Escritos de Mulher

Os idos de abril: genocídios, violência nas escolas e racismo

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

19 de abril de 2023, 18h39

O mês de abril é destinado a rememorar graves crimes contra a humanidade: o genocídio contra o povo armênio, em 1915, quando um milhão e meio de armênios foram mortos, e o genocídio de Ruanda. Também há o marco do dia 19 de abril, de 80 anos atrás, quando se inicia o Levante do Gueto de Varsóvia, expressão mais significativa de resistência de outro genocídio: o Holocausto.

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O ódio que perpassou esses acontecimentos, de algum modo, ainda se faz presente em lugar tão distante desses países, como é o Brasil.

Os crimes de ódio praticados em ambiente escolar, no ano em curso, vitimando crianças, jovens, profissionais escolares e professores deixaram todos chocados e perplexos e, em alguma medida, se conectam com estes eventos do século 20, pois no âmago de todos eles há o ideal de supremacia de grupos de seres humanos sobre outros.

E mais perplexos ficamos com os números apresentados pelo Ministério da Justiça, referentes à operação Escola Segura, que atua em ação preventiva e repressiva. Em apenas dez dias de operação, já há 1.224 casos em investigação no Brasil, 756 solicitações de remoção ou suspensão de perfis em plataformas digitais, 255 pessoas presas ou adolescentes apreendidos; 694 intimações de adolescentes para prestar depoimento; 155 buscas e apreensões, 1.595 boletins de ocorrência.

Esse quadro bem mostra como o discurso de ódio penetrou na sociedade brasileira e há muito trabalho a ser feito, inclusive no âmbito do sistema de Justiça.

O discurso de ódio não é fato novo, mas por certo cresceu exponencialmente nos últimos anos e se massificou, como se vê nos números acima mencionados, seja pelo papel dos exercentes dos poderes públicos, seja em razão da atual configuração das redes sociais.

Fez lembrar processo antigo que esteve sob minha jurisdição, no longínquo ano de 2005, ainda juíza de primeira instância, na 16ª Vara Criminal da Capital (SP). Na época, a comunicação via internet era bem diversa dos dias de hoje, mas já havia coletivos que se uniam pelo discurso do ódio.

O caso me chamou muita atenção pela singularidade do fato, pois o crime teria sido praticado por um jovem rapaz e a sua comunicação racista se deu por meio da rede social chamada de Orkut.

Ele foi denunciado como incurso no artigo 20, § 2º, da Lei 7.716/89, por cinco vezes, porque praticou, induziu e incitou a discriminação e o preconceito de raça e cor, cometendo-os por intermédio do referido meio de comunicação social. Constou que ele fazia parte de diversas comunidades do Orkut com intuito de propagação e instigação de pessoas ao ódio racial, em especial contra a raça negra e integrantes da religião judaica. Fazia parte, dentre outras, das comunidades "Racista não, higiênico!"; "Adolf Hitler Lovers" (que tem por descrição: "We love Adolf Hitler and his path to glory" — Nós amamos Adolf Hitler e seu trajeto para a glória); "Sou Racista" ("Sou racista sim, e daí? Tenho meus preconceitos como todo mundo, só que eu assumo! Não é por lei que se acaba com o racismo!"); "Força Branca" (para promover a força dos brancos presentes no Orkut); "Orgulho Branco"; e "Nazismo Debates".

Na época, para mim, tudo foi chocante e profundamente triste por pensar que um jovem pudesse estar nesses grupos e que eles — que tinham por premissa a supremacia de seres humanos — pudessem existir. Certamente não vi com clareza que o ovo da serpente estava nessas comunidades e que bastava o momento propício e temperatura e ingredientes adequados para que crescessem, se multiplicassem e eclodissem.

Porém, um desses grupos do Orkut tem lá sua dose de razão ao afirmar que a lei não acaba com o racismo. O que está na mente e no coração é questão outra. Trata-se de desenvolvimento moral dos seres humanos, o que não fica adstrito ao sistema legal. Mas a lei tem seu poder coativo e deve ser usada para contenção da barbárie. Claro que não se está a falar exclusivamente da lei penal, mas também sanções de outra natureza, como a civil e administrativa.

No discurso de ódio, que cria um amálgama potente, temos visto que uma das exteriorizações se dá na veneração do nazismo ou neonazismo e não é possível naturalizar estas condutas.

Os exemplos pululam: um deputado estadual do MS, ao tomar posse, fez o gesto de saudação nazista de braço estendido e inclinado, conhecido como "sieg heil" (ele nega); tempos atrás, encontraram o desenho de uma suástica no fundo da piscina de um professor, que posteriormente foi transformada em quatro quadrados, ou no número 88, que integra a simbologia neonazista; em algumas cidades foram feitas pichações de suástica e apoio a Hitler; em 2017, cartazes comemorativos do aniversário do líder nazista alemão foram afixados; estudantes teriam se juntado em foto para formar suástica; professor de rede pública defende nazismo para alunos; apreensão de bandeiras e objetos que remetem ao nazismo foram apreendidos; pessoas ostentando a suástica em suas vestes, em lugares públicos, agem como se isso fosse normal; há inúmeros grupos neonazistas, pelo que está sendo revelado, tal qual aquele referido em processo de 18 anos atrás.

O Supremo Tribunal Federal , no julgamento do editor Siegfried Ellwanger, (HC 82.424 / RS), em 2003, firmou a régua sobre a apologia a nazismo e ditou que se trata de crime, como se vê em trechos que destaco da ementa:

"1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros 'fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias' contra a comunidade judaica (Lei 7.716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII) (…)
5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, 'negrofobia', 'islamafobia' e o 'antissemitismo'.
13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.
14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação ao racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica."

Todas as manifestações de ódio, que aviltam a dignidade humana, devem ser combatidas com os instrumentos que já estão postos no nosso ordenamento jurídico. Necessário que as normas que regulamentam as redes sociais sejam revistas, para que este espaço de liberdade não seja corrompido por objetivos que ferem os fundamentos da nossa República; imprescindível que para além do espaço do sistema de Justiça, os atores de outras áreas, como educação, saúde mental, assistência social, empresas dialoguem e caminhem para percorrer a construção da paz, para qual é imprescindível a proteção da liberdade de expressão, que não abarca o racismo e a apologia do nazismo.

Crimes bárbaros do passado, os genocídios deixam um alerta para a humanidade a fim de que nunca mais se repitam.

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