Ambiente Jurídico

O papel fundamental do Ministério Público na defesa dos recursos hídricos

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

8 de abril de 2023, 8h00

Sabe-se que ¾ do planeta são formados por água. Porém, menos de 3% desse volume é de água doce. Além disso, os mananciais hídricos são mal distribuídos e geridos. Nesse cenário, a falta de água em qualidade suficiente e quantidade adequada atinge mais de um bilhão de pessoas no mundo, sendo fonte de doenças e morte.

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O direito de acesso à água é um direito humano fundamental. Sem ele não se pode gozar de outros direitos da mesma natureza, como os direitos à vida (digna), à saúde e à liberdade. A escassez de água impede o ser humano até mesmo de buscar e manter um emprego, o que é essencial para sua sobrevivência pessoal e familiar.

O Brasil, preocupado com essa dura realidade, vem tomando medidas importantes no sentido de proteger e preservar as reservas hídricas de que dispõe (e são muitas). Um passo fundamental foi dado com a Constituição de 1988, que tornou todas as águas de propriedade dos estados ou da União. Outra lei extremamente importante é a Lei nº 9.433/97 (Lei das Águas), que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Avançando, a Lei nº 11.445/07, conhecida como Lei do Saneamento Básico, passou a vedar, em todo o território nacional, a utilização de água de poços artesianos nos locais abastecidos por redes públicas de saneamento. Essa lei possibilitou juridicamente, ao menos em tese, maior controle sobre a exploração dos aquíferos, inclusive do maior deles, o Aqüífero Guarani, que tem 2/3 de sua área no território brasileiro, beneficiando oito Estados-membros (Wartchow, 2003, xv).

Há uma crença de que a água subterrânea sempre é de boa qualidade. Essa visão apresenta-se parcialmente correta. Por um lado, a água armazenada no subsolo, como regra, é de melhor qualidade do que a água superficial. De outro, embora a água subterrânea seja naturalmente mais protegida, não está livre da ação humana nociva. Lixões irregulares, cemitérios, defensivos agrícolas, falta de esgotamento sanitário, enfim, várias fontes de poluição existentes na superfície acabam contaminando os aquíferos em decorrência da infiltração.

Temos de estar atentos para a gestão da água superficial e subterrânea. Embora sejamos ricos em quantidade — volume de água na superfície e no subsolo —, sofremos de escassez qualitativa. Também temos problemas de distribuição geográfica dos mananciais, que são abundantes em locais pouco ocupados, e escassos em regiões importantes, como a região Nordeste.

Logo, o Ministério Público (MP), como responsável pela defesa dos interesses sociais, tem papel importante na proteção dos recursos hídricos e, fazendo-o, não defende apenas o recurso natural água, mas a própria humanidade, que depende da água para o exercício de suas atividades.

A CF estabelece que "as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados" (§ 3º do artigo 225). Os principais mecanismos processuais para a responsabilização por danos gerados ao meio ambiente, na esfera civil, estão elencados na Lei 7.347/85 — conhecida por Lei da Ação Civil Pública.

Estando os recursos hídricos inseridos no conceito de meio ambiente (artigo 3º, V, da Lei 6.938/81), por consequência os instrumentos previstos na Lei 7.347/85 servem para a defesa da água de um modo geral, quando estiverem em discussão interesses transindividuais, que são, como regra, difusos (artigo 81, parágrafo único, I, da Lei nº 8.078/90).

A Lei da ão Civil Pública prevê dois meios fundamentais para a resolução de conflitos ambientais, que são o compromisso de ajustamento de conduta e a ação civil pública. A legitimidade para a utilização desses instrumentos é atribuída ao Ministério Público, a entes do Poder Executivo (da administração direta e indireta) e a associações que preencham os requisitos previstos na Lei (artigo 5º).

O compromisso de ajustamento consiste em uma solução extrajudicial consensual, semelhante a um contrato, possuindo eficácia de título executivo (§ 6º do artigo 5º da Lei 7.347/85). Na medida do possível, deve ser priorizado, visto que dito ajuste é mais vantajoso em relação à ação civil pública na defesa de interesses coletivos lato sensu.

Sílvia Cappelli (2002) destaca várias razões para a adoção da resolução extrajudicial: a morosidade no julgamento das demandas, que, costumeiramente, o complexas; o fato de que, nos arestos que apreciam a matéria, ainda prepondera a visão privatista da propriedade em detrimento das questões ambientais; maior abrangência do compromisso de ajustamento do que da decisão judicial em face dos reflexos administrativos e criminais; menor custo, inclusive de perícias, honorários advocatícios; e maior reflexo social do ajuste, pois o consenso acarreta maior efetividade em relação ao que foi deliberado.

Há, contudo, casos em que, por haver pretensão resistida insuperável, é necessária a busca da tutela jurisdicional, surgindo a necessidade do ajuizamento de ação civil pública ambiental. Em que pese a gama de colegitimados para essa ação, a prática evidencia que o Ministério Público é responsável pela grande maioria dessas demandas (Cappelli, 2004).

As ações promovidas pelo MP são, via de regra, instruídas com importantes elementos probatórios apontando a ocorrência do dano ambiental e seus responsáveis, uma vez que a Lei 7.347/85 faculta ao Óro ministerial, com exclusividade, a instauração de inquérito civil ou de peça de informação, sob sua presidência, onde poderão ser requisitadas certidões, informações, exames, perícias (§ 1º do artigo 8º), dentre outras diligências, como a colheita de depoimentos.

Enfim, o MP tem a incumbência constitucional de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis (artigo 127 da CF) — dentre os quais estão incluídas muitas questões envolvendo a água , o que vem fazendo cada vez com maior capacidade e mais largamente, embora encontre expressivas dificuldades na instrução e julgamento das ações civis públicas, sobretudo por faltar a considerável número de decisores a consciência de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição para a sobrevivência das presentes e futuras gerações.

Uma das formas de atuação significativa do MP está em cobrar — pela via negocial ou judicial — dos órgãos competentes a implementação dos dispositivos da Lei das Águas (nº 9.433/97), como a formação e funcionamento dos Comitês de Bacia, das Agências de Águas e dos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, assim como o aparelhamento dos Departamentos Estaduais de Recursos Hídricos (ou órgão equivalente). Esses órgãos são fundamentais para que o uso das águas seja submetido aos instrumentos da outorga e cobrança, a fim de gerenciar adequadamente o "bem público" e estimular seu uso racional.

Considerando a importância da água e sua situação de crise quali-quantitativa, o MP brasileiro vem adotando o tema "proteção das águas" como assunto de interesse institucional, dando-lhe a prioridade necessária. Essa foi a postura adotada pelo MP gaúcho desde 2006 [1].

Outra ação interessante, que já é realidade em diversos estados, como em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, é a Atuação Integrada por Bacias Hidrográficas. Nessa sistemática, propõe-se a articulação regional entre Promotorias de Justiça, poder público e a sociedade civil, com a finalidade de qualificar o enfrentamento sistêmico dos problemas que atingem a bacia hidrográfica, e não apenas fração dela.

À guisa de fechamento, podemos estabelecer articuladamente as seguintes conclusões:

a) embora sejamos um país "rico" em volume d'água doce superficial e subterrânea, sofremos com a escassez qualitativa (nossas águas estão, em grande parte, poluídas) e quantitativa (distribuição irregular das águas em nosso território);

b) as perfurações de poços de captação em larga escala, como vêm ocorrendo no País, colocam em risco o meio ambiente e a saúde humana;

c) o Ministério Público, como defensor dos interesses sociais, tem um importante papel da desempenhar na defesa dos recursos hídricos, podendo-se utilizar de instrumentos judiciais e extrajudiciais de proteção dos interesses coletivos lato sensu;

d) a atuação ministerial pode-se dar de diversas formas, destacando-se a tomada de ações proativas no sentido de que seja implementada a Política Nacional e Estadual de Recursos Hídricos, com gestão descentralizada e participativa; o estabelecimento do tema "proteção das águas" como de interesse institucional e prioritário; a atuação sistêmica por bacias hidrográficas, dentre outras que possam auxiliar na minoração da crise hídrica.

 


BIBLIOGRAFIA

CAPPELLI, Sílvia. Atuação Extrajudicial do MP na Tutela do Meio Ambiente. Revista do Ministério Público, Porto Alegre, n. 46, p. 230-260, jan./mar. 2002, p. 232-233.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Trad. de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Editora Cultrix, 1996.

FREITAS, Vladimir Passos de. Sistema jurídico brasileiro de controle da poluição das águas subterrâneas. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, a. 6, n. 23, jul./set. 2001, p. 53-66.

HIRATA, Ricardo. Gestão dos recursos hídricos subterrâneos. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 1, p. 785-796.

VIEGAS, Eduardo Coral. Visão jurídica da água. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.

______. Gestão da água e princípios ambientais. 2. ed. Caxias do Sul: EDUCS, 2012.

WARTCHOW, Dieter. Prefácio. In: BARLOW, Maude; CLARKE, Tony. Ouro azul. São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda., 2003.

 


[1] "O Ministério Público adota o tema 'proteção da água' como prioridade absoluta, na esteira das mais modernas tendências mundiais, em razão da escassez quali-quantitativa, tomando-o como assunto de interesse institucional, que, como tal, será tratado." (Enunciado 6.8 do evento Estratégias Institucionais para a Proteção do Meio Ambiente – outubro de 2006).

Autores

  • é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil, mestre em Direito Ambiental, palestrante com mais 24 anos de experiência, ex-professor de graduação universitária, atualmente ministrando cursos e treinamentos, integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente, colunista na ConJur e autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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