em cortes de vértice, conforme explicitarei.

No acórdão do RE 655.265, o STF fez constar que o artigo 926 introduziu uma vinculação ao estilo stare decisis; disse também que o CPC estabeleceu um "sistema de precedentes vinculantes" e que a corte de vértice está vinculada aos próprios precedentes e, ao final, estabelece uma "tese" com pretensão generalizante (ver crítica minha e de Bruno Torrano aqui).

O ponto: qual é a relação do stare decisis do common law com um "sistema de precedentes" à brasileira e a elaboração de "teses" vinculantes? Bom, se tem relação como diz o ministro Fachin no RE 655.265, então a formação de teses não se coaduna com a sua origem. Stare decisis não é o que está no voto.

O precedente é a tese? A tese é o precedente? Mas no common law não existem teses e nada parecido com o que se faz por aqui [2]. Mais: no common law, precedentes não são construídos para, a partir de teses, vincular julgamentos futuros. Mas, mais do que isso, no civil law não é como no Brasil — exemplo disso a Alemanha [3]. E Portugal [4]. Para citar só esses dois países.

Nesse contexto, uma pergunta que não tem recebido resposta nem dos tribunais superiores: uma decisão em Habeas Corpus decidida pelo STJ ou STF é ou não é precedente? Por que não seria? Tem de transformar a decisão de Habeas em uma tese ou tema? E quando o Habeas não é conhecido e é concedido de ofício? É precedente? Ou pode virar tese?

Aqui entra(ria) o papel da doutrina, para elaborar, como refiro em meu Dicionário de Hermenêutica, o constrangimento epistemológico. Ocorre que parcela da doutrina concorda com (ess)a precedentalização do Direito. Ou não se importa. E isso se deu e se consolida dia a dia ao arrepio de nosso arranjo constitucional, a começar pela separação dos Poderes e suas funções.

E este é um pressuposto ineliminável: a Constituição e o modo como ela estabelece o funcionamento de nossos tribunais. Inclusive Taruffo — muito citado por precedentalistas pátrios —, em um texto recente, afirmava ser uma tarefa de notável dificuldade desenvolver um discurso homogêneo e generalíssimo sobre o papel destas cortes em razão das diferenças de competência, estrutura, de composição e de modalidades de funcionamento que cada um possui [5]. Por exemplo, se na Suprema Corte o certiorari é um "pretexto", em face da autorização normativa de juízos discricionários de admissibilidade (Rule 10 das Rules of the US Supreme Court), apesar de que isto não é utilizado para julgar e formar teses por lá, no Brasil os recursos extraordinários são impugnações para o julgamento de "causas" (artigos 102 e 105, CR/88) e nunca poderão ser interpretados como uma autorização de formar teses como comandos gerais e abstratos para resolução de casos repetitivos.

Nunca é demais lembrar que não há entre nós a figura do "recurso só no interesse da lei". Ademais, se não bastasse a diversidade de estruturas normativas e institucionais, a história e racionalidade decisória da Suprema Corte é completamente diversa de nossos tribunais superiores.

Se os tribunais devem manter a estabilidade da jurisprudência por meio de coerência e integridade, basta que se cumpra o artigo 926 e os incisos do parágrafo 1º do CPC (espelhado no artigo 315 do CPP) para que se tenha o resultado "segurança jurídica e previsibilidade". Mas parece que esse caminho não vem sendo seguido.

Parece que a preocupação da doutrina e da jurisprudência brasileiras é com "quem deve decidir" e não com o "como se deve decidir". Nessa tese, a decisão vale por sua autoridade e não pelo seu conteúdo, repetindo o lema clássico positivista: autorictas non veritas facit legis. Posto o "precedente", ele vale. Por si. Por convencionalidade, que é a máxima do positivismo.

Com isso, as Cortes de Vértice (sic) criam direito; na criação do direito, afastam-se dos próprios casos; atuam, desse modo, como se legisladores fossem. Os demais tribunais e juízes devem seguir tais precedentes ao estilo textualista (positivismo do século 19 — textualismo), estilo "juiz boca dos precedentes".

Consequências? Várias. A começar pelo fato de que o textualismo fracassa na primeira curva. Com isso, é uma ilusão acreditar que juízes e tribunais de piso se submeterão a serem "boca dos precedentes" (ver aqui; e aqui). Aliás, se funcionasse o "sistema", não haveria tantas queixas do STJ. E os processos já teriam diminuído (afinal, o sistema de vinculação precedentalista não tem essa intenção?).

Penso ser arriscado defender um papel tão amplo e poderoso para as cortes superiores sem antes nos ocuparmos com uma teoria da decisão jurídica, dos mecanismos de controle, públicos, intersubjetivos e da qualidade dessas decisões.

Sendo mais claro: se a corte vai "normar", parece-me ser sempre útil invocar, para demarcar as diferenças entre juiz e legislador, a distinção entre os argumentos de princípio (obrigatórios para os primeiros) e argumentos de política (no caso da tese dos precedentalistas, permitidos aos segundos).

Tem-se a impressão de que no Brasil uma lei só vale depois que for "jurisprudencializada". Talvez por isso proliferam fóruns para elaboração de conceituações prévias, respostas antes dos casos, respostas antes das perguntas. E o que dizer da jurisprudencialização do conceito de precedentes, classificados agora em "qualificados" e "persuasivos"?

Temos, pois, muitos aguilhões semânticos a superar.

Post scriptum: para mostrar como o realismo jurídico é vencedor no Brasil, cito o enunciado nº 9 — Enfam, pelo qual é ônus da parte identificar os fundamentos determinantes e a (in)existência de distinção ou superação de entendimento. Isto é: o enunciado inverte o sentido do direito legislado nos incisos V e VI do parágrafo 1º do artigo 489 do CPP (e 315 do CPP). E vira "norma". Com isso, o dispositivo legal é o que o enunciado diz que é. E com apoio de setores da doutrina.

Observemos: é tão forte o "sentimento jus realista" que nem é necessário que tribunais decidam; fóruns (reuniões) paraoficiais fazem enunciados com poder normativo. Cogente. E praticamente não há doutrina que conteste essa anomalia do sistema.

Depois nos queixamos. Bom, a primeira coisa que precisamos é mais teoria do direito.

Realmente, o debate que venho propondo é sem precedentes… Com a ambiguidade explicitada na frase.

 


[1] Por todos, MARINONI. Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios, 3. ed., São Paulo: Ed. RT, 2013.; MARINONI. Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de precedentes, 2. ed., São Paulo: Ed. RT, 2014; MITIDIERO, Daniel. Precedentes – da persuasão à vinculação. 4ª ed., São Paulo: Ed. RT, 2021.; GALVÃO, Daniela.

[2] Dissecamos esse argumento aqui: STRECK, Lenio Luiz; RAATZ, Igor; MORBACH, Gilberto. Da complexidade à simplificação da ratio decidendi: será mesmo que estamos a falar de precedentes no Brasil? Revista Jurídica – UNICURITIBA, Curitiba, v. 01, n. 54, p. 317-341, 2019. Disponível em: https://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RevJur/article/view/3312. Acesso em: 11 abr. 2023.

[3] Gisele Mazzoni Welsch, ao comparar os sistemas jurídicos alemão e brasileiro, faz dois importantes apontamentos para este contexto: o primeiro deles é de que o único caso em que as decisões são obrigatórias (vinculantes) para os demais órgãos constitucionais da Federação e dos estados, são as proferidas pelo Tribunal Constitucional Federal alemão; e o segundo é que, mesmo que haja uma preocupação com a uniformidade da jurisprudência (Sicherung einer einheitlichen Rechtsprechung) e com a preservação da segurança jurídica (Rechtssicherheit) – ambos requisitos para a admissão de recursos -, o sistema jurídico alemão não adota o modelo de vinculação a precedentes judiciais como técnica de julgamento. (Welsch, Gisele Mazzoni. A autoridade dos precedentes judiciais e a unidade do direito: uma análise comparada Brasil-Alemanha (II). Revista de Processo. vol. 313. ano 46. p. 325-355. São Paulo: Ed. RT, março 2021). Na Alemanha geralmente não se fala em precedentes. Algumas decisões do Tribunal Constitucional Federal são uma exceção se e quando revogam (anulam) leis por inconstitucionalidade (isso é assim no resto do mundo, porque uma lei declarada inconstitucional perde a validade) e/ou fazem provisoriamente uma regulamentação substitutiva. Claro que decisões sempre são referência para futuras ações. Mas não do modo como ocorre no Brasil.

[4] NEVES, Antônio Castanheira. O instituto dos "assentos" e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983. p. 62. Escrevi sobre isso aqui: STRECK, Lenio Luiz; SANTOS, Igor Raatz dos; MORBACH, Gilberto. DA GENEALOGIA DOS MECANISMOS VINCULANTES BRASILEIROS: dos assentos portugueses às “teses” dos tribunais superiores. Revista Eletrônica do Curso de Direito da Ufsm, [S.L.], v. 14, n. 1, p. 37204, 8 abr. 2019. UFSM http://dx.doi.org/10.5902/1981369437204.

[5] In. TARUFFO, M. et al. La misión de los tribunales supremos. Madrid: Marcial Pons, 2016. p. 231.

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