Contra a corrente

'Divergência faz parte do processo democrático e ilustra a riqueza do Direito'

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10 de abril de 2023, 8h48

* Esta entrevista foi produzida para o Anuário da Justiça Brasil 2023, que será lançado no Supremo Tribunal Federal no dia 10 de maio.

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Dentro de um ambiente colegiado, como é o Supremo Tribunal Federal, as divergências devem ser encaradas como naturais, parte fundamental do processo democrático. Isso porque elas permitem a expressão de pontos de vista distintos, que enriquecem o debate e, consequentemente, a resolução dos conflitos.

A reflexão do ministro Kassio Nunes Marques, um dos mais novos integrantes da corte, é de que, no STF, a decisão é formada por maioria, mas não se busca a unanimidade. "A riqueza do colegiado está na heterogeneidade. Críticas ao posicionamento dos magistrados, dentro do regime democrático, devem ser encaradas com naturalidade, desde que não incorram em ameaças e ataques pessoais, que são inaceitáveis", afirmou o ministro.

O Supremo teve seu prédio invadido em 8 de janeiro. Além disso, togas foram queimadas e objetos históricos, destruídos, assim como ocorreu nas sedes dos outros poderes. O ataque representou um episódio triste da história do Brasil, mas o ministro comemora o fato de que as instituições continuam funcionando em normalidade. 

É consenso entre os integrantes da corte a importância da atuação da presidente, ministra Rosa Weber, em um período tão violento e atípico. "A presidente do STF respondeu à altura os ataques, manteve a excelência das atividades e atuou firmemente em defesa da Constituição e do Estado de Direito", disse o ministro, que aponta para uma crescente percepção de que "a democracia é um sistema em construção permanente".

Nunes Marques chegou à Suprema Corte em novembro de 2020, depois de um período no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, onde foi vice-presidente. Com perfil discreto, foi o primeiro nomeado para compor o STF pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele integra a 2ª Turma, colegiado considerado garantista em matéria penal e do qual foi presidente até junho do ano passado. 

Apesar do garantismo, o ministro segue uma tendência de conceder Habeas Corpus em raras hipóteses: de 853 julgados em 2022, foram apenas 59 concessões, o que representa um percentual de 7%. O magistrado pondera que chegam questões ao STF que já foram debatidas em primeira e segunda instâncias e também no Superior Tribunal de Justiça, inclusive com ordem já concedida anteriormente. Outro fator frequente são os Habeas Corpus impetrados em fase de decisão monocrática, ou seja, quando ainda cabe a outra instância atuar. 

Com a chegada à corte do ministro André Mendonça, segundo indicado de Bolsonaro, no ano passado, os dois acabaram vencidos em casos muitas vezes sensíveis ao governo. Como quando votou por absolver o deputado federal Daniel Silveira; na manutenção de decretos que flexibilizaram a compra e o porte de armas; e na derrubada da resolução do TSE sobre desinformação.

O ministro vê a divergência como "parte do processo democrático", que "ilustra a riqueza do Direito como um sistema legal que permite tal debate". No ano passado, por exemplo, ele se destacou na área ambiental como quem mais divergiu: quatro dos dez casos divulgados no Informativo Temático 2022 do STF. Nunes Marques defende, no entanto, que os casos "são cuidadosamente analisados e julgados, levando-se em conta, ainda, a jurisprudência da corte". "É necessário também destacar que os precedentes não são cravados em pedra, porque o Direito não é estanque."

O magistrado só participou de sua primeira sessão presencial com todos os ministros da casa quando estava prestes a completar um ano de atuação — ele tomou posse em cerimônia feita por videoconferência devido à epidemia da Covid-19, e destaca a prestação jurisdicional mantida sob a presidência do ministro Luiz Fux durante esse período. "O STF conduziu votações importantes que garantiram, por exemplo, a aquisição de medicamentos e assegurou aos estados e municípios que pudessem adotar as providências e políticas públicas de acordo com as necessidades locais."

Na entrevista, concedida por escrito, o ministro reflete sobre as demandas que chegam ao STF, bem como sobre as atribuições e competências da corte suprema brasileira. 

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Como o senhor avalia a resposta das instituições, em especial do STF, aos atos antidemocráticos vistos em 8 de janeiro? O que mudou desde aquele dia? 
Nunes Marques — O dia 8 de janeiro de 2023 representa um episódio triste da história do Brasil, quando as sedes dos Três Poderes foram literalmente atacadas. O STF agiu com firmeza em defesa da Constituição e do Estado democrático de Direito, de modo que os responsáveis devem responder por seus atos, dentro do devido processo legal e com respeito às garantias do contraditório e da ampla defesa. Felizmente, as instituições seguem funcionando em normalidade. Vejo ainda que, cada vez mais, temos a percepção de que a democracia é um sistema em construção permanente, que deve ser mantido em delicada harmonia e profundo equilíbrio, o que demanda cuidado constante e medidas para a sua proteção.

ConJur — O senhor considera necessário discutir e/ou revisar o Regimento Interno do Supremo?
Nunes Marques — O STF tem cumprido seu papel de aprimorar o Regimento Interno, inclusive com uma alteração recente, a Emenda 58. Ainda assim, é oportuno continuar o trabalho de compatibilizar o Regimento com o CPC/2015 e a própria Constituição, incentivando a conciliação, a mediação e outros métodos de resolução de conflitos, implementando regras voltadas ao adequado gerenciamento dos casos, à racionalização da análise de recursos e à uniformização de prazos, adotando mecanismos que imprimam celeridade, eficiência e, sobretudo, preservando a Justiça, a exemplo da ampliação do uso do ambiente virtual, ocorrida nos anos anteriores.

ConJur — O senhor e o ministro André Mendonça ficaram vencidos nos últimos anos em alguns julgamentos no Plenário com entendimentos que divergem da maioria do colegiado. Como é inaugurar uma linha de divergência na corte? E como é ter de lidar com críticas por adotar determinada posição que o senhor considera correta?
Nunes Marques — O STF é um colegiado em que a decisão é formada por maioria — e onde, ademais, não se busca a unanimidade. Na colegialidade, a divergência é natural, salutar, e constitui parte fundamental do processo democrático, pois coloca em evidência distintos pontos de vista, que servem ao enriquecimento do debate e à melhor compreensão dos fenômenos em discussão. A riqueza do colegiado está na heterogeneidade. Críticas ao posicionamento dos magistrados, dentro do regime democrático, devem ser encaradas com naturalidade, desde que não incorram em ameaças e ataques pessoais, que são inaceitáveis.

ConJur — De acordo com os casos do boletim de jurisprudência do STF, em matéria ambiental, o senhor foi quem mais divergiu. E, em matéria de direito fundamental, votou em 70% das vezes pró-Estado. O senhor poderia comentar esses números? É comum a análise caso a caso?
Nunes Marques — Creio que todos nós, advogados, promotores públicos, juízes, desembargadores e ministros, prezamos pelos mesmos ideais de justiça em uma sociedade fraterna, democrática e plural. Tendo tais valores como norte, cada ministro interpretará a Constituição e as leis, influenciado por suas respectivas e sólidas formações e também por suas respectivas experiências e convicções, formadas ao longo de décadas de atuação na área do Direito. Como disse Oliver Holmes, um dos mais memoráveis ministros da Suprema Corte norte-americana, "a vida do Direito, da lei, não tem sido apenas lógica; tem sido experiência". 

Nesse contexto, não apenas em matéria ambiental, mas também em outros temas igualmente relevantes, a divergência, como antes mencionei, faz parte do processo democrático e ilustra a riqueza do Direito, como um sistema legal que permite tal debate. É sob essa perspectiva que os casos que aportam perante o Supremo são cuidadosamente analisados e julgados, levando-se em conta ainda a jurisprudência desta corte. Feita tal ponderação, é necessário também destacar que os precedentes não são cravados em pedra, porque o Direito não é estanque. 

Ao contrário, está em constante evolução, refletindo as mudanças sociais, econômicas, políticas, e até científicas, não apenas no país, como no mundo. Portanto, um dos papéis mais importantes senão o mais importante desta Suprema Corte é, assim, contemplar todas essas mudanças e, de forma harmônica, realizar, de forma justa, o balanço de todas essas questões, preservando ainda os direitos e as garantias fundamentais previstos pela Constituição.  

ConJur — Como o senhor avalia o uso das ADIs, ADCs e ADPFs? Só em 2022, foram 382 julgadas no mérito, sendo reconhecida a inconstitucionalidade das normas em 67%. O que leva a esse alto índice de questionamentos e de reconhecimento de inconstitucionalidade?
Nunes Marques — O Brasil possui um sistema de controle de constitucionalidade bastante avançado e único em muitos aspectos. Nesse contexto, ao longo dos anos, diversos instrumentos processuais, como as ADIs e ADPFs, foram ganhando um papel cada vez mais relevante, garantindo a esta corte um papel proativo e, por vezes, protagonismo na garantia de temas envolvendo até mesmo políticas públicas. Ainda, reputo que o acesso à Justiça é uma garantia fundamental. Portanto, na medida em que a Constituição prevê rol de direitos e garantias fundamentais, parece-me lógico que o Supremo atue em sua respectiva defesa e proteção.

ConJur — Dados do painel "Corte Aberta", do STF, mostram que o senhor concedeu 59 dos 843 Habeas Corpus distribuídos ao gabinete no ano de 2022. Por que esse número de ordens concedidas é baixo?
Nunes Marques — É preciso considerar que, muitas vezes, tais questões já foram debatidas em primeiro e segundo graus e, não raro, também no Superior Tribunal de Justiça. Assim, o mesmo tema já foi examinado e a ordem já fora concedida anteriormente por um desses tribunais. Feita tal ponderação, as decisões proferidas seguem as súmulas e a jurisprudência do STF sobre as questões constitucionais tratadas nos Habeas Corpus, as quais, muitas vezes, também especificam os critérios de admissibilidade. 

ConJur — Qual avaliação o senhor faz das demandas que chegam à corte via Habeas Corpus? Diante do alto número de HCs, o que precisa ser revisto?
Nunes Marques — Não raro, verificamos que os Habeas Corpus são impetrados ainda em fase de decisão monocrática, quando ainda cabe a outro magistrado se pronunciar, a outra instância atuar. As súmulas e a jurisprudência disciplinam esses critérios. É fundamental que o operador do Direito siga o caminho a ser percorrido até o STF.

ConJur — O tema do tráfico de drogas lidera o número de processos novos no STJ, de acordo com o DataJud. Como essa questão é tratada no STF? São necessárias reformas legislativas?
Nunes Marques — O tráfico de drogas é responsável por um número expressivo de processos no STJ e, em menor escala, no STF. Nós tratamos cada caso de maneira criteriosa, com foco na preservação dos direitos fundamentais e no enfrentamento ao crime organizado, que tanto penaliza a sociedade. No que tange a reformas legislativas, cabe ao Congresso Nacional promover o debate e eventuais mudanças na legislação.

ConJur — A repercussão geral completou 15 anos. Como o senhor avalia esse instrumento e como ele mudou a atuação do STF nesse período? A corte está mais perto de julgar apenas questões grandes e definir teses? 
Nunes Marques — A repercussão geral é um instrumento fundamental, que tem aprimorado a atuação do Supremo Tribunal Federal e garantido que os casos de maior relevância para a sociedade sejam tratados de forma efetiva e uniforme, possibilitando que a corte concentre seu foco em temas de maior impacto, com consequências positivas para a sociedade. Os precedentes vinculantes proporcionam previsibilidade e segurança jurídica, possibilitando que instâncias inferiores resolvam casos similares sem a necessidade de recorrência ao STF. O constante desafio é conciliar os avanços com a preservação dos direitos e garantias constitucionais e sua efetivação.

ConJur — Como foi a adaptação do gabinete para o retorno das atividades presenciais após o período de distanciamento sanitário?
Nunes Marques — Durante o período de isolamento social, o gabinete funcionou normalmente, mantendo os elevados índices de produtividade, com o auxílio das tecnologias de comunicação e informação. Com o retorno ao trabalho presencial, não apenas retomamos as práticas anteriores ao distanciamento sanitário como mantivemos os avanços desse período em que o teletrabalho foi a regra. O nosso propósito é preservar a excelência dos serviços oferecidos à população, independentemente do regime de trabalho. É claro que, com a presença física na corte, podemos disponibilizar um atendimento mais próximo aos advogados que requerem audiências — e isso contribui para a efetividade da prestação jurisdicional.  

ConJur — Como têm sido os trabalhos com relação aos julgamentos virtuais?
Nunes Marques — Os julgamentos virtuais configuraram um mecanismo essencial para os trabalhos do STF diante das restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Eles permitem a análise de um maior número de processos, de maneira mais célere — o que reduz o acúmulo de casos pendentes. Essa modalidade é empregada, prioritariamente, em questões de menor complexidade ou que já possuam jurisprudência consolidada. Há ganhos em relação à transparência, à publicidade e ao amplo acesso às informações.

ConJur — No último ano, quais foram os votos proferidos de maior destaque jurídico em seu gabinete e nos colegiados em que atua?
Nunes Marques — Considero de maior destaque jurídico os votos nas seguintes ADIs:
a) ADI 4.786: taxa de mineração;
b) ADI 3.396: aplicabilidade das regras do Estatuto da Advocacia a advogados empregados públicos;
c) ADIs 6.860, 6.861 e 6.863: poder de requisição da Defensoria Pública;
d) ADIs 6.711, 6.712 e 6.718: reeleição ou recondução sucessiva de membro da mesa diretora de Assembleia Legislativa;
e) ADPF 833: concessão de pensão mensal e vitalícia a familiares de prefeito, vice-prefeito e vereador falecido no exercício do mandato.

ConJur — Há novas jurisprudências no STF que o senhor gostaria de destacar?
Nunes Marques — Gostaria de destacar os seguintes precedentes, que ilustram a evolução jurisprudencial desta Suprema Corte em diversos temas:
a) RE 1.348.854: extensão da licença-maternidade a servidor público pai solo;
b) ADI 6.327: estabelecimento de que o termo inicial da licença-maternidade e do salário-maternidade, nos casos de internações pós-parto que durem mais de duas semanas, é a alta hospitalar da mãe ou do recém-nascido — o que ocorrer por último;
c) ADIs 6.581 e 6.582: prisão preventiva: prazo nonagesimal para a sua revisão e respectiva competência jurisdicional;
d) ADI 6.138: Lei Maria da Penha e afastamento do agressor por delegados e policiais;
e) RE 887.671: autonomia administrativa e determinação judicial para o preenchimento de cargo de defensor em localidades desamparadas;
f) RE 955.227 e RE 949.297: cessação dos efeitos da coisa julgada tributária;
g) RE 781.926: direito a crédito de ICMS requerido por distribuidora de combustíveis nas operações com diferimento do pagamento do tributo.

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